27 de junho de 2022
Por Dante Apolinario, Giovana Silveira, Gabriel Santos Carneiro, Isabela Temístocles Gomes e Leonardo Poletto Di Giovanni (Foto: Unsplash)
O aumento do preço dos alimentos e o avanço da inflação de forma generalizada têm disparado grandes alertas para a escalada da fome e pobreza no mundo. Esta realidade é crescente para pessoas frequentemente postas às margens da economia, que existem de forma concomitante a uma pequena parcela da população que mantém ganhos expressivos, o que evidencia a necessidade de discutir a redução de desigualdades. Como fazê-lo é um desafio que passa também por justiça tributária.
Se na década de 1980 era quase um pecado propor aumento de impostos e intervenção estatal na economia, porque isso iria frear o crescimento e desestimular a economia, hoje, quarenta anos depois, a situação é muito diferente. Durante esse período, uma fração muito pequena da sociedade enriqueceu exponencialmente, mas essa riqueza praticamente não chegou à base da sociedade. A desigualdade cresceu neste período de reinado das políticas econômicas neoliberais e, na pandemia, essa situação foi ainda mais acentuada.
Mais de dois anos em guerra contra a COVID-19 trouxeram perdas e sofrimento para inúmeras pessoas ao redor do mundo. Foram mais de 6 milhões de vidas perdidas. Além disso, a pandemia teve outro efeito direto: o aumento da extrema pobreza global. O relatório da Oxfam “Lucrando com a dor”, publicado na véspera do último encontro em Davos, mostrou dados alarmantes sobre a piora das condições de vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Mais de 250 milhões de pessoas correm o risco de cair na extrema pobreza apenas em 2022. Os preços dos alimentos e energia (combustíveis, gás e energia elétrica) tiveram as maiores altas em décadas, aumentando muito o custo de vida e impactando principalmente os mais pobres.
No entanto, o sofrimento, dor e pobreza não foram para todos. Uma parcela muito pequena da população mundial ganhou muito com a pandemia: os multibilionários. Essa pequena fração da sociedade viu a sua riqueza crescer como nunca. Em dois anos, surgiram 573 novos bilionários. Outros 2.668 bilionários viram sua riqueza crescer incríveis 42%, totalizando 12,7 trilhões de dólares. Apenas dez dos homens mais ricos do mundo têm mais do que os 40% mais pobres do mundo, ou seja, mais de 3 bilhões de pessoas.
Cada vez mais, aumentam as vozes para, de alguma forma, taxar a fortuna dessa pequena fração que detém a maior parte da riqueza mundial. E, agora, esse movimento ganhou impulso além das razões humanitárias. Por vários motivos, na Europa e nos EUA, a discussão sobre impostos e capacidade de intervenção do Estado é colocada de forma muito diferente do início do período de hegemonia das políticas neoliberais.
Primeiro porque, para aliviar os impactos da pandemia, surgiu a necessidade de aumentar os gastos públicos. Igualmente, a retomada do crescimento exige investimentos públicos. Juntam-se a isso questões estruturais, parte deste novo cenário contemporâneo: responder às crises climáticas e à corrida tecnológica com a China, como um novo concorrente. Este conjunto de fatores reforça a noção de que é necessária uma retomada da capacidade do Estado de guiar e intervir na economia e, para isso, é preciso repensar a situação fiscal do setor público.
Organizações Internacionais e campanhas da sociedade civil internacional para redução de desigualdades
Neste cenário, crescem as discussões a respeito de medidas para redução das desigualdades, seja no âmbito das organizações nacionais e internacionais ou campanhas da sociedade civil. Entre as medidas de alcance nacional, estão a taxação de grandes fortunas e taxação de “windfall profit”, que corresponde aos lucros extraordinários de acordo com uma conjuntura de alta dos preços sem alta dos custos de produção equivalentes.
Já no cenário internacional, há um esforço diante de organizações mundiais para criação de taxas mínimas a serem implementadas por todos os países, criando um parâmetro comum. No entanto, esses são processos que ocorrem lentamente devido a sua dificuldade de implementação, principalmente aqueles que ocorrem no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde os esforços têm se concentrado.
Há um mês, dias antes da declaração da OCDE, a Oxfam insistiu novamente na urgência de taxações sobre as grandes fortunas. Em seu relatório, a ONG afirma que 263 milhões de pessoas a mais do que era estimado anteriormente tendem a cair na pobreza extrema neste ano, devido à inflação em alta em muitas partes do mundo. Para o equilíbrio desse cenário de aumento de desigualdades, a organização faz campanha pela adoção de um imposto temporário sobre os lucros extraordinários (windfall profit) obtidos pelas empresas de setores que têm se beneficiado das altas dos preços das commodities, como o alimentício e, sobretudo, petroleiro. Sob pressão política, impostos sobre lucros extraordinários já foram introduzidos pelos governos da Itália e até do Reino Unido, não obstante o forte lobby das grandes petrolíferas, em particular BP e Shell, contra essa medida.
É nesse mesmo intuito que atua a rede internacional “Tax Justice Network” (TJN), com a elaboração e divulgação de estudos, livros e relatórios. Seu objetivo é denunciar e combater a evasão fiscal, corrupção e desigualdades inerentes aos sistemas de grandes corporações multinacionais, as quais se utilizam de sua influência e projeção para explorar as políticas fiscais nos diversos países.
Desde 2009, publica o “Financial Secrecy Index” (FSI) para identificar os mais importantes destinos de lavagem de dinheiro. Esse índice tinha como objetivo se contrapor aos tradicionais estudos que indicavam os países mais pobres como únicos responsáveis por essas práticas. Na verdade, são os países ricos que recebem enormes montantes originados através de práticas de evasão fiscal e demais práticas ilícitas, em particular através dos paraísos fiscais.
Iniciativas internas: o combate nacional a paraísos fiscais e o imposto sobre grandes fortunas
Os paraísos fiscais são áreas jurídicas onde os impostos são mínimos ou próximo a zero sobre transações financeiras, e, por isso, despertam grande interesse de detentores de capitais de todos os tipos: de bilionários individuais a empresas multinacionais. Os Estados nacionais são os maiores prejudicados por perderem parte de sua arrecadação tributária. A TJN estima que 427 bilhões de dólares são perdidos para paraísos fiscais todo o ano. Na prática, isso acaba reforçando as desigualdades, e faltam recursos para promover desenvolvimento social e econômico. Os organismos internacionais – em particular o FMI, que sempre pregaram redução de gastos governamentais, pouco fizeram para blindar a economia mundial do mecanismo perverso de evasão fiscal reciclado através dos paraísos fiscais.
Segundo um levantamento da Cepal, em 2015, países da América latina perderam cerca de 340 bilhões de dólares (cerca de 6,7% do PIB). Caso tributado, este dinheiro poderia, por exemplo, ser direcionado a setores benéficos à população, tendo em vista seu grande volume e impacto na receita estatal.
Evidentemente, a prática de evasão fiscal não se limita aos países em desenvolvimento: a União Europeia reconhece que, apesar da política fiscal ser associada à soberania de cada país-membro, a luta contra a fraude fiscal é um assunto partilhado por todos. Mas foi somente em setembro de 2020, diante dos impactos da crise econômica provocada pela pandemia, que o Parlamento Europeu instalou uma subcomissão permanente dos Assuntos Fiscais (FISC) para auxiliar a Comissão dos Assuntos Econômicos e Monetários (ECON) na luta contra a fraude, a evasão e a elisão fiscal, manobra usada para omitir o fato gerador do tributo.
Uma outra forma de combater as fraudes fiscais é o chamado IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas). A discussão sobre essa forma de taxação ganhou destaque mundial durante a pandemia. Vista como uma boia contra a custosa enchente sanitária, a arrecadação vinda desse tipo de taxação poderia custear, entre várias coisas, a ”reconstrução” da economia
Neste ano, o presidente dos Estado Unidos, Joe Biden, quer estabelecer uma alíquota mínima de 20% sobre rendas superiores a US$100 milhões, como parte de seu orçamento em 2023. Segundo a Casa Branca, com o montante arrecadado seria possível reduzir o déficit público norte-americano em US$1,3 trilhão nos próximos dez anos.
Mesmo em nações nem de perto tão ricas quanto os Estados Unidos, o tema também se torna pertinente. Em 2020, a Argentina instituiu um IGF temporário (mas que ainda está em vigor) chamado de Aporte Solidário e Extraordinário (Lei 27.605). A nova lei estipula um imposto único de pelo menos 2% a ser cobrado de pessoas com ativos que passam de 200 milhões de pesos argentinos, com o objetivo de financiar subsídios aos mais pobres e dar créditos aos pequenos e médios empresários. Contudo, vale a pena destacar que, a exemplo da França, pode ser que a lista de isenções seja tão grande que praticamente a presença do imposto seja irrisória. E, o recém-eleito governo de Gustavo Petro na Colômbia anunciou uma reforma para combater as desigualdades e reforçar a carga tributária para destinar a políticas sociais. Entre as propostas, está a taxação das grandes fortunas (calculadas em 4000 famílias), dividendos e imposto de renda sobre altos salários, combate à fraude e, especificamente, aos paraísos fiscais.
Os Primeiros Passos em Direção a um Regime Global de Tributação
Tendo em vista o nível da globalização produtiva e financeira e o alto grau de interdependência e digitalização da economia global, o combate à evasão fiscal depende, em última instância, de iniciativas fundamentadas na cooperação internacional. É neste contexto que a anteriormente citada Declaração sobre uma Solução de Dois Pilares para Enfrentar os Desafios Fiscais Decorrentes da Digitalização da Economia foi assinada pelos membros da OCDE no fim de 2021.
Como o próprio nome indica, o acordo propõe dois pilares de atuação. O primeiro se aplica a empresas multinacionais com faturamento acima de 20 bilhões de euros que possuam lucratividade acima de 10%. Dos lucros que superarem a lucratividade de 10%, 25% deles serão tributados nos países onde a venda final dos produtos foi realizada. Em outras palavras, o primeiro pilar do acordo força multinacionais com alta lucratividade a submeterem parte dos seus lucros excessivos ao sistema tributário dos países onde seus produtos foram vendidos.
O segundo pilar, por sua vez, foi o que se tornou mais conhecido, e consiste no acordo dos países em tributar em 15% os lucros de multinacionais que faturam mais de 750 milhões de euros por ano. A expectativa da OCDE é que esse “imposto global” gere mais de 150 bilhões de dólares em receitas fiscais por ano.
Apesar de seu caráter inédito, o acordo é alvo de muitas críticas de organizações sociais. Acerca do primeiro pilar, critica-se que o acordo é acompanhado por obrigações de eliminação de medidas unilaterais aplicadas pelos países, como taxas sobre serviços digitais. Segundo estimativas da Oxfam, o resultado final dos efeitos da tributação de 25% dos lucros excessivos somados à eliminação das medidas unilaterais seria negativo aos países em desenvolvimento. Para que o resultado seja positivo, a tributação deveria ser maior e ao menos de 30%. Sobre o segundo pilar, critica-se que o valor de 15% é muito baixo, longe do mínimo de 25% recomendado pelo Painel de Nações Unidas sobre Responsabilidade Financeira, Transparência e Integridade.
A implementação do acordo vem também enfrentando grandes dificuldades. Originalmente previsto para 2023, novas declarações do Secretário Geral da OECD indicam que sua implementação será adiada para 2024, em função das dificuldades em acertar aspectos técnicos do primeiro pilar da proposta.
O que não está paralisado, entretanto, é a crescente subida dos custos de alimento e energia internacionalmente, devido às atuais pressões inflacionárias. Por isso, torna-se ainda mais fundamental a atuação da sociedade civil internacional por meio de redes internacionais e ONGs.
O Brasil e seu cenário, ainda distante, para uma tributação justa e solidária
Apesar de ter voltado a integrar a lista das dez maiores economias do mundo, segundo o ranking da Austin Rating, o Brasil integra, também, a lista dos dez países mais desiguais. Com uma evasão fiscal equivalente a um valor entre R$460 bilhões e R$600 milhões em 2020 e um Imposto sobre Grandes Fortunas ainda em fase de proposta no Congresso nacional, é perceptível como a situação tributária no Brasil reflete as dinâmicas desiguais de sua organização social.
Estruturalmente, o país possui mecanismos que favorecem o status quo de uma concentração de renda elevada. Apesar do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) ser previsto no artigo 153 da Constituição Federal de 1988, além de já ser uma prática em diversos países como França, Espanha e Argentina, nunca houve a implementação nacional de uma lei voltada a esta questão.
Além do IGF, chama a atenção a ausência de outras medidas tributárias nacionais que poderiam ser aplicadas visando o combate à desigualdade, como a tributação de lucros e dividendos, a simplificação da tributação sobre consumo e uma aplicação mais condizente do imposto sobre a propriedade territorial rural. A reorganização da arrecadação de impostos permitiria maior distribuição de renda por meio de programas sociais. Conforme definido pelo movimento suprapartidário “Pra ser Justo”, tributos também podem ser vistos como uma forma de cidadania, pois permitem que governos tenham recursos para fazer justiça social – tema que se torna cada vez mais relevante, considerando, por exemplo, o aumento da vulnerabilidade causado pelos impactos da pandemia e da preocupante alta do preço dos alimentos no mercado.
Com relação a iniciativas internacionais para a redução de desigualdades por meio da taxação e regulamentação, a reformulação do sistema fiscal internacional tem aumentado com iniciativas multilaterais entre os países. Um destaque é a possibilidade de implementação do imposto global para empresas multinacionais, que teria grandes impactos sobre o país – afinal, multinacionais tiveram uma taxa de participação em 24% das exportações brasileiras em 2020. Este debate ganha relevância uma vez que a forma como se cobra impostos pode aumentar ou reduzir desigualdades, de acordo com a Oxfam Brasil.
Desta forma, é perceptível uma nova preocupação com a justiça tributária no mundo, com iniciativas tanto nacionais (por exemplo, taxação de grandes fortunas e melhor distribuição de riquezas) como internacionais (taxação global sobre fluxos financeiros). O Brasil tem, pela primeira vez, a oportunidade de se engajar nesta tendência para debater tabus sobre uma reforma tributária solidária, justa e sustentável.
Como a evasão fiscal, a ausência de taxação sobre grandes riquezas e a permeação de desigualdades têm relações intrínsecas, ainda há muito o que avançar para reduzir os abismos sociais que atualmente definem o país.
Texto publicado originalmente em 27 de junho de 2022 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.