As tensões nos grandes lagos

28 de junho de 2022

Por Mohammed Nadir, Gabriel de Castro Soares, Letícia Pereira e Heuler Costa Cabral (Foto:Unsplash)

 

A série de tensões, tanto diplomáticas quanto militares, entre a República Democrática do Congo (Kinshasa) e seu vizinho Ruanda (Kigali) acontece há longa data, por isso, para entendê-las, é necessário analisar a história de ambos os países.  

 

As riquezas minerais e tensões político-raciais presentes na região dos grandes lagos acabaram por favorecer a formação de milícias e grupos paramilitares, como exemplo: o movimento 23 de março (M23). Em 2012, a Ruanda recebeu fortes pressões internacionais por sua possível relação com o financiamento do grupo. O país teria por objetivo aproveitar-se da desestabilização do governo congolês, na figura de Joseph Kabila, para acessar as vultosas jazidas minerais presentes na área de ocupação da guerrilha e fomentar a antiga rivalidade étnica entre Tutsis e Hutus, base de seu discurso populista. Com a vitória militar da R.D.C -apoiada por forças das Nações Unidas- sobre o grupo insurgente, um acordo de paz foi assinado em 2013 entre as partes, promulgado pelo então presidente congolês Joseph Kabila. Com o passar dos anos, foi acompanhado por paulatinas acusações -vindas de setores do antigo grupo rebelde- do não cumprimento do acordo por parte do governo de Kinshasa, que prometia a integração de seus membros ao exército nacional. O movimento retomou os combates ao final de 2021, com disponibilidade de recursos para expandir sua influência na região. 

 

As forças internacionais em conjunto com o governo de Kinshasa informam em recentes relatórios evidências de que os países vizinhos, Uganda e a República de Ruanda, na figura do presidente Paul Kagame, estariam apoiando o movimento rebelde pelo fornecimento de insumos militares- armamentos e munições- no intenção de promover a instabilidade do leste regional. Em 2022, o mais importante ponto de confronto entre as forças de pacificação e o M23 está na província do Kivu do Norte, ocupada por tropas rebeldes, na região de grandes jazidas de Cobalto e Coltan. As recentes tensões com a Ruanda surgiram com o pronunciamento de que tropas de Kigali violaram o território congolês dirigindo-se a mesma região ocupada por rebeldes (Bunagana-Província oriental do Kivu-Norte)

 

A República de Angola atualmente preside a Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos e tem buscado fortalecer e multiplicar iniciativas de pacificação da região. Após receber com emergência o pedido homologado pela República Democrática do Congo para apoio institucional na resolução do conflito, o chefe de estado angolano João Lourenço foi indicado pela União Africana (U.A.) para intermediar um acordo entre os países vizinhos, objetivo dificultado pela divergência dos interesses econômicos que estão sobre a mesa.  

 

A Ruanda: um tigre africano

 

Ruanda é hoje uma das potências da África devido ao seu notável desenvolvimento nos últimos 20 anos.  Localizada na África Oriental, faz fronteira com a República Democrática do Congo, Tanzânia, Uganda e Burundi, sem saída litoral, contém cerca de 13 milhões de habitantes.

O começo de desenvolvimento ruandês pode ser retraçado a partir do final da sua conhecida e terrível história de massacre humano: o genocidio, de abril a julho de 1994, entre os Hutus e Tutsis, que levou ao extermínio de milhares de vidas humanas. Desde então o país não teve mais nenhuma grande crise política. Depois desta trama  (ao chamado renascimento Ruandês), além de uma intensa reconciliação entre os ruandeses levada a cabo pelo governo, o país implementou séries de políticas de desenvolvimento que têm dado frutos até então.

Nos últimos vinte anos, o país conheceu um tremendo crescimento econômico, acelerado de 8,9% de 2017 para 2018. O seu status de renda é considerado médio até 2035, com uma estimativa de renda alta até 2050. Essas estimativas pretendem ser alcançadas com a série de Estratégias Nacionais de Transformação para um Desenvolvimento Sustentável.

Nestes últimos 20 anos, Ruanda também vem conhecendo  uma queda considerável da mortalidade infantil; uma forte aderência quase universal à escola primária. A pobreza caiu de 77% em 2001 para 55% em 2017, e houve um aumento de expectativa de vida de 29%, em meados da década de 1990, para 69% em 2019. A taxa de mortalidade materna caiu de 1.270 por 100.000 nascidos vivos na década de 1990 para 290 em 2019.

Devido a sua estabilidade política, o país tornou-se um dos países mais seguros do mundo, aspirando grandes investimentos estrangeiros. Como muitos países da África, 60% da população é jovem, e está abaixo dos 30 anos. É também um dos países com mais alta paridade de gênero no domínio público, com  uma participação feminina tremenda na política, destacando cerca de 64% de mulheres no parlamento e 40% no Senado.

O desenvolvimento da infraestrutura urbana também marca o renascimento ruandês. A sua capital, Kigali, é uma das cidades mais luxuosas e mais limpas da África.  

Em termos militares, Ruanda também se mostrou muito influente nos últimos anos, e com uma grande capacidade militar que lhe permitiu interferir e dar uma boa atuação em Moçambique contra os jihadistas nos inícios de 2022.

RDC: Um gigante adormecido 

Maior país da África subsaariana, com área equivalente à da Europa Ocidental, a República Democrática do Congo (RDC) é dotada de recursos naturais excepcionais. Além de sua riqueza em minerais (cobalto e cobre em particular), o país tem grande potencial hidrelétrico, vasta terra arável, grande biodiversidade e abriga a segunda maior floresta tropical do mundo.

Todavia, a maioria das manchetes sobre a República Democrática do Congo (RDC) tem um fato em comum: se concentram na guerra, especialmente no leste do país. Os conflitos armados não são novos na RDC, onde surgiram de diferentes formas nas últimas três décadas. No entanto, apesar desses eventos desastrosos e de seu passado sangrento, o país viu sua economia crescer quase sem parar. Com exceção de uma crise em 2009, quando o crescimento foi de apenas 2,8%, a economia cresceu em média 7,7% nos últimos anos. Segundo o Banco Mundial, esta é uma taxa “bem acima da média na África Subsaariana”.  Em 2016, essa taxa deve chegar perto de  8%, o que fez da RDC um dos países com maior crescimento econômico do mundo.

A RDC pode não ser o país mais desenvolvido da região dos Grandes Lagos, mas seus ricos e variados recursos minerais oferecem um enorme potencial de desenvolvimento. O país é um grande produtor de cobalto, cobre, diamantes, coltan e estanho nos mercados mundiais. O cobalto é usado para fazer ímãs e turbinas – motor ou gás – devido à sua resistência a altas temperaturas. De acordo com estatísticas de 2013 do Serviço Geológico dos Estados Unidos, a RDC fornece 48% do cobalto do mundo e detém quase 47% das reservas de cobalto do mundo. Coltan, cujo nome científico é columbite tântalum, é usado em dispositivos portáteis, como telefones e próteses cirúrgicas, devido à sua resistência à corrosão. Também é usado em laptops, pagers e todos os outros dispositivos eletrônicos que possuem placas de circuito em miniatura. O investimento direto estrangeiro anual na RDC é em média de US$2,07 bilhões, embora tenha caído para US$1,7 bilhão em 2015, de acordo com o Relatório de Investimento Mundial 2016, publicado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

Não obstante todas essas riquezas, a RDC tem uma das mais baixas rendas nacionais brutas per capita do mundo, e ocupa o 176º lugar entre 188 países no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.

Para apoiar o notável crescimento econômico da RDC, a ONU, que enviou uma força de paz operando no leste do país, organizou uma conferência de investimentos para promover a RDC e a região dos Grandes Lagos como um local atraente para investimentos.

Em termos políticos, a RDC conseguiu sua  primeira transição pacífica da história do país aquando  Félix Antoine Tshisekedi Tshilombo, filho do histórico adversário da RDC Etienne Tshisekedi, venceu a eleição presidencial de dezembro de 2018 sucedendo a  Joseph Kabila, que governou o país por 18 anos.

Em termos econômicos e diante da pandemia, o governo teve que incorrer em grandes gastos, mesmo com a queda das receitas devido ao declínio da atividade econômica e ao uso prolongado de medidas de desoneração. Esta situação levou a um agravamento do défice orçamental que atingiu 1,9% em 2020. Para encontrar fundos, o governo recorreu primeiro a adiantamentos do Banco Central (BCC) até abril de 2020, depois solicitou apoio de emergência ao Fundo Monetário Internacional (FMI ) e ao Banco Africano de Desenvolvimento (BAD). As autoridades também aumentaram a dívida interna e acumularam atrasos. Com isso, o estoque total da dívida pública externa e interna aumentou em 2020, atingindo 15,9% e 8,9% do PIB, respectivamente.

Potencialidades econômicas na República Democrática do Congo

Em um ano de crescimento moderado, 1,7% em 2020, a economia registrou uma expansão de 5,7% em 2021, graças ao aumento da produção mineira e aos elevados preços mundiais de produtos de exportação como cobre e cobalto. O crescimento nos setores não extrativos passou de uma contração de 1,3% em 2020 para um crescimento de 3,3% em 2021, impulsionado por telecomunicações, energia e serviços não comerciais. O crescimento do país é impulsionado por fortes exportações de matérias-primas (11,5%) e investimento privado (9,8%). Apesar do elevado nível das despesas correntes (despesas salariais superiores ao seu orçamento em 10,9%), o aumento de 39,3% da receita fiscal, graças a fiscalizações e sanções fiscais, reduziu relativamente o défice orçamental em 2,1% para 1,6% do PIB entre 2020 e 2021 A dívida pública permanece moderada, porém, em 22,8% do PIB. A inflação foi melhor controlada resultando numa queda de 11,4% em 2020 para 9,3% em 2021, com uma meta de 7%, o que permitiu ao banco central baixar a sua prime rate em 18,5% para 8,5% em 2021. A relação entre dívidas incobráveis e o total de empréstimos brutos diminuiu de 9,2% para 8,8%, entre 2020 e agosto de 2021.

As reservas cambiais aumentaram de US$709 milhões, em 2020, para US$3,344 bilhões em 2021, em parte pelo recebimento de 50% da alocação de US $1,52 bilhão em SDR (Sales Development Representative,) com o restante reservado para prioridade de investimentos. Com o aumento das exportações de mineração, o déficit em conta corrente caiu de 2,2% do PIB em 2020 para 1,0% em 2021. O desemprego, conforme definido pela OIT, caiu de 4,7% em 2012 para 3,0% em 2020.

Perspectivas e riscos

As perspectivas econômicas são animadoras apesar do conflito russo-ucraniano, com o crescimento do PIB em 2022-23 atingindo 6,4%, impulsionado pela mineração e pelo renascimento de atividades não extrativas. Os investimentos prioritários devem continuar a apoiar a procura interna. A melhoria da infraestrutura de transporte e logística deve apoiar a recuperação de atividades não extrativistas, serviços e indústrias, impulsionando as exportações e as receitas fiscais. Espera-se que as eleições de 2023 aumentem os gastos públicos e ampliem ligeiramente o déficit orçamentário, que cairia de 1,6% em 2022 para 1,5% em 2023. A dívida pública deve ficar em 22,5% em 2023. A coordenação das reformas fiscal e monetária deve manter a inflação em cerca de 6,9% em 2022-23 e garantir a estabilidade da taxa de câmbio. O superávit em conta corrente deverá atingir 0,8% em 2022 e 0,1% em 2023, com reservas cambiais de 3,860 bilhões de dólares em 2022 e 4,606 bilhões de dólares em 2023, para 3 meses de importações. No entanto, um declínio nos preços das commodities, a demanda global por minerais, o conflito Rússia-Ucrânia e as preocupações de segurança podem comprometer essa perspectiva. (Banco Africano)

M23, vestígios de uma guerra inacabada 

Falando especificamente do Movimento 23 de Março (M23) surgido em 2012 no Congo, seu nome homenageia um acordo de paz assinado em 2009 entre o governo da República Democrática do Congo e o Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP), que dava ao CNDP aval para ser reconhecido como um partido político. O CNDP era constituído por uma milícia de dissidentes do exército congolês da etnia Tutsis (PEREIRA, AGUILAR, 2015), que se rebelaram diante da pouca representatividade e condições degradantes em suas atividades. Os Tutsis são lembrados pelo conflito que ocorreu em Ruanda entre as etnias Tutsis e Hutu, com influência belga, na década de 90. 

Esse conflito fez com que Tutsis e Hutus se refugiassem no país vizinho, o Congo, o que não diminuiu o conflito entre esses grupos. Mas agora havia o envolvimento do Congo na contenção e do próprio governo de Ruanda, o que gerou mais instabilidade e fez com que o país enfrentasse guerras civis ainda na década de 90 que perduram até os dias atuais. 

Em 2012 o CNDP percebeu que o acordo de paz assinado em 2009 não estava sendo respeitado e, com a influência do governo ruandês, seus membros se revoltaram e criaram o Movimento 23 de Março, ocupando a região de Kiwu. Iniciou-se então ataques do M23 em regiões do Congo, com a justificativa de livrar a população da violência do governo congolês e da mesma forma o governo do Congo foi acusado de ataques em Ruanda. Em 2013 a ONU se envolveu no conflito, e sob o comando de um general coincidentemente brasileiro, Carlos Alberto Santos Cruz, em 8 de novembro, o M23 se rendeu.

Essa rendição não deu fim aos conflitos na região, que não iniciaram exclusivamente pela chegada de refugiados que estavam em guerra, mas por questões de interesses políticos, econômicos, de controle de terras e comércio. O M23 voltou a pegar em armas no final de 2021 novamente com justificativas de defesa de territórios, com o governo congolês acusando o governo de Ruanda de apoiar financeiramente esse retorno. 

Os grandes lagos: um olhar prospectivo 

A Região dos Grandes Lagos Africana é uma região economicamente emergente, constituída pelos 12 estados membros da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos e da África do Sul, que são todos signatários do Quadro de Paz, Segurança e Cooperação Framework (PSCF) 20131 . Com uma população total de 370 milhões de pessoas (mais ou menos o mesmo tamanho que os Estados Unidos da América) e um PIB agregado de mais de US $1 trilhão, a região representa um mercado de consumo, comércio e investimento atraente.

Geograficamente, a “região dos Grandes Lagos” africana recebe o seu nome do fato de que ela envolve uma série de lagos na África Oriental e Central que estão dentro e ao redor do Vale do Rift Africano Oriental. Estes “Grandes Lagos” estão divididos entre três bacias hidrográficas diferentes (bacias hidrográficas) e incluem o Lago Tanganyika, Lago Vitória, Lago Albert, e Lago Edward. Outros lagos que completam o sistema incluem o Lago Kivu, Lago Turkana, Lago Rukwa, Lago Malawi e Lago Mweru. Factor esse que torna os  244 milhões de hectares de terras cultiváveis, de acordo com o Investing in the Great Lakes Region: Investment Opportunities Paper, um relatório encomendado pelos 13 países para convencer investidores internacionais. À medida que a demanda global por alimentos aumenta, o aproveitamento das terras agrícolas da região pode aumentar a produção de alimentos para consumo nacional e global, diz o documento.

Reunida em setembro de 2013, a Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos – um grupo de 12 países ( Sudão,   Sudão do Sul, República Africana Central,  Uganda,  Ruanda,  Burundi,  Quênia,  Tanzânia,  República Democrática do Congo,  República do Congo,  Angola,  Zâmbia, África do Sul) com o objetivo de promover a paz e o desenvolvimento sustentável na região – juntamente com a África do Sul, adotou um acordo-quadro para paz, segurança e cooperação sob o égide das Nações Unidas. Os 13 países se comprometeram a fortalecer a cooperação regional, inclusive por meio da integração econômica, prestando atenção especial à questão da exploração dos recursos naturais.

Em fevereiro de 2016, representantes de 13 países se reuniram em Kinshasa para discutir oportunidades de investimento, incluindo mais de 20 projetos de desenvolvimento aguardando financiamento imediato. O seu objectivo era atrair investimento privado internacional para a RDC utilizando os recursos fundiários e minerais do país e, posteriormente, para o resto da região.

Ao enfatizar a atratividade econômica da região, os países dos Grandes Lagos destacam o que chamam de “sete motores essenciais do crescimento econômico” na região: recursos naturais prodigiosos, abundância de terras cultiváveis, água e crescente demanda por alimentos; uma população jovem em rápido crescimento; uma classe média crescente e educada; aumento dos mercados de exportação, parceiros comerciais e doadores; melhor governança e ambiente financeiro; atenção especial ao desenvolvimento de infra-estrutura; e uma alta taxa de retorno sobre o investimento.

Nesse sentido, a crise entre a RDC e Ruanda representa um desafio sério à paz e ao desenvolvimento da região. 

 

 

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