BRICS recuperam protagonismo com a guerra na Ucrânia

02 de maio de 2022

 

Por Flávia Mitake Neiva, Vitor Hugo dos Santos, Ana Luísa da Cunha e Lais Pierini (Foto: Unsplash)

 

O BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) voltou a ser objeto de atenção do mundo. O grupo passou por desafios nos últimos anos: desavenças fronteiriças entre China e Índia, a perda do dinamismo econômico no Brasil e na Rússia e mudanças na direção da política externa de alguns membros que contribuíram para lhe retirar peso geopolítico. Contudo, as recentes discussões acerca da entrada da Argentina no agrupamento e as posições assumidas por cada um dos Estados no conflito russo-ucraniano suscitaram questionamentos sobre o fortalecimento do grupo. 

O fato dos demais membros do agrupamento, de um lado, não apoiarem a intervenção militar da Rússia, mas também, de outro, não aprovarem as posições da OTAN e seus aliados chamou a atenção. Além do mais, todos os países do BRICS rejeitam firmemente as sanções econômicas e entenderam que é preciso achar um acordo de paz que contemple as legítimas preocupações de defesa de todos os envolvidos. 

As abstenções de China, África do Sul e Índia nas votações na ONU voltadas a  condenar a Rússia nos termos ocidentais, e as ressalvas expressas pelo Brasil, embora tenha votado a favor em algumas resoluções (conforme votos distribuídos na tabela 1 abaixo) podem ser vistas como um obstáculo ao plano adotado pelas forças lideradas pelos EUA de aproveitar a guerra para reforçar sua hegemonia.

Tabela 1 – Posição dos demais países do BRICS em resoluções da ONU 

Resoluções

Brasil

Índia

China 

África do Sul

Condenação à invasão da Ucrânia no Conselho de Segurança da ONU (27/02)

Favorável

Abstenção

Abstenção

(Não está no Conselho)

Condenação à invasão da Ucrânia na Assembleia Geral da ONU (02/03)

Favorável

Abstenção

Abstenção

Abstenção

Suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU (07/04)

Abstenção

Abstenção

Contra

Abstenção

Fonte: Elaboração dos autores, segundo dados públicos das votações

 A posição sul-africana: sem esquecer a história

Conforme tabela 1, percebe-se que a África do Sul tem optado por se abster nas votações que condenam a Rússia. Na análise das declarações oficiais sul-africanas sobre a Guerra da Ucrânia nota-se que há semelhança com aquelas emitidas pelo governo russo, evitando-se o uso de termos como “agressão” e “invasão”. Embora o Ministro das Relações Exteriores sul-africano Naledi Pandor inicialmente tenha ensaiado uma condenação a Rússia, o Congresso Nacional Africano (ANC) e Pretória forçaram uma mudança na posição.

Tradicionalmente a África do Sul exerce posicionamentos críticos a algumas intervenções externas, tendo condenado a ocupação da Palestina por Israel e a atuação da OTAN na guerra da Líbia. Dentre os pilares adotados pela política externa do presidente Matamela Cyril Ramaphosa, desde que assumiu o cargo em 2018, estão princípios como a defesa da democracia, direitos humanos e justiça, buscando uma linha de atuação que remonta a Mandela. Nesse contexto, uma África do Sul que se comporta de forma neutra diante de violações, tornar-se-ia contraditória e incoerente com seus próprios valores. Desse modo, como entender a posição do país?

Como uma tentativa de compreender as motivações sul-africanas, automaticamente se supõe incentivos econômicos, mas a Rússia não se encontra entre os principais parceiros comerciais do país. Uma questão que, contudo, chama a atenção é o histórico de cooperação entre a Rússia, então URSS, e o Congresso Nacional Africano (ANC) nos anos de 1980. Ao longo da Guerra Fria, Moscou concedeu apoio militar e financiamento para movimentos de liberalização no continente africano, como o caso da ANC durante o Apartheid. Além da África do Sul, também pode-se incluir o MPLA de Angola e o FRELIMO de Moçambique, países que também se abstiveram nas votações de resoluções propostas na ONU.

A postura sul-africana também é motivada pelo sentimento anti-imperialista característico da ANC, tendo em vista que o atual presidente chegou a declarar que a guerra poderia ter sido evitada se a OTAN tivesse considerado um possível aumento de instabilidade na região por conta de sua expansão no Leste Europeu. Nessa mesma declaração, insistiu na mediação e na neutralidade, afirmando que, apesar da insistência de muitos, não tomaria partido contra a Rússia e que, ao invés disso, buscaria o diálogo. Outra questão a ser mencionada é que a África do Sul tem em seu histórico o fato de ter sido objeto de sanções internacionais e, por experiência, considera o uso desse instrumento inadequado para resolver o conflito, bem como algo que provoca danos – inclusive a terceiros países – maiores do que os ganhos a serem alcançados pela coletividade.

A posição da Índia

Conforme tabela 1, a Índia também foi um dos países que se absteve durante as votações realizadas na ONU para condenar a ação russa na Ucrânia. No plano bilateral, mesmo em uma situação tensa no cenário internacional, tem havido diálogo com a Rússia. O Ministro das Relações Exteriores da Rússia visitou a Índia e conversou com o seu homólogo S. Jaishankar e com o Primeiro Ministro Narendra Modi. 

Ao verificar o contexto indiano, é possível inferir que o país vem adotando uma política independente com relação ao conflito. Esse comportamento está ligado tanto a interesses práticos quanto à sua tradição diplomática. Como no caso sul-africano, as relações de cooperação entre  Rússia e Índia foram estreitadas desde o período da guerra fria. Vale pontuar que não é a primeira vez que a Índia se abstém com relação aos conflitos territoriais da antiga União Soviética. Em 2014, com a anexação da Criméia, o posicionamento indiano foi o mesmo que o atual, de abstenção.

A Índia tem muitas questões de segurança com o Paquistão e a China. Ainda em maio de 2020, houve um confronto militar na sua fronteira com a China. A histórica cooperação com a Rússia, assim, é parte essencial da sua estratégia de defesa. Outro elemento que está pesando muito é a forma com a qual os EUA e o Reino Unido, antigo poder colonizador, exigem da Índia um alinhamento automático a suas posições frente à Rússia. Isso causou muita revolta na diplomacia e entre os formadores de opinião na Índia. 

No que se refere aos interesses econômicos, a Índia é o maior comprador de armamento russo. Nos últimos cinco anos, cerca de  23% das exportações bélicas da Rússia foram compradas pela Índia no valor aproximado de 6.5 bilhões de dólares, compondo cerca de 60% do armamento indiano. Além da questão bélica, o país também estaria se beneficiando com a compra de petróleo russo mais barato, chamando a atenção das forças ocidentais, uma vez que desde o início do conflito a compra de petróleo russo pela Índia já alcançou a marca de 16 milhões de barris. Ainda há a cooperação em energia nuclear, incluindo a construção de novas unidades da usina nuclear de Kudankulam, cidade localizada no sul da Índia.  

E o Brasil?

O Brasil se manteve firme na posição contra as sanções e em defesa de uma abordagem que visa a negociação possível. O país votou a favor da resolução que visava condenar a invasão na Assembleia Geral da ONU, mas participou nas negociações nos bastidores para abrandar a linguagem. Além do mais, não assinou uma declaração patrocinada pelos EUA emitida em seguida para enfatizar a mensagem da resolução. Pelo contrário, Ronaldo Costa Filho deu uma declaração de voto com ressalva e pesadas críticas à forma como o Ocidente – leia-se EUA – propôs lidar com a situação. Ou seja, apesar da pressão de alguns setores no Brasil, com destaque para veículos de imprensa que têm reproduzido a visão anglo-saxã sobre a guerra, o país não apoiou o cerco liderado por países da OTAN e seus aliados que se tentou fazer contra a Rússia na Organização Internacional do Trabalho e na Organização Mundial do Comércio. 

Posição dos BRICS?

Em declaração divulgada 14 de abril, após reunião conjunta de sherpas (parte de uma etnia tibetana, que vive no Tibet, Nepal e Índia), os BRICS incentivaram o diálogo Rússia-Ucrânia para a resolução do conflito, lamentando a situação humanitária ucraniana, mas manifestaram preocupação com o impacto que as sanções podem provocar para a recuperação econômica global, principalmente para os países em desenvolvimento. Embora o grupo BRICS não seja terreno para os países membros coordenarem sua política diante da guerra, chama a atenção alguns posicionamentos comuns. 

Em primeiro lugar a rejeição das sanções, que atingem fatalmente os países e camadas mais pobres pelo mundo afora, e não têm nenhum efeito no campo de guerra. Segundo, a necessidade de reconhecer que um acordo de paz exige levar em consideração as legítimas considerações de segurança de todos os envolvidos. E terceiro, uma rejeição forte, sobretudo na Índia e na África do Sul, à tentativa de usar a guerra para enquadrar os países do Sul Global aos interesses ocidentais.

A falta de uma veemente condenação da Rússia pelos outros membros do BRICS tem gerado pressões por parte de países europeus, EUA e da OTAN para que assumam posição crítica. O governo estadunidense tem mostrado preocupação com o comportamento indiano. Na última reunião de Biden e Modi, em 11 de abril, os EUA abordaram a possibilidade de redução da taxa de importação do petróleo russo por parte da Índia. Subrahmanyan Jaishankar, Ministro de Assuntos Exteriores da Índia respondeu que o petróleo que seu país importa em um mês é menos do que a União Europeia importa em uma tarde. No caso da África do Sul, a União Europeia tem feito constantes pressões. Com relação ao Brasil, o Secretário de Estado dos EUA chegou a telefonar ao seu par brasileiro para abordar a questão.

Se considerados os princípios do BRICS, reafirmados constantemente em suas declarações como a de Declaração de Nova Delhi, do ano passado, a deflagração da guerra pela Rússia  já indica um alinhamento contraditório aos objetivos do grupo, uma vez que, no parágrafo 2º a declaração afirma a “igualdade soberana de todos os Estados e o respeito por sua integridade territorial”.  Além disso, as violações russas do direito internacional e direitos humanos também ferem as declarações. Há de se lembrar, entretanto, que os BRICS sempre se colocaram contra o arbítrio internacional determinado pela força de sanções de grandes potências. 

O que se percebe, de toda forma, é que diante de uma realidade internacional imperfeita, na qual as armas usadas pelo Ocidente para lidar com o conflito, principalmente as sanções e tentativas de estrangulamento da Rússia, também são histórica e frequentemente usadas contra países do mundo em desenvolvimento por variados motivos, os BRICS – cada um por seus motivos próprios, não por resolução de grupo – optaram por não dar munição a tais propostas. As posições dos países, assim, de não condenação aberta da Rússia são individuais, mas claramente convergentes com relação a crítica às sanções. 

Tal convergência não significa que os BRICS superaram os desafios que limitaram sua atuação conjunta na política internacional nos últimos anos, mas certamente dá para dizer – por ora – que a posição de cada um dos países do grupo tem contribuído para dificultar o isolamento russo, principal objetivo da OTAN e dos EUA. E, mais importante, demonstra a vontade de todos os membros de defender uma maior autonomia do Sul Global. Em particular, é interessante acompanhar a posição da Índia. Com isso, paradoxalmente, o pós-guerra da Ucrânia pode estimular uma retomada da importância dos BRICS.

Texto publicado originalmente em 22 de abril de 2022 na coluna do OPEB no Opera Mundi.

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