Porque o Brasil precisa debater uma nova política industrial

31 de maio de 2022

Por Bruna Belasques, Bruno Castro, Gabriel Santos Carneiro, Natália M. S. Nascimento e Pedro V. Rangel* (Foto: Unsplash)

 

Com a proximidade das eleições, espera-se que o Brasil (re)discuta sua inserção na economia mundial. Uma das questões a serem debatidas é a política industrial-tecnológica: cabe ou não retomá-la? Avaliando os dois principais candidatos, Luiz Inácio Lula da Silva  (PT) aparece defendendo explicitamente a necessidade da retomada de políticas industriais, em sintonia com os exemplos de países desenvolvidos e, inclusive, do Fundo Monetário Internacional (FMI). Jair Messias Bolsonaro (PL), por sua vez, não dá declarações sobre o tema, ao mesmo tempo em que, como atual presidente, faz acenos em prol do agronegócio.


O debate da inserção produtiva do Brasil na economia mundial não é um desafio apenas do século XXI. É um tópico recorrente na história brasileira, cujas discussões tiveram início no século passado. Alguns fatores, como a coexistência de um forte setor agrário-exportador e a relevância de parques industriais, aliados à dimensão continental do país e ao grande contingente populacional aqui presente, levam a um projeto de desenvolvimento socioeconômico que está em constante disputa, fazendo do tema uma escolha política.

Por um lado, essa disputa decorre do passado colonial brasileiro, que relegou ao país estruturas que direcionam a economia para uma pauta exportadora marcadamente dominada por commodities, dando ao Brasil um papel de “fazenda do mundo”. Por outro, os esforços por meio da política de “substituição de exportações”, ainda no século passado, permitiram ao Brasil produzir internamente bens com maior valor agregado – da indústria de base à automobilística –, que foram capazes de transformar o país numa potência industrial regional. Essas indústrias, contudo, atualmente não compõem mais o setor de ponta em termos produtivos. 

Em perspectiva internacional, a humanidade vem passando por grandes turbulências, tais como a crise de 2008, o agravamento dos efeitos das mudanças climáticas e, particularmente, a pandemia e a guerra na Ucrânia, que expõem fragilidades e reforçam desigualdades sociais. Há um consenso crescente de que as políticas econômicas que advogam a redução do papel do Estado na economia e a crença na autorregulação do mercado se mostraram ineficazes em lidar com estes problemas. Tal como uma espaçonave que se encontra à deriva no espaço, o livre mercado não foi capaz de superar a inércia que assola as economias nacionais, tampouco de redirecioná-las ao caminho do desenvolvimento.

A alegoria da espaçonave à deriva tem grande semelhança com a metáfora a que recorrem os propositores de uma nova geração de políticas industriais: políticas de “viagem à Lua”, ou, moonshot policies. O termo recorre ao esforço da humanidade para pisar na Lua, na década de 1960, para explicar as novas políticas industriais que defendem uma abordagem sistêmica. Ou seja, para atingir metas ambiciosas, é necessário haver sinergia entre os setores público, privado e a sociedade civil, por meio do fomento à inovação. Inovações não apenas econômicas, mas também sociais e políticas, resultantes da cooperação entre setor público e privado, que constituirão a base da Indústria 4.0.

Até mesmo no âmbito do FMI, que tende a ser crítico à temática, têm surgido discussões a respeito da importância do Estado no fomento da indústria. Uma de suas análises recentes destaca que não apenas os países asiáticos se industrializaram, como, por meio da direção estatal, apresentam menores taxas de desigualdades de renda que economias avançadas baseadas no livre mercado. Desse modo, a realização de políticas industriais podem, sim, ser um sucesso e colaborar para o crescimento de longo prazo. No caso das economias asiáticas, de modo geral, três aspectos foram enfatizados: a correção de falhas de mercado por meio da atuação estatal, uma política de substituição de exportação, isto é, a tentativa de exportar bens com maior valor agregado, e o aumento da competitividade da produção interna e externa.

Isto não é exatamente um “manual para o desenvolvimento”, contudo, um projeto de longo prazo com direcionamento claro e objetivo é necessário, ainda que adaptado à realidade de cada país. Neste sentido, a liderança do Estado serve como guia indicando para onde ir, organizando os esforços. Conforme ressalta a economista Mariana Mazzucato, estamos diante de verdadeiras missões, que para serem cumpridas exigem forte propulsão de investimento, alta sinergia entre os envolvidos, liderança estatal, planejamento democrático e estratégico e uma meta final a ser atingida. A adoção de novas políticas industriais – mas não só, uma vez que são necessários também estímulos para políticas que tenham como objetivo ganhos coletivos e não apenas o individual – é uma parte relevante no processo de promoção da transição ecológica das economias, superação das desigualdades e indução do desenvolvimento sustentável.

Experiências da nova política industrial pelo mundo

Além da discussão teórica, em janeiro deste ano, a Comissão Europeia publicou um documento que destaca a necessidade de reformulação das políticas industriais para o século XXI que, na visão da comissão, deveriam acelerar e concretizar a transição digital e verde da indústria.

Para atingir esses objetivos, foram formuladas algumas políticas, como a “Aliança Europeia para a Indústria de dados, computação de borda e nuvem”, que visa reunir negócios, representantes do poder público e experts na área, buscando fortalecer a posição e a competitividade da indústria europeia nesse setor. Também foi formulada uma aliança voltada para o fortalecimento da indústria de processadores e semicondutores, que objetiva encontrar  e solucionar lacunas e defasagens nesse setor, por meio de um intenso trabalho de pesquisa, garantindo a competitividade da indústria de tecnologia da União Europeia. Diversas alianças semelhantes foram estabelecidas pela comissão, como a “criação de uma cadeia de combustíveis renováveis”, que busca substituir cerca de 90% dos combustíveis fósseis do setor naval e de aviação por formas de energia limpa até 2050, explicitando a necessidade urgente de adotar políticas sustentáveis de desenvolvimento.

A recuperação do peso do setor manufatureiro e investimentos pesados nas novas tecnologias são também parte central do programa Build Back Better do governo Biden nos EUA. Sob o guarda-chuva deste programa, por exemplo, o governo estadunidense ampliou esforços públicos de inovação em sua política industrial no setor de semicondutores, investindo US$ 52 bilhões em recursos para internalizar a produção – visto a mudança de conjuntura do comércio mundial e as tensões com a China.

Ao contrário do que se imagina, não são somente os países centrais que estão reinventando políticas industriais. Já em 2019, o governo do México também publicou um material estabelecendo as diretrizes para a construção de uma nova política industrial. O documento reconhece o baixo crescimento da economia mexicana nos anos anteriores e estabelece princípios para o avanço do setor industrial. Dentre as dez metas apresentadas no documento estão: conceder subsídios às novas atividades, objetivando diversificar a economia; estabelecer projetos com noções claras de sucesso para evitar o desperdício de recurso público; investir em capacitação e transferência de tecnologia para corrigir as falhas de mercado e delegar a política industrial a instituições de grande transparência e competência.

A Argentina também publicou um documento semelhante em agosto de 2021, anunciando aumento dos investimentos no setor industrial, com uma estratégia de reorganização territorial das indústrias e de integração produtiva em clusters tecnológicos, com maior inovação e valor agregado, além da adoção de medidas para a criação de empregos, fortalecimento da indústria nacional, desenvolvimento do mercado interno e da economia regional. Mas será que o Brasil poderá fazer parte desse movimento ou está fadado a perder o bonde de novo?

A hora e a vez do Brasil

No caso do Brasil o debate sobre uma nova política industrial-tecnológica deve estar relacionado à redução de problemas internos como a desigualdade e o desemprego,  a defesa da soberania nacional e a proteção do país contra instabilidades em períodos de crises internacionais. Atualmente, o Brasil tem uma taxa atual de desemprego de 11%. Além disso, temos um contingente considerável de mão de obra qualificada que está subempregada – trabalhando, mas em postos diferentes de sua formação, é o caso de diversos trabalhadores de aplicativos que possuem educação formal. Em paralelo a este cenário, o país apresenta crescente desigualdade – o índice Gini, criado para medir o grau de concentração de renda, era de 0,60 em 2014 e em 2021 estava em 0,64.

Diante desse contexto, o Estado brasileiro precisa não só pensar em um programa industrial, mas também de que forma financiará a nova empreitada. Curiosamente, o Brasil atrai muito capital externo, embora de forma instável. Isto porque parte desse montante é capital financeiro de curto prazo que busca lucros imediatos. Por outro lado, os investimentos internacionais produtivos das multinacionais não contribuem automaticamente com o desenvolvimento de uma capacidade industrial-tecnológica endógena ou com o aumento do nível de investimentos totais na economia. As decisões sobre os investimentos e o uso dos lucros gerados são tomadas a partir de centros de decisões lá fora, levando em consideração interesses que podem ou não coincidir com os do Brasil.

Parte do desafio é exatamente procurar integrar esses investimentos em missões visando metas de médio-longo prazo articuladas pelo governo brasileiro. Isso só funciona se há, simultaneamente, um esforço estatal mobilizando recursos nacionais para objetivos pactuados entre os diferentes setores. E, o Brasil ainda tem espaço para isso, lançando mão de políticas fiscais expansionistas, de compras públicas, vide o complexo industrial de saúde, envolvendo o setor químico/farmacêutico, e linhas de crédito para setores estratégicos, reativando o papel dos bancos públicos como BNDES e Caixa Econômica Federal – e grupos de fomento como o Sistema Nacional de Fomento (SNF), que congrega agências de fomento, bancos comerciais com carteiras de desenvolvimento e bancos cooperativos. Além disso, a expansão de universidades e institutos federais nos últimos 20 anos colaboraram com a formação de mão de obra qualificada para o setor produtivo e podem ser utilizadas ativamente para a geração de pesquisa aplicada.

Ou seja, a nova política industrial brasileira não precisa e não deve ser baseada em planos de interesses financeiros internacionais ou de outros países. Pelo contrário, ela deve ser pensada considerando os desafios históricos-estruturais, as singularidades e o complexo industrial-tecnológico que o Brasil já apresenta – e que pode passar por melhorias, aproveitando as oportunidades que as tecnologias que a quarta Revolução Industrial oferecem, por exemplo, disponibilizando 5G acessível para todos. Em suma, serão decisões políticas que vão fomentar ou não no Brasil uma nova estrutura produtiva, alinhada aos desafios do século XXI.

*Os autores agradecem os comentários e sugestões de Giorgio Romano Schutte

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