Por que o cinema argentino faz tanto sucesso?

02 de maio de 2022

Por Caio Vitor Spaulonci, Giovana Martins, Gabriel Calil Schmidt,  Laryssa Bastos Melissa Souza e Tatiane Anju Watanabe(Foto: Unsplash)

 

O cinema argentino tem atingido um público crescente no plano internacional. O país é  o único latino-americano a ganhar o Oscar duas vezes. A primeira foi com ’A História Oficial”, em 1985, e a segunda com  ‘’O segredo de seus olhos”, em 2009. Especialistas apontam o sucesso do cinema argentino a partir da sua parceria com produtores europeus, principalmente espanhóis, levando-se em conta que não há um forte investimento público para o setor, que vem sofrendo com a crise econômica 

Apesar das dificuldades na distribuição, a Argentina realiza produções relevantes desde os anos 1930, figurando entre as três maiores indústrias cinematográficas da América Latina. Até a virada do século, produzia cerca de 20% dos filmes da região. Os dois primeiros postos cabiam ao México (45%) e ao Brasil (25%). Nos anos posteriores, Argentina e México ampliaram sua influência internacional no audiovisual..

O número de salas disponíveis em 1948 na Argentina era de 1690, pouco distante dos números do Brasil (1790) e do México (1729). Mesmo com novas salas construídas, o hábito de ir ao cinema declinou gradativamente entre 1950 e 1989 em toda a América Latina, atingindo seu menor patamar nos anos de crise da dívida externa, na década de 1980. A rede de locais de exibição voltou a crescer razoavelmente a partir de meados da década seguinte. Nos anos 2010, o México tinha 7 vezes mais salas e o Brasil 3,5 vezes mais do que a Argentina. Vale ressaltar que a distribuição cinematográfica sempre foi amplamente dominada pela produção estadunidense, o que dificulta o acesso do público a fitas locais.

Outro ponto a ser ressaltado é a preferência do espectador pela produção nacional após os anos 2000, em toda a América Latina. Na Argentina, por exemplo, entre 2009 e 2018, a média de participação de filmes nacionais no total de exibições foi de 13,3%, com pico de 17,84% em 2014. Esse foi o ano de lançamento de ‘Relatos Selvagens’, uma das maiores bilheterias do país (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, INCAA, 2019). No Brasil, são encontrados números semelhantes: no mesmo período, a média foi de 14,11% para filmes locais.  

O ascenso platino no gosto popular tem também como causa a profissionalização de artistas, diretores, roteiristas e técnicos – em especial portenhos – nas últimas décadas. Já se fala numa  “tradição de cineastas argentinos em constante produção”, conforme relata Axel Kuschevatzky, produtor do consagrado “O segredo dos seus olhos”.

O sucesso no Brasil 

Vale a pena comparar o cinema argentino com o brasileiro, apesar do vizinho ter uma economia quatro vezes menor e uma população que equivale a 20% da brasileira. Tanto em termos absolutos quanto relativos, sua produção é maior que a nossa, como pode ser observado no gráfico abaixo. 

Gráfico 1: Lançamentos de filmes nacionais na Argentina e no Brasil. Fonte: NAZARENO, 201 apud ANICE, 2016; INCAA, 2016.

 

E ao observar a receptividade da produção de cada país nos seus vizinhos, no Brasil, os filmes argentinos possuem um público considerável. A recíproca não é verdadeira.

 

Gráfico 2: Números de espectadores para filmes do país vizinho. Fonte: NAZARENO, 2017 apud ANCINE, 2016; INCAA 2016. 

 

Isso ocorre, segundo Claudio Nazareno (2017), por dois motivos principais. Primeiro porque os brasileiros exportados geralmente são filmes que já não fizeram sucesso nem mesmo aqui, diminuindo as chances de isso acontecer fora. Já os argentinos estreados no Brasil são produções de sucesso na origem, tendo vários atingido o topo da posição entre os mais vistos. 

Em segundo lugar, os filmes campeões de bilheteria nos dois países são geralmente produções que tiveram a participação de grandes grupos de comunicação, como a Globo Filmes no Brasil, e a Telefé na Argentina. E nenhum dos filmes brasileiros com a participação da Globofilmes foi lançado na Argentina, enquanto os filmes argentinos estreados no Brasil são em sua maioria co-produzidos pela Telefé.    

Argentina e Brasil em festivais internacionais

Ao se contabilizarem as premiações em festivais internacionais, a Argentina leva vantagem, mas não ganha de forma disparada. 

Como já comentado, a Argentina é o único país latino-americano a levar duas estatuetas de ouro do Oscar na categoria de filmes estrangeiros. E também é o país que mais recebeu indicações nessa categoria, com um total de sete vezes, enquanto o Brasil foi indicado quatro. No British Academy of Film and Television Arts (Bafta), uma espécie de Oscar britânico, os dois países empatam. O Brasil sagrou-se uma vez com o melhor filme em língua estrangeira (‘Central do Brasil’, 1998) e a Argentina também uma (‘‘Relatos Selvagens’, 2015).

No Festival de Cannes, o Brasil ganhou uma Palma de Ouro em 1962 com ‘O Pagador de Promessas’, enquanto a Argentina ainda não recebeu tal distinção. No Festival de Berlim, a Argentina recebeu o Urso de Prata com ‘El Abrazo Partido’ (2004) e com ‘El Otro (2007), enquanto o Brasil levou o Urso de Ouro em duas oportunidades: ‘Central do Brasil (1998) e  ‘Tropa de Elite’ (2008). 

Já no Festival de Veneza, analisado a partir de 2009, a produção argentina ‘El Chan’ conquistou o Leão de Prata em 2015, enquanto o Brasil não obteve premiação no período. O prêmio de melhor documentário no festival de Sundance foi destinado duas vezes ao Brasil com ‘Manda Bala’ (2007) e ‘Lixo Extraordinário’ (2010). E finalizando, no Festival de Mar del Plata o cinema argentino obteve dois prêmios de melhor filme com ‘Buena Vida Delivery’ (2004) e ‘Abrir Puertas y Ventanas’ (2011), enquanto o Brasil sagrou-se uma vez com ‘Separações’ (2003). 

 

Acesso ao cinema na Argentina 

 

Em 2008, o Mercosul acordou com a União Europeia o investimento de 1.8 milhões de euros para que fossem construídas de 30 salas na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, destinadas exclusivamente à exibição de filmes regionais (ANDRIETTA, 2020, p.3). Essa iniciativa influenciou o INCAA a se associar com as principais redes de cinema do país, em 2015, para incentivar a digitalização de suas salas.  

 

Como resultado, os pequenos e médios distribuidores não foram abarcados pela medida e apenas as grandes distribuidoras foram fortalecidas. Assim, apesar da produtividade do cinema argentino, a exibição dessas obras não é tão expansiva, principalmente para as regiões mais distantes dos grandes centros. 

 

Uma possível solução para o problema é o streaming. As principais plataformas virtuais de filmes e séries argentinas são o Cine.AR Play e a Sala de Cine Virtual, que possuem em seus catálogos obras nacionais que podem ser assistidas gratuitamente. Assim sendo, não só o acesso ao cinema toma uma nova dimensão mais democrática, como também é uma forma de divulgação e distribuição dessas produções.

 

A influência europeia 

O dramaturgo, ator, diretor e professor de comunicação brasileiro atuante em Buenos Aires Nicholas Dieter analisa as formas possíveis de se arrecadar recursos para as produções audiovisuais. Segundo ele, há apenas três maneiras: fazendo cinema independente e arrecadando dinheiro entre os diretores, roteiristas e produtores; utilizando os recursos bem limitados do INCAA e Enerc (Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica, derivada do Incaa); ou através de contatos no exterior que financiem as obras. 

O que acontece, na maioria das vezes, é que o INCAA e o Enerc tornam-se elitistas e fornecem baixíssimos orçamentos para a produção de filmes argentinos. O INCAA é uma agência do governo argentino, responsável por promover a indústria cinematográfica, financiar produtoras e apoiar novos cineastas argentinos. E, justamente por ser uma agência estatal, a  distribuição de recursos acontece em esquema piramidal e de modo centralizado, resultando em pouco orçamento para cada produção solicitante. 

A partir disso, é que entra a astúcia dos produtores argentinos em conseguir financiamento estrangeiro, como acontece com nomes conhecidos, a exemplo de Damian Snifron (“Relatos Selvagens”) e Juan José Campanella (‘O segredo de seus olhos’). 

Muitas dessas superproduções são realizadas em parcerias com canais de TV estrangeiros, principalmente espanhóis, franceses e alemães.  É o que comenta o produtor Axel Kuschevatzky (‘O segredo de seus olhos’), ao ser perguntado se o cinema argentino ainda dependia de coproduções externas: Os grandes filmes sim. Nosso sócio mais forte é a Espanha, mas essa parceria é cada vez menos interessante para eles. Filmar na Argentina é caro, temos um mercado fechado, o consumo interno de cinema caiu muito. Sempre achei que nosso sócio natural deveria ser o Brasil. É uma pena que não seja assim”. 

 

Crise orçamentária

 

A pandemia do novo Coronavírus modificou diversos aspectos da sociedade. No setor cultural não foi diferente: o cinema sofreu com diversos projetos cancelados, produções colocadas em espera e lançamentos adiados. Contudo, a Argentina já enfrentava uma turbulência em seu setor audiovisual. Em anos gloriosos, o país chegou a levar oito filmes ao Festival de Cannes. Em 2019 apresentou apenas dois.

O país enfrenta uma crise econômica e a situação se aprofundou com a desvalorização do peso e a alta da inflação. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec), a média anual no primeiro trimestre de 2022 fechou em 55,1%, a maior taxa nos últimos 20 anos. 

Com a desaceleração econômica houve uma queda no setor, e projetos mais lucrativos foram priorizados. Além disso, o orçamento do INCAA para subsídios tem oscilado muito. Em 2018, a queda foi de 40% e em 2019 atingiu mais 20%.

Em abril último, a sede do INCCA foi alvo de protestos por parte dos trabalhadores do setor. Exigiam a renúncia do chefe do Instituto, Luis Puenzo. O Coletivo de Cineastas denunciou, por meio de uma carta aberta, o ministro da Cultura, Tristán Bauer, também cineasta. O ato foi marcado por repressão, com muitos manifestantes presos e feridos. Os ativistas pediam a modificação do Plano de Desenvolvimento, que prejudica o setor, segundo o Coletivo.

Após os protestos, o Ministro afirmou que o governo tem o objetivo de promover a produção de conteúdos nacionais, mas que ao mesmo tempo depende do Legislativo. Na ocasião, afirmou: “Haverá mudanças no INCAA, pois a intenção é resolver uma situação tensa”. 

A crise cinematográfica argentina vem de alguns anos. O período de Maurício Macri no governo (2015-19) foi marcado por acentuada queda nos financiamentos. Mesmo assim, suas produções seguem ganhando público no país e no exterior.

 

Referências: 

ANDRIETTA, Gabriela. A Reposição Tecnológica das Salas de Cinema na América Latina. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º. São Paulo, 2020.

 

GONZÁLEZ, Roque. Argentina:  distribución  cinematográfica,  mercados  y  políticas públicas. Revista Eptic, Vol. 17, n. 3, set-dez. 2015.

 

INCAA – INSTITUTO NACIONAL DE CINE Y ARTES AUDIOVISUALES. Anuario INCAA de la Industria Cinematográfica y Audiovisual. Buenos Aires, 2019. Disponível em: http://www.incaa.gov.ar/wp-content/uploads/2019/06/Anuario-INCAA-2018-DIGITAL.pdf . Acesso em: 27 abr. 2022.

NAZARENO, Claudio. Cine Argentino – por que ele é bom… será? Revista Eptic, Vol. 19, n. 3, set-dez. 2017.

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