25 de março de 2022
Por Giorgio Romano Schutte (Foto: Oleksa Mara/ Unsplash)
No mês de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fez uma viagem para Moscou, estranhamente em meio à maior crise entre o Ocidente e a Rússia desde o fim da guerra fria. O brasileiro não era o maior aliado dos Estados Unidos?
Primeiramente, em relação às tensões. As notícias sobre uma mobilização de tropas na fronteira com a Ucrânia começaram a circular no final do ano passado, mas essa história se inicia com o discurso do Vladimir Putin, em 2007, em Munique (Alemanha), na Conferência sobre a segurança na Europa.
Foi lá que ele apresentou sua doutrina criticando o unilateralismo e a arrogância dos EUA e da Otan (Organização do tratado do Atlântico Norte) e reivindicou o direito da Rússia de ser respeitada.
Putin questionou para que serve a aliança militar ocidental depois do fim da guerra fria. O ocidente nunca conseguiu dar resposta e sempre considerou que não deve satisfação à Rússia.
A Otan, porém, começou sua expansão para o Oriente, primeiro filiando os países que faziam parte do bloco soviético, como Polônia, Hungria e Bulgária. Depois, em 2004, abriu as portas para as ex-repúblicas soviéticas do Báltico: Letônia, Estônia e Lituânia. A proposta era avançar com a filiação da Georgia e da Ucrânia.
A Rússia, então, reagiu com a intervenção militar na Georgia em 2008. No caso da Ucrânia, no período entre 2008 e 2014, houve de ambos os lados infiltração e manipulação política. Não há bandidos e mocinhos nessa história.
Em fevereiro de 2014, foi a vez das forças pró-Ocidente organizarem uma onda de manifestações violentas conhecidas como Euromaidan em Kiev, capital da Ucrânia, derrubando o governo que estava se aproximando à Rússia.
A reação foi a anexação da Crimeia em março 2014 e apoio a forças armadas pró-Rússia no oriente da Ucrânia, particularmente nas regiões de Donetsk e Luhansk. Nos confrontos desde então, houve mais de 10 mil mortos e mais de 20 mil graves feridos.
Observe-se que a Europa tem posições diferentes internamente e em relação aos EUA. Países do leste europeu se posicionam na linha norte-americana, mas os países da Europa Ocidental, em particular a Alemanha de Angela Merkel, tentaram manter o diálogo e sobretudo não prejudicar as relações comerciais com a Rússia, incluindo ai a importação de gás e petróleo.
As coisas tomaram outro rumo com a chegada do Joe Biden e seu slogan America is back – “EUA estão de volta”. Parte desta ofensiva – que está prioritariamente direcionada à contenção da ascensão chinesa – é returbinar a Otan e reconsolidar a aliança com a Europa como espinha dorsal da sua hegemonia.
A Rússia de Putin, fortalecida pela parceria com a China, resolveu reagir à nova dinâmica. Aí aparece a demonstração de força na fronteira com a Ucrânia, justo em um momento de fraqueza de Biden devido a questões de política interna.
Evidente que também há uma dinâmica da política interna russa: a necessidade de Putin de manter sua posição, diante da fadiga natural após tantos anos no poder.
As reivindicações são de que nenhuma outra ex-república soviética (além dos países bálticos) entre na Otan e a retirada das tropas da aliança dos países que se juntaram à Organização depois do fim da guerra fria. Ou seja: não só as ex-repúblicas soviéticas, mas também os países da Europa Oriental. E Putin exige também garantias no papel assinado e registrado em cartório.
É uma pauta de reivindicação absolutamente legitima. Evidente que Putin sabe que é impossível para os EUA e mesmo a Europa concordar com tudo, mas pode se chegar a um meio termo se houver vontade política.
Enfim, as tensões estão se acumulando e há vários desfechos. Por enquanto, a Rússia pode avançar de três formas: uma guerra cibernética para enfraquecer o governo da Ucrânia; invasão limitada nas regiões orientais; e provocar uma troca de regime mobilizando revolta interna, o que seria uma troca na mesma moeda dos tumultos antirrussos em 2014. Invasão total ou simples retirada sem qualquer ganho são muito pouco prováveis.
Menos provável ainda é que haja qualquer confronto militar entre 4 e 20 de fevereiro, que é quando acontecerão os Jogos Olímpicos de Inverno. O Espírito Olímpico é exatamente a promoção da paz, e durante os Jogos os países participantes declinam da guerra. Sendo os Jogos na China, com certeza isso pesa.
A China, aliás, deixou muito claro seu total apoio às reivindicações russas. É também na ocasião da abertura dos Jogos, no dia 4 de fevereiro, que Putin viaj para China e terá um encontro pessoal com Xi Jinping, o primeiro desde o início da pandemia.
Na realidade, os EUA estão bastante perdidos. Biden e o seu ministro de Relações Exteriores, Anthony Blinken, deixam claro que, por enquanto, não estão dispostos a negociar nos termos da Rússia.
Ao mesmo tempo, já explicaram que a Ucrânia, não sendo membro da Otan, não pode contar com apoio militar direto. Há ameaças de uma reação forte no campo econômico e financeiro, excluindo a Rússia do sistema de pagamentos internacionais, chamado Swift. Mas isso poderia ser danoso aos interesses europeus. O conflito atual serve inclusive para testar a unidade entre os EUA e a União Europeia.
Diante de tamanha confusão, o que Bolsonaro vai fazer em Moscou, se ele de fato for?
Na verdade, o convite para o brasileiro ir para Moscou é antigo e foi articulado ainda na gestão do ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Seria uma viagem que envolve outros países cristãos com governos conservadores que defendem uma pauta de costumes, como a Hungria e a Polônia. Por causa da covid, a agenda fora adiada.
Neste ano, o Brasil volta a fazer parte do Conselho de Segurança da ONU como um dos dez membros não permanentes. Isso interessa a Putin. Há uma pauta de comércio que envolve interesse na compra pelo Brasil de de sistemas de mísseis antiaéreos e sistema de combate a drones russos.
O principal produto de exportação brasileira para a Rússia é a soja. O Brasil tem um déficit com a Rússia pelas importações de fertilizantes e houve problemas fitossanitários com a importação de carne brasileira.
Pode se especular também que a decisão de ir para Moscou reflete uma reação de Bolsonaro às repercussões da viagem de Luiz Inácio Lula da Silva para Europa e a imagem de um certo isolamento internacional do ex-capitão do Exército.
Ao final, a proximidade entre o clã Bolsonaro e a família Trump não ajudou muito na relação com os EUA sob gestão Biden. Além de Moscou, Bolsonaro pretende também visitar Hungria onde o presidente da extrema direta Viktor Orban enfrenta uma eleição com uma oposição unida em março.
Enfim, não há data exata confirmada e pode ser que Bolsonaro ainda recue dessa ideia, que com certeza não agrada aos EUA.
Texto publicado originalmente em 28 de janeiro de 2022 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.