02 de maio de 2022
Por Bruna Belasques, Dante Apolinario, Gabriel Santos Carneiro, Natália Martinho de Souza Nascimento, Pedro Vahamonde Rangel (Foto: Unsplash)
Desde a eclosão da guerra da Rússia contra a Ucrânia, os mercados financeiros internacionais vêm se comportando de forma atípica com relação ao Brasil se comparado ao que aconteceu em outras situações de incerteza geopolítica combinadas com o aumento dos juros nos EUA. Considerando a aversão ao risco, esperava-se uma fuga de capitais para economias e moedas consideradas mais estáveis, ou seja, o dólar, e outros ativos de menor risco. Há de se considerar ainda as pesquisas de opinião, que continuam apontando uma vantagem para o candidato sempre visto com desconfiança pelos mercados financeiros, Luiz Inácio Lula da Silva.
Contudo, na contramão de boa parte do mundo, o real se valorizou consecutivamente nas 16 primeiras semanas do ano, mesmo diante do início das tensões. Com a invasão, em 24 de fevereiro, essa tendência se fortaleceu. Consequentemente, apesar de apresentar uma ligeira queda no início do conflito, o índice Ibovespa, que mede o desempenho dos principais ativos negociados na Bolsa de Valores de São Paulo, esteve em alta durante o mês de março e nas primeiras semanas de abril. Em outras palavras: em vez de saídas de capitais financeiros, houve um aumento das entradas. Nos primeiros dois meses do ano entraram quase US$70 bilhões de capitais financeiros, o equivalente a 70% do total em 2021.
Entre 5 de janeiro e 5 de abril, o real foi a moeda que mais se valorizou (23,32%) entre as 22 mais negociadas no mundo, considerando tanto moedas de economias emergentes quanto de países desenvolvidos. Assim, o dólar caiu diante do real de R$5,71 para R$4,63 nesse período.
O que era de se esperar
A expectativa de saída de capitais, seguida de uma desvalorização do real, é baseada na nossa própria recente história econômica. Um primeiro exemplo foi em 1979, quando, diante da alta inflação nos EUA, o Federal Reserve Bank (FED) aumentou de forma brusca suas taxas de juros.
As consequências para o Brasil, amplamente retratadas na literatura de história econômica brasileira, foram dramáticas. O modelo de crescimento econômico pautado pelo endividamento externo viu-se diante de uma súbita escassez de capitais dispostos a financiar o desenvolvimento nacional, e a dívida externa elevou-se enormemente, uma vez que os empréstimos haviam sido contratados a taxas de juros flutuantes.
Na década de 1990, após a abertura da conta de capital e flexibilização geral das economias, vários países latino-americanos, entre eles o México e o Brasil, atraíram muitos desses fluxos financeiros. O que parecia uma bênção tornou-se um inferno na hora em que esse capital de curto prazo saiu do país diante da percepção de instabilidade e/ou possibilidades de lucros maiores em outras praças. A primeira grande crise financeira nesse estilo foi no México, em 1994, conhecida como “efeito tequila”. A saída de capitais gerou de imediato também desconfiança com relação ao Brasil, e o governo teve de aumentar as taxas de juros a valores astronômicos (40%) para convencer esses capitais a ficarem.
Depois vieram várias outras desse tipo, a asiática (1997) e particularmente a russa (1998), a partir da moratória da dívida daquele país, que teve um impacto direto sobre o Brasil com saídas de capitais e forte desvalorização. O mesmo voltou a ocorrer em 2008, com a crise financeira global. E ainda tivemos o que é conhecido como “efeito Lula” em meados de 2002. Quando as pesquisas mostraram uma possibilidade real de Lula ganhar as eleições, houve uma fuga de capitais financeiros, que, ao saírem do país, provocaram uma forte desvalorização, que provocou pressões inflacionárias com o aumento da taxa de juros pelo Banco Central.
Como explicar que agora tenha sido diferente?
Primeiro, há de se considerar a alta generalizada no preço de commodities provocada pela guerra, e turbinada pelas sanções econômicas impostas à Rússia e Bielorrússia, e a posição internacional do Brasil como grande produtor de matérias primas, em particular as agroexportações, mineração e, cada vez mais, petróleo. Em poucas palavras, frente ao cenário de incerteza, escassez e aumento dos preços, os produtores brasileiros ganham proeminência no mercado global em função de sua estabilidade e sua alta competitividade que garante expressivos superávits na balança comercial.
Um segundo fator é a elevação da taxa básica de juros (Selic), que compensa a política monetária mais restritiva do banco central dos EUA (FED), tornando o Brasil um país convidativo aos investimentos externos, em particular os financeiros de curto prazo, promovendo a acumulação de reservas internacionais e a valorização do real. Outra questão a ser considerada é a alta liquidez dos mercados financeiros, o que significa que há muito dinheiro no mundo que, diante de crise e instabilidades em determinadas partes do mundo, pode ficar parado ou procurar oportunidade em outras praças. E há de se lembrar também que o Brasil não está envolvido diretamente na guerra, não participa das sanções e tem parcerias comerciais diversificadas.
O Brasil passou, assim, por uma situação ímpar nos primeiros dois meses da guerra, recebendo capitais que estão abandonando outros mercados e moedas historicamente mais seguras que a nossa, como o euro e o iene japonês. Entretanto, em que medida essa entrada maior de capitais significa uma melhora do cenário econômico nacional? Quais são as possibilidades para o Brasil diante desta situação particular? E o quão estáveis são esses fluxos, considerando que podem sair a qualquer momento?
A maior procura por commodities brasileiras começou no ano passado. O aumento da demanda, naquele momento, decorria em grande medida da retomada das atividades produtivas que foram reprimidas durante a pandemia. Houve volumosos planos de reconstrução com investimentos públicos, particularmente na Europa e nos EUA, mas não só. Assim, o preço dos commodities, sobretudo alimentos e energia, já estava aumentando. Quando começaram as tensões seguidas da invasão, essas tendências se intensificaram.
A guerra tem afetado negativamente a oferta de alimentos e metais por parte da Ucrânia, enquanto a Rússia e Bielorrússia têm sido alvo de sanções comerciais, o que tem, de forma direta ou indireta, restringido as exportações de petróleo, minérios, grãos e outros produtos russos. Em outras palavras, se já havia uma crescente demanda de commodities pelo mundo, provocando inflação, esta tende a aumentar ainda mais com a redução da oferta. E essas situações também estimulam a atuação de especuladores de todo tipo, que enxergam oportunidades de lucro em curto prazo.
As empresas brasileiras ainda têm outra vantagem em relação a outros países emergentes. Além de cerca de 31% das exportações brasileiras se direcionarem à China, uma economia que em um primeiro momento tinha se saído bem e rápido da pandemia, o Brasil possui uma boa diversidade de parceiros comerciais.
Mais um fator que tem estimulado a entrada de capital especulativo no Brasil é a elevação da taxa de juros (Selic), que, em abril, já estava em 11,75% ao ano. De acordo com levantamento realizado pela Infinity Asset, o Brasil apresenta nesse momento a segunda maior taxa de juros real – quando a inflação é descontada – do mundo, ficando atrás apenas da Rússia. Isso facilita o chamado “carry trade”: tomar dinheiro emprestado a juros reais baixos em outras praças e vir para o Brasil para ganhar com as taxas maiores. Isso funciona sobretudo quando há perspectiva de estabilidade ou valorização do real, porque esse capital financeiro opera no país em real e suas metas de lucro são em dólar. E, dentre os países emergentes, o Brasil é o que tem oferecido oportunidades de lucrar sem grandes riscos geopolíticos ou de instabilidade política em comparação com outros países. Ou seja, o Brasil se aproveitou, portanto, do que é chamado “roteiro de carteira” dos investidores internacionais, em “economês”.
Capitais para quem?
Mas será que a entrada de capitais financeiros no país ajuda a gerar também maiores investimentos no setor produtivo, que levariam ao aumento de emprego, produtividade e renda? Por enquanto, o cenário socioeconômico brasileiro não reflete esse otimismo. Com 12 milhões de desempregados e 116,8 milhões de pessoas com algum tipo de insegurança alimentar, a pergunta literalmente de milhões é quem se aproveita do aumento da entrada de fluxos financeiros no Brasil?
Ao aportar no Brasil, os capitais financeiros se convertem em reais por meio de operações de câmbio. As moedas estrangeiras trocadas passam a integrar as reservas nacionais e a demanda por reais resultante promove a apreciação da moeda nacional. Tal apreciação eleva o poder compra do real frente às demais moedas do mundo, de forma que, dito de maneira simples, fica mais barato importar e viajar.
Contudo, isto não se traduz automaticamente em um aumento do consumo nacional para os trabalhadores. As camadas mais abastadas podem se beneficiar com esse aumento do poder de compra do real e a facilitação da importação de produtos, por exemplo. Mas, por outro lado, o barateamento das importações contrasta com a recente elevação dos preços nacionais, especialmente dos bens de consumo que compõem a cesta básica.
Assim, para as camadas mais pobres não há expectativa de benefícios decorrentes da vinda de capitais. Para elas, fica o ônus do aumento da inflação, sobretudo de alimentos e energia. Os alimentos estão mais caros no Brasil porque seguem os preços internacionais, não obstante o fato do Brasil ser ele mesmo um grande produtor e exportador. Isso vale ainda mais no caso de petróleo, onde se considera completamente o custo de produção interna.
Estes benefícios circulam na esfera financeira e procuram setores de commodities de exportação. Tal situação reforça a reprimarização da economia brasileira. Ou seja, não gera um dinamismo na economia. E isso explica porque o que pode parecer uma boa notícia (a confiança no Brasil com a entrada de capitais e valorização do real) tem pouco potencial de gerar investimentos produtivos e tecnológicos, aumentar a produtividade e sobretudo gerar emprego de qualidade.
Ou seja, não é garantido que a entrada de fluxos financeiros no país se reflita necessariamente em aumento do investimento produtivo. A maior parte do capital que se desloca hoje para o Brasil é volátil e de curto prazo, cujos destinos são a bolsa de valores e outros ativos financeiros. Essa captura por parte do setor financeiro pode até desestimular o investimento produtivo, alimentar as grandes fortunas e aumentar ainda mais a concentração de renda e riqueza.
Cabe ressaltar ainda que a Taxa Selic a 11,75%, com projeção de maiores elevações nos próximos meses, também contribui para desincentivar investimentos produtivos e acentua as desigualdades, uma vez que financiamentos (de casas, veículos, etc) ficam mais caros, enquanto os lucros financeiros se elevam.
A vulnerabilidade não desapareceu
O problema não é somente que o governo não procura implementar políticas de distribuição de renda e alocação dos recursos direcionado para geração de emprego e renda com investimentos em tecnologia. Com a mesma facilidade que o capital financeiro entrou, ele também pode sair, se achar que há outras oportunidades melhores. Não há nenhum compromisso com a estabilidade, muito menos com o desenvolvimento do país.
E foi exatamente isso que aconteceu na última semana de abril, quando houve uma queda acentuada do real. Dois fatores explicam: nos EUA, o FED optou por acelerar o aumento da taxa de juros básica nos próximos meses. E, mais importante nesse momento, o impacto da política de lockdown na China diante do aparecimento de novos casos de Covid, primeiro em Xangai e depois atingindo também Pequim. Esses lockdowns diminuem as atividades do maior mercado brasileiro, além de novamente impactar as cadeias de fornecimento. Se houver realmente uma nova onda de saídas com desvalorizações consistentes, isso aumentará as pressões inflacionárias e pode levar o Banco Central a aumentar os juros ainda mais. E adivinha quem vai sofrer mais? Exatamente as camadas da população que não aproveitaram nada da bonança. Está na hora de repensar o modelo de desenvolvimento do Brasil.
Texto publicado originalmente em 02 de maio de 2022 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.