Brasil mantém confronto na OMC sobre políticas de segurança alimentar

 

16 de maio de 2022

Por Mikael Servilha, Lourraine Milagres, Thais Venancio e Renata Alencar (Foto: Unsplash)

 

Em meio às múltiplas crises globais que atravessam o fraco crescimento econômico da última década – crise climática, pandemia de Covid-19 e o recente conflito na Ucrânia –, os índices de insegurança alimentar alcançam patamares altíssimos ao redor do mundo. Soma-se a isso, a alta inflação sobre os alimentos que, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), registrou o maior salto nos preços desde 1990 entre fevereiro e março de 2022. Mesmo diante desse cenário, o Brasil vem se opondo à uma solução permanente na Organização Mundial do Comércio (OMC) para que os países que mais sofrem com a fome implementem, adequadamente, os chamados programas de estoques públicos de segurança alimentar. 

 

Atualmente, Índia, Bangladesh, Bolívia, China, Equador, Egito, Indonésia, Jordânia, Quênia, Mali, Nepal, Paquistão, Filipinas, Arábia Saudita, Tanzânia, Tunísia, Zâmbia e Zimbábue fazem uso desse mecanismo. Na prática, os programas de estoque público para fins de segurança alimentar são políticas públicas de compra de alimentos por países em desenvolvimento para distribuição à população “quando uma pessoa não consegue ter acesso a alimentos nutritivos que atendam às suas necessidades e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”, de acordo com a FAO.

Como o livre-comércio confronta segurança alimentar e agricultura?

Os programas de estoque público esbarram no Acordo Agrícola da OMC, o qual, desde que entrou em vigor em 1995, restringe a aplicação dos programas ao estabelecer cotas máximas para as compras públicas. Por trás dessas limitações está o argumento de que tais programas públicos podem levar à distorção do comércio e dos preços de mercado, potencialmente prejudicando produtores de outros países. De outro lado, esses limites, que já se mostram bem restritivos para muitos países em desenvolvimento, estão estabelecidos de modo que cada aumento nos preços de mercado implica na diminuição da quantidade de alimentos permitida a ser adquirida. O que faz as restrições aumentarem em função da inflação acumulada no período. 

 

Por seu turno, essa condição aumenta o receio de que os limites permitidos não sejam suficientes para as necessidades alimentares dos países em desenvolvimento, o que torna difícil não extrapolá-los com a consequente sujeição à contestação legal por parte de outros países. 

 

Em decorrência desse temor, a demanda por espaço político para os programas alimentares chegou explicitamente à mesa das negociações multilaterais em 2002, por ocasião de uma primeira proposta do Grupo Africano. Depois de mais de 10 anos sem avanços concretos na OMC, entre 2013 e 2014 se alcançou resultados significativos dentro do “Pacote de Bali”, produto da 9° Conferência Ministerial da Organização – realizada em Bali, Indonésia. Entre outras deliberações subsequentes a essa conferência, foi acordada uma cláusula de paz provisória, requerida pelos países em desenvolvimento que temiam as consequências de violar os limites impostos. O objetivo da cláusula de paz foi proteger os programas existentes de contestação na OMC no caso do apoio exceder os limites do acordo. Para além disso, ficou decidido que essa cláusula provisória ficaria vigente até que uma solução permanente fosse acordada, na ocasião, definindo a 11° Conferência Ministerial (2017) como prazo para se alcançar tal solução, o que não se concretizou e ainda segue se arrastando.

 

Nesse contexto, os países que hoje demandam a solução permanente, em sua maioria, são integrantes do Grupo Africano e do G-33 na OMC e reivindicam que, enfim, a Ministerial de 2022 reconheça a legitimidade dos seus programas e garanta de forma definitiva adequado espaço político e segurança jurídica, como defendido por outras organizações, caso do UNCTAD.

 

No entanto, agora em 2022, pouco antes da 12° Conferência Ministerial,  o Brasil se coloca como um dos mais ferrenhos opositores à solução permanente da questão. Em reunião realizada em março último, a delegação brasileira afirmou que “o Brasil não aceitará o mandato ministerial existente” e junto com outros países pressionou também para empurrar a questão para a 13° Ministerial. 

 

Essa posição do Brasil bem impassível, mesmo diante do grave contexto mundial, é primeiramente não menos que intrigante, pois está sendo protagonizada por um país que, apesar dos fortes interesses agroexportadores, atualmente apresenta altos índices nacionais de insegurança alimentar. 

O Agro acima de tudo?

O último relatório sobre insegurança alimentar apresentado pela FAO, em 2021, aponta que, após permanecer praticamente inalterado por aproximadamente 5 anos, os níveis internacionais de subnutrição aumentaram de 8,4% para 9,9% da população mundial apenas de 2020 para 2021. Aproximadamente 12% da população global estava em situação de insegurança alimentar severa em 2020 (148 milhões a mais do que em 2019), e os maiores aumentos foram encontrados nas regiões da América Latina e Caribe, Ásia e África. 

Os dados corroboram que as regiões com países de baixa e média renda sofreram mais o impacto da insegurança alimentar. Cerca de 21% da população do continente africano é afetada pela fome. Na América Latina, o índice é de 9,1% e, na Ásia, 9%, salientando a importância da criação, promoção e adoção de políticas públicas internacionais voltadas à garantia da qualidade alimentar, saúde e dignidade para suas populações. 

 

Contemporaneamente, em março, no Brasil, o LSPA – IBGE previu uma safra recorde de 258,9 milhões de toneladas para o ano de 2022, cerca de 2,3% acima do obtido em 2021 (Agência IGBE, 2022). A produção agrícola do Brasil vem atingindo níveis cada vez maiores, destacando ainda mais o país no comércio internacional de commodities. Segundo o Panorama do Agro da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), o valor bruto da produção agropecuária atingiu R$1,10 trilhão em 2020, saltando para uma projeção de R$1,20 trilhão em 2021 (CNA, 2021). 

 

Atualmente, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de maiores exportadores de produtos agropecuários. Atrelado com os indicadores fornecidos pela AGROSTAT (Estatísticas de Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro) do primeiro trimestre de 2022, verifica-se que 33,62% da produção do agronegócio brasileiro é direcionada para a China, outros 16,35% para a União Europeia e 7,11% para os EUA.  Nota-se, portanto, que, mesmo com destacável capacidade produtiva, o Brasil  sofre com a crise de insegurança alimentar: a Rede PENSSAN disponibilizou, no último dia 04 de abril, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, onde aponta que, em 2020, menos da metade dos domicílios nacionais estariam em segurança alimentar (44,8%). Dentre os 55,2% restantes que experienciam alguma forma de insegurança alimentar, 9% deles apresentaram situação de insegurança alimentar severa: a fome.

 

Dentro desse quadro, ao focar unicamente nos interesses agroexportadores, a postura brasileira na OMC ignora um grave problema (e já bastante conhecido) domesticamente e bloqueia ações concretas a favor da segurança alimentar global. Os efeitos dessa posição alcançam os demais países em desenvolvimento, em situação tão complicada ou igual em relação à insegurança alimentar, agenda em torno da qual, há pouco mais de uma década, o Brasil atuava ativamente, nacional e internacionalmente.

Pontos relevantes sobre a atual posição brasileira e expectativa para a 12° Conferência Ministerial

Essa posição do Brasil pode ser um indicador do monopólio da elite do agronegócio brasileiro (em detrimento da autonomia do MRE) na definição da postura do país em certas questões dentro da OMC.  Nesse sentido,  a posição também sinaliza o alinhamento absoluto do Brasil com o Grupo de Cairns – coalizão na OMC dos países agroexportadores -, e repercute em abalos nas relações com países em desenvolvimento, que já se mostraram importantes parceiros estratégicos do Brasil, como a Índia. Mais do que isso, a postura também se apresenta como mais um episódio em que o governo Bolsonaro se afasta dos países em desenvolvimento enquanto se aproxima dos Estados Unidos e da União Europeia, os quais, embora convergem sobre a restrição para os programas de estoque público, sempre apresentaram interesses concorrentes com os dos países agroexportadores e durante todo governo Bolsonaro, esses não concederam aberturas de mercado e vantagens relevantes para os interesses brasileiros. 

Além disso, com mais esse posicionamento a política externa de Bolsonaro destoa ainda mais da que foi conduzida pelo presidente Lula e o Ministro Celso Amorim, em especial no período de 2003-2008, a qual gerou expressivos ganhos socioeconômicos para o Brasil, marcando o protagonismo do país internacionalmente. Isso se dá pois, neste período, a questão agrícola figurou como um elemento amplamente estratégico para o Itamaraty, que atuou com grande autonomia e buscou incluir as pressões da sociedade civil na definição das suas posições. Mais do que isso, consciente da relevância da produção brasileira para o cenário internacional, o MRE protagonizou as negociações da OMC no período, se articulando em conjunto com outros países em desenvolvimento, como a própria Índia, a fim de modificar políticas agrícolas protecionistas dos países desenvolvidos, responsáveis pela criação de condições artificiais de competição no comércio internacional, o que rendeu substanciais aberturas de mercado para as exportações do Brasil.

Isso posto, espera-se que os próximos passos em torno desse tema tomem lugar na 12ª  Conferência Ministerial, que finalmente deve acontecer entre os dias 12 e 15 de junho, em Genebra, após dois adiamentos por conta da Covid-19 e sua variante Omicron. A despeito das pressões do Brasil e de outros países e da possibilidade de, mais uma vez, se empurrar a solução permanente para a 13° Conferência, a expectativa ainda é de que a questão esteja entre os quatro principais temas da 12° Conferência, ao lado da reforma da OMC, da proposta de waiver para as vacinas contra a Covid-19 e da pesca.

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