O acordo anglo-ruandês sobre refugiados e imigrantes

 

02 de maio de 2022

Por Gabriel de Castro Soares, Flávio Thales, Juana Lorne, Heuler Costa Cabral, Letícia e Mohammed Nadir (Foto: Unsplash)

 

O acordo assinado entre o Reino Unido e o país africano Ruanda, em 14 de abril,  tem gerado muita polêmica, ao questionar especialmente o Reino Unido com respeito às convenções e tratados internacionais que salvaguardam os direitos dos imigrantes e refugiados. Os dois países anunciaram que os refugiados que chegarem ao Reino Unido serão enviados para Ruanda, com recursos britânicos. As autoridades ruandesas aceitaram a responsabilidade de abrigar e processar os pedidos de asilo dos refugiados em território africano. Para especialistas, esta é uma estratégia do presidente ruandês Paul Kagame de se apresentar como uma liderança pró-ocidental e acobertar as violações dos direitos humanos, principalmente dos grupos políticos opositores.

A Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados é a Lei internacional de amparo aos refugiados, adotada em 1951 pelas Nações Unidas. Ela é baseada no Artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que declara que “toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”. A convenção (no seu Artigo 1) define como refugiado a pessoa que, por motivo de guerra ou perseguição política, religiosa, racial, etc. se encontra fora do seu país, e por temor a este fato, não quer ou não pode voltar ao seu país ou ao território onde morava. O país de asilo, por sua vez, deve acolher o refugiado sem discriminação, sem penalização e nem devolução ou deslocamento a um outro local onde o refugiado não se sente seguro e o refugiado gozará, sem as restrições que afetam outros estrangeiros, dos direitos fundamentais do ser humano, como educação, saúde, justiça, emprego, lazer etc. A convenção estabelece ainda que, mesmo aqueles refugiados que se encontram na situação irregular, que chegam diretamente da fuga de perseguição nos seus países sem autorização, devem ser acolhidos sem restrições, a não ser para mantê-los no “asilo” a fim de regularizar os seus estatutos como refugiados, apresentando e explicando às autoridades as razões aceitáveis do seu refúgio.

Ruanda possui uma histórica relação como receptora de refugiados, estabelecendo acordos, alguns destes questionados por grupos de direitos humanos, com outros países e organizações para a transferência de migrantes irregulares ao seu território, tanto para reassentamento quanto para espera do processamento de suas solicitações de asilo. O primeiro acordo internacional documentado do tipo, envolvendo o governo de Kigali, foi para o recebimento de deportados de origem africana -a maioria composta por sudaneses e eritreus- vindos do Estado de Israel, todos requerentes de um programa de “saída voluntária”. Além de Ruanda, a República de Uganda também fazia parte do acordo. Estima-se que entre 2014 e 2017, cerca de 4.000 pessoas foram deportadas entre as nações. Ambos os países se dispunham a oferecer as documentações e a mínima assistência necessárias para a permanência dos requerentes de refúgio e o programa era sustentado por repasses de capital israelenses intermediados pelas Nações Unidas. A parceria é lembrada como muito controversa em relatórios emitidos por organizações como o ACNUR e a International Refugee Rights Initiative (IRRI), que alegam pouca transparência sobre tais políticas e evidenciam que na grande maioria dos casos os refugiados não foram totalmente assistidos com documentação ou acesso a programas de auxílio. Os detalhes sobre o acordo chamaram a atenção da mídia em 2018, após o recuo de Benjamin Netanyahu, em decorrência de uma intensa pressão pública, sobre a discussão de obrigatoriedade do programa pela suprema corte do país, que tornaria a deportação financeiramente incentivada como contrapartida à detenção aos migrantes africanos, que era uma prática sistêmica. 

Em 2019, autoridades ruandesas, da União Africana e ACNUR, celebraram um acordo para o recebimento temporário de refugiados e solicitantes de asilo africano que vivem em centros de detenção na Líbia, que prevê que a opção pelo trânsito de refugiados seja voluntária. O programa surge como parte do plano de atenuar as pressões sobre o estado líbio, que enfrentava dificuldades para o monitoramento e fiscalização da entrada de refugiados -a missão da ONU na Líbia (UNISMIL) documenta continuamente casos de violência, prisões arbitrárias e violações de direitos em seu instável território – e resgate daqueles que zarpam de sua costa em direção aos países europeus.  

Apesar das críticas, o Reino Unido não hesitou em assinar com a Ruanda tal acordo que visa desembaraçar Londres de suas responsabilidades como potência e país democrático. 

Histórico do movimento “Back to Africa”

A proposta britânica para promover o “retorno” de refugiados africanos se assemelha a programas do século XIX, em que estadunidenses e britânicos reservaram áreas para as populações negras recém-emancipadas ou empobrecidas em projetos de colonização de terras que deram origem a países como Libéria e Serra Leoa. 

O movimento Back to Africa é elemento importante da história ocidental que permeia as conexões transcontinentais e nos ajuda a compreender parte das dinâmicas transatlânticas África-Américas e suas possíveis influências nas relações Brasil-África. Em processo desde o início do século XIX, o movimento Back to Africa atuava a partir de campanhas para estimular ondas migratórias de afro-americanos livres e libertos em direção à África, como uma forma de (re)conhecimento e resgate de suas origens e ancestralidade. Esses movimentos de pessoas vindas, em sua maioria, a partir dos Estados Unidos e Caribe, culminaram na fundação de colônias de pessoas que retornavam à África, ocupando a costa do continente, mais especificamente nas regiões da Libéria e Serra Leoa, e acabou por influenciar o surgimento de lideranças nos campos da política e da religião, que atuavam para amplificar essa corrente de pensamento com relação aos significados que carregavam o processo migratório que envolviam a volta ao continente e a ocupação do território, em uma tentativa de transgredir a lógica racista e colonial inicialmente aplicada aos processos migratórios da população negra, na qual certos grupos da sociedade americana defendiam que essa parcela da população, tida como indesejada, deveria retornar ao continente africano. Pensadores como Marcus Garvey, conhecido como o grande idealizador do movimento, preconizavam um resgate das sociedades africanas, estimulando que essas pessoas deixassem para trás a sociedade escravista do Estados Unidos, onde, mesmo que em condição de libertos, continuavam enfrentando preconceito, desigualdades e inúmeras limitações. 

A política australiana para refugiados e suas similaridades com a proposta britânica

Tais políticas migratórias que o governo britânico pretende iniciar têm aspectos que não são novidades no histórico das relações de alguns países com refugiados. Podemos encontrar similaridades na política australiana, que desde 2013 usa de alternativas consideradas preocupantes por organizações como a ONU. Com a chegada de um grande número de refugiados em 2013, cerca de 20.587, as políticas australianas para refugiados passaram a ter um aspecto de tentativa de desencorajamento para aqueles que pensassem em pisar em suas terras de maneira ilegal. O governo australiano enviou cerca de 3 mil pessoas, entre os anos de 2013 e 2017, a uma ilha chamada Manus, em Papua Nova Guiné. Nova Guiné é considerado um lugar extremamente perigoso, além de ter problemas sérios com as condições básicas de saúde de seu povo, e conta com a alcunha de ser um dos dez países mais violentos para mulheres, com cerca de 70% delas vítimas de abuso sexual. 

Com o acesso a tratamento básicos tão problemático, viver nas prisões torna-se uma sentença de morte. Devido às diversas violações, já foram contabilizados suicídios e muitas outras tentativas de fuga pelos refugiados. Em 2017, houve uma tentativa de fechamento dessas prisões consideradas ilegais pelo governo da Papua Nova Guiné, gerando grande transtorno. Os refugiados resistiram por cerca de 20 dias, mas a polícia australiana invadiu o local, e os tirou de lá à força. Seiscentos imigrantes foram forçados a seguir para 3 centros de transição, mas apenas 200 aceitaram e os outros permaneceram na prisão sem energia elétrica e abastecimento de água.

Referências:

CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951. Disponível em: https://bit.ly/3OCiXWZ. Acesso, 25 de abr de 2022

SOUZA, Mônica Lima et al. Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil: 1830-1870. 2008. Disponível em:

https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_SOUZA_Monica_Lima_e-S.pdf 

https://baoba.org.br/saiba-quem-foi-marcus-garvey/

Israel suspends plan to resettle African asylum seekers despite deal (The Guardian) https://www.theguardian.com/world/2018/apr/02/israel-agrees-un-deal-scrap-plan-deport-african-asylum-seekers 

Milhares de pessoas detidas ilegalmente na líbia https://www.dw.com/pt-002/milhares-de-pessoas-detidas-ilegalmente-na-l%C3%ADbia/a-60456517

Ruanda receberá milhares de refugiados vivendo em centros de detenção na Líbia https://news.un.org/pt/story/2019/09/1686262

Rwanda’s history of receiving deportees raises concerns for potential UK scheme (The Guardian) https://www.theguardian.com/world/2018/apr/02/israel-agrees-un-deal-scrap-plan-deport-african-asylum-seekers 

Report International Refugee Rights Initiative: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/IWasLeftWithNothing.pdf 

UNHCR concerned over Israel’s refugee relocation proposals https://www.unhcr.org/news/press/2017/11/5a0f27484/unhcr-concerned-israels-refugee-relocation-proposals.html

BBC – Papua Nova-Guiné, o país onde 2 de cada 3 mulheres são estupradas https://www.youtube.com/watch?v=e_FlGDaexjo 

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/27/internacional/1509094341_467132.html

https://visao.sapo.pt/atualidade/mundo/2018-11-20-o-drama-dos-homens-esquecidos-da-ilha-de-manus/ 

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