Até a Colômbia

28 de junho de 2022

Por Gilberto Maringoni (Foto: Unsplash)

 

“Vamos desenvolver o capitalismo na Colômbia!” Pronunciada por Gustavo Petro na metade de um discurso de 43 minutos, após a proclamação oficial dos resultados, a frase pode ter espantado muitos dos milhares militantes que acorreram ao Arena Movistar, auditório no centro de Bogotá, para comemorar inédita a vitória da esquerda, na noite de domingo, 19. 

 

Logo, o novo presidente emendou: “Não faremos isso porque o adoramos, mas por termos a necessidade de superar a pré-modernidade, o feudalismo e os vários escravismos da Colômbia”. Os aplausos explodiram.

 

A sutileza da sentença a um só tempo acena e desfere uma ácida crítica às classes dominantes da quarta maior economia da América Latina, marcada por extremos de desigualdade e violência, como ocorre em quase toda a região. 

 

A coalizão Pacto Histórico venceu com 50,44% dos votos. São quase 11,3 milhões, um acréscimo de 2,75 milhões de sufrágios em relação ao primeiro turno, realizado em 29 de maio. A vantagem diante Rodolfo Hernández, postulante da direita, foi de 3,13 pontos percentuais. Os números fazem de Petro e de sua vice, a advogada afrodescendente Francia Márquez, a chapa presidencial mais votada da história colombiana. 

 

A vitória também se explica pela queda da abstenção eleitoral, a mais baixa desde as eleições presidenciais de 1998 (37%). O auge do desinteresse se deu em 2010, quando Álvaro Uribe conseguiu fazer de Juán Manuel Santos, então ministro da Defesa, seu sucessor. Naquele ano, 57% dos eleitores aproveitaram o dia para fazer outra coisa que não comparecer às urnas. No primeiro turno de 2022, o índice despencou para 45,1% e na rodada final o percentual foi de 41,91%. Isso significa que 1,24 milhão de eleitores mudaram de atitude em três semanas. A polarização e a politização da disputa podem ter sido decisivas para eliminar justamente o candidato que se apresentava como o antipolítico. 

 

O êxito da esquerda no país representa feito qualitativamente distinto de vitória semelhante em qualquer outro país da América Latina. 

 

Para se ter uma ideia do que significa fazer oposição às oligarquias locais, vale citar alguns números: cinco candidatos a presidente foram mortos desde 1948; 60 ativistas foram eliminados nos protestos contra o governo no ano passado, 78 defensores de direitos humanos perderam a vida em 2021, 91 lideranças de oposição foram executadas na campanha eleitoral de governadores e prefeitos de 2019, 293 ex-guerrilheiros sofreram ataques letais desde o acordo de paz entre governo e guerrilha, em 2016, 6.402 civis foram assassinados por militares entre 2002 e 2008, 200 mil pessoas aproximadamente tiveram mortes violentas nos últimos 60 anos e 2 milhões de colombianos saíram à força de seus locais de moradia desde 1980, devido à violência política. Os dados são de agências oficiais, organizações de direitos humanos e agências da ONU.

 

Em seu livro de memórias políticas, Una vida, muchas vidas (2021), Gustavo Petro mostra como, diante da violência vinda de cima, a população pobre apresentou uma tendência secular a resistir de armas na mão. Ele mesmo aderiu ao Movimento 19 de abril (M-19), grupo guerrilheiro urbano, entre os 18 e os 30 anos de idade.  

 

A leitura do livro, aliás, é esclarecedora sobre as atuais posições do companheiro Aureliano, codinome do presidente nos tempos de clandestinidade. A inspiração vem, obviamente, de Aureliano Buendia, um dos mais marcantes personagens de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez. 

 

Una vida, muchas vidas foi lançado como parte da campanha presidencial, o que à primeira vista poderia torná-lo uma enfadonha peça de marketing político. No entanto, o volume pode ser encarado como uma síntese da história política local nos últimos 50 anos. Petro não oculta a parte mais controversa de sua biografia, a atividade armada, entre 1978-1990, quando o M-19 depõe as armas e seus ativistas adentram as lutas institucionais. Não poucos se tornaram alvos fáceis para grupos paramilitares. 

 

Ao longo das páginas, o companheiro Aureliano disseca a gravíssima sincronia entre latifundiários, paramilitares e narcotraficantes. E aqui ele faz a ligação entre neoliberalismo, precariedade trabalhista e crime organizado: “A economia informal nada mais é do que uma economia pré-moderna com baixíssima produtividade e geração de riquezas. (…) Essa economia abre caminho para que as máfias matem”. É nesse ambiente que jovens pobres acabam integrando “os exércitos privados que controlam territorialmente partes de cidades e regiões da Colômbia”.

 

Há naquelas páginas mais sinais da visão de mundo do líder do Pacto Histórico: “Hugo Chávez era meu amigo e eu respeitava seu processo político, mas o fato de que, na fase final, ele tentasse imitar o modelo cubano levantou muitas dúvidas em mim”. Petro vê o modelo cubano como derivado do sistema soviético. “A América Latina deve propor um novo caminho, baseado na diversidade” política. Ao mesmo tempo, o presidente derrama-se em elogios aos sistemas de saúde e educação da Ilha. 

 

Ao descrever sua trajetória, o ex-prefeito de Bogotá parece indicar rumos futuros. Em suas palavras, o M-19 “não estava propondo o socialismo, mas uma democracia com justiça social”, uma espécie de social-democracia com transformações reais e maior ativismo estatal. 

 

No programa da coalizão vitoriosa, a principal medida para viabilizar a ampliação de serviços do Estado é uma reforma tributária destinada a taxar grandes empresas privadas de petróleo, bem como dividendos financeiros do topo da pirâmide social. A meta foi apontada por Petro em entrevista à revista Economist, no final de maio. “Propomos que a cada dois pesos dessas novas receitas, um reduza o déficit e outro financie os novos gastos sociais. Assim, conseguiremos aumentar o investimento social e reduzir o défict”. 

 

Se viabilizar a adoção de tais iniciativas sem se tornar refém de um infindável fiscalismo que busca um equilíbrio fiscal inatingível, o novo governo obterá um tento coniderável. Não é tarefa trivial. Está também no radar presidencial mudar a dependência numa pauta exportadora composta basicamente de “carvão, petróleo e cocaína” para uma economia industrial, a partir de impulsos do Estado. 

 

Na institucionalidade concreta, Petro e seus auxiliares precisarão usar mil e uma habilidades para conquistar maioria num Congresso excessivamente fragmentado. Apesar de manter a maior bancada individual na Câmara e a segunda no Senado, o Pacto Histórico tem apenas 14% dos assentos em cada casa. Alianças são possíveis, mas a batalha por uma governabilidade que se coloque contra a maré conservadora exigirá um esforço político comparável ao despendido na campanha eleitoral. Não nos esqueçamos que a Colômbia até aqui foi peça-chave constante para iniciativas de Washington na região. 

 

O divórcio pode não ser consensual.

 

Publicado originalmente na Carta Capital – no. 1214, de 29.06.2022

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