25 de março de 2022
Por Ana Tereza Lopes Marra de Sousa (Foto: Unsplash)
Os BRICS se apresentam à Argentina por meio de convite da China, membro do conjunto, como um grupo coeso, que conversa com sua política externa, o governo Fernández parece enxergar nos BRICS uma plataforma de inserção da Argentina no mundo. Uma possível entrada da Argentina nos BRICS, da forma como está se desenhando até agora, escancara a perda de protagonismo do Brasil.
No início de fevereiro, o presidente argentino Alberto Fernández iniciou giro internacional com destino à Rússia, China e Barbados. Na Rússia, Fernández solicitou e recebeu de Vladimir Putin apoio para o ingresso da Argentina nos BRICS, constituído por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Dias depois, na China, o mesmo pedido foi feito ao presidente Xi Jinping, que também sinalizou posição favorável à entrada argentina.
Já do lado do Brasil, o Itamaraty informou que, no momento, não há discussão para a ampliação do agrupamento, deixando o Brasil sem posição clara sobre o assunto. As perguntas que se colocam são: qual o sentido da entrada da Argentina no agrupamento? E a posição do Brasil?
Os Brics
“BRIC” foi um acrônimo do sistema financeiro criado por Jim O’Neill, do Goldman Sachs, em 2001, para designar economias emergentes com potencial de crescimento. A partir de 2006, contudo, a sigla ganhou significado político. Brasil, Rússia, Índia e China passaram a se reunir às margens das reuniões das Assembleias da ONU com vistas a construir maior aproximação e aumentar a cooperação entre os países. No cenário da crise financeira global de 2008-09, o agrupamento foi elevado a reunião de cúpula. Em 2011, a África do Sul foi inclusa.
Constituído por grandes economias emergentes das diferentes regiões do globo – o que seria um elemento que acrescentaria legitimidade de atuação do agrupamento como representante do mundo em desenvolvimento –, os BRICS atuaram em conjunto para pressionar por reformas no sistema financeiro e monetário internacional e em várias discussões dentro do G20 (grupo formado pela União Europeia e as 19 maiores economias do mundo).
Apesar das diferenças existentes entre os BRICS, o ensejo para a construção de um mundo multipolar e as oportunidades de cooperação mútua entre os membros mantiveram a iniciativa. Como resultado, a partir da decisão tomada na Cúpula de Fortaleza, em 2014, os BRICS criaram o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e um Arranjo Contingente de Reservas (ACR).
Contudo, a mudança do cenário internacional ao longo da década de 2010, marcada pela emergência da disputa sino-americana e pela retomada da Rússia de seu papel de superpotência, de um lado, e a própria trajetória econômica decrescente de países do grupo, como o caso do Brasil, bem como problemas de relacionamento entre os membros – por exemplo, as disputas de fronteira entre China e Índia, e a hostilidade do governo Bolsonaro à China – de outro, provocaram uma estagnação nos BRICS.
Assim, a partir de 2017, começou-se a circular a ideia do BRICS Plus, proposta pela China, a partir da qual se formaria uma versão ampliada do agrupamento com o ingresso de outros países, como México, Paquistão e Sri Lanka. Com isso, a China visava dar maior dinamismo aos BRICS e transformá-lo em uma plataforma voltada à cooperação Sul-Sul. As discussões de ampliação, contudo, não prosperaram naquele momento, principalmente pela oposição da Índia à entrada do Paquistão.
A Argentina no BRICS
A entrada da Argentina no agrupamento começou a ser mais seriamente aventada no ano passado. Diante de protestos do governo argentino sobre o fato de o Uruguai (que forma parte do Mercosul) e China estarem negociando um acordo de livre comércio, a China convidou o governo argentino a avaliar uma possível entrada nos BRICS.
O convite deve ser compreendido dentro da trajetória de aproximação entre China e Argentina nos últimos anos. A China tem se constituído como uma importante parceira econômica para a Argentina. Dados do China Global Investment Tracker informam que a China investiu cerca de US$ 10,15 bilhões no país nos últimos 11 anos. Por meio de acordos de swap cambial (troca de moedas), adicionalmente, a China emprestou à Argentina em 2015 – em um momento em que o país estava fora do sistema financeiro internacional e com problemas com o FMI – cerca de US$ 11 bilhões visando assegurar liquidez no país. Em termos comerciais, a China tornou-se a maior parceira comercial da Argentina em 2021, suplantando o Brasil.
Do lado da Argentina, o ingresso nos BRICS é adequado à política externa que Fernández vem implementando, voltada para a diversificação das relações externas do país. Tenta-se tornar a Argentina menos dependente de parcerias tradicionais como os EUA e o FMI, buscando alternativas políticas e econômicas em outras grandes forças mundiais, como a China e a Rússia, e fortalecer o protagonismo regional e internacional do país. É nessa cena que se inseriu a viagem de Fernández para Rússia, China e Barbados (país que recentemente tornou-se independente da coroa britânica, com a qual a Argentina disputa as ilhas Malvinas).
Na China, além de buscar apoio para a entrada do país nos BRICS, Fernández celebrou o ingresso da Argentina na Belt and Road Initiative (BRI), programa chinês voltado para o investimento em infraestrutura. Por meio dele, ficou acertada a entrada de US$ 23,7 bilhões de recursos chineses nos próximos anos na economia argentina, destes sendo US$ 14 bilhões voltados para 10 projetos pré-selecionados, dentre eles a construção de uma nova central nuclear. Adicionalmente, China e Argentina reconheceram mutuamente a legitimidade dos pleitos territoriais nos quais estão envolvidas: Taiwan, para a China, e as Malvinas, para a Argentina.
Do ponto de vista da Argentina, todos esses movimentos nas relações internacionais podem ser considerados como uma tentativa do país de exercer a autonomia estratégica possível perante os EUA. Na Rússia, em áudio vazado não intencionalmente à imprensa, Fernández reclamou a Putin sobre a grande dependência que a Argentina tinha dos EUA e do FMI, e manifestou seu desejo de que o país diversificasse relações.
Assim, os BRICS – em conjunto com a aproximação bilateral com a China e a Rússia – seria uma peça que se encaixaria no tabuleiro da política externa argentina. Para China e Rússia, que têm consolidado parceria tendo como base o enfrentamento do expansionismo estadunidense, é interessante encorajar esse tipo de autonomia em outros países.
E o Brasil?
No governo Bolsonaro, a posição do Brasil perante os BRICS tem sido no sentido de esvaziar o conteúdo político do agrupamento, atribuindo a ele um papel marginal na política externa. Enquanto o governo Fernández parece enxergar nos BRICS uma plataforma de inserção da Argentina no mundo, o Brasil tem desdenhado do mecanismo enquanto instrumento capaz de transformar a qualidade da política internacional brasileira. Sobre o pleito de ingresso argentino, o Itamaraty informou não haver discussões para entrada de novos membros no momento, furtando-se a exibir posicionamento sobre o tema.
De um lado, como defendeu o ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim, a entrada da Argentina nos BRICS pode ser positiva tanto para o Brasil como para a região. Seu ingresso pode ajudar a diminuir a desigualdade dentro do agrupamento, aumentando o peso da América do Sul nos BRICS. Poderia ainda abrir novas possibilidades de intervenção para os BRICS, principalmente por meio do NBD – no qual o Uruguai ingressou no ano passado – para melhorar a infraestrutura regional, especialmente do Cone Sul.
Por outro lado, uma possível entrada da Argentina, da forma como está se desenhando até agora, escancara a perda de protagonismo do Brasil. É fato que Bolsonaro tem sido hostil ao presidente argentino desde antes de Fernández tomar posse. Contudo, chama atenção que o caminho para a possível inclusão no BRICS tenha sido a Rússia e a China, e não o Brasil. Segundo apurou a Folha, o pedido de ingresso argentino gerou surpresa no governo brasileiro.
De toda forma, o episódio é representativo do limbo que o governo Bolsonaro colocou o Brasil dentro de sua própria região, com perda de condições para exercer qualquer papel de liderança e mediação das relações da América do Sul com o mundo, mesmo com grupos nos quais o Brasil tem membresia, como os BRICS.
Publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2022 no Brasil de Fato.