100 dias de governo Boric

28 de junho de 2022

Por Ana Beatriz Aquino, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Isabella Brandão Alcantara, Vinicius Silva Santos e Vitor Cristian Maciel Gomes (Foto: Presidência do Chile) 

 

No domingo, dia 19 de junho, completaram-se os 100 primeiros dias do governo de Gabriel Boric, presidente do Chile, eleito em 2021. A marca dos 100 dias se tornou historicamente mítica, após Franklin D. Roosevelt anunciar em seu discurso de posse, em 4 de março de 1933, que nesse período as principais definições de sua administração seriam tomadas, em meio aos efeitos da grande depressão.

 

O início do governo Boric coincide com a eleição ou afirmação de governos progressistas na região Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, México e Honduras o que leva alguns observadores a vislumbrarem fenômeno semelhante ao ciclo de governos de centro-esquerda na primeira década do século, conhecido popularmente como “onda rosa”. Ou, no mínimo, um contraponto à guinada à direita ocorrida mais recentemente. 

 

No caso chileno, há grande expectativa com a nova gestão. No entanto, é importante ressaltar que muitos dos objetivos do governo atual foram fundamentados na nova Constituição, que ainda não foi aprovada pela população chilena. Além disso, segundo Karol Cariola, deputada da coalizão Apruebo Dignidad, da qual Boric faz parte, o compromisso assumido pelo governo eleito contempla três grandes reformas (tributária, da saúde e previdenciária) para quatro anos de mandato, visando o estabelecimento de uma seguridade social real, e a execução desse projeto e suas implicações não são imediatas.

 

Assim, já nos primeiros dias de gestão, o que parecia um conto de fadas foi colocado diante da dura prova da realidade. O presidente mais jovem do Chile fechou o mês de maio, o segundo do mandato, com mais de 56% de rejeição. Somando-se a isso houve graves problemas na área de segurança pública e, ainda, dificuldades na economia, que têm sido debitadas na escolha do ministro das finanças, Mario Marcel, um economista liberal e vinculado ao antecessor de Boric, Sebastián Piñera. O resultado é um cenário complexo que contrapõe as medidas efetivas do governo e as expectativas da população.

 

A questão dos mapuches no sul

 

A primeira crise do governo Boric se deu em relação aos povos indígenas mapuches: o atual presidente, ainda no período de campanha eleitoral, prometeu atender as demandas autonomistas dos indígenas no sul do país. No dia 17 de maio, entretanto, enviou forças armadas para a região em um Estado de exceção chamado de “intermediário”. Mas o que levou a essa crise? Quem são os mapuches? 

 

Os mapuches são um povo indígena da região centro-sul do Chile e do sudoeste da Argentina. São conhecidos também como araucanos, embora considerem o termo depreciativo. Os grupos indígenas, principalmente os localizados no território chileno, entre os rios Biobío e Toltén, conseguiram resistir à colonização espanhola por mais de 300 anos, na Guerra do Arauco. Em 1641, o governo espanhol reconheceu a autonomia do território mapuche através do Tratado de Quilín, garantindo a liberdade que mantiveram até a independência do Chile (1818) e da Argentina (1816). Após esse período, o tratado foi suspenso e os territórios foram invadidos por destacamentos militares republicanos e as populações mapuches foram concentradas no sul do território chileno e em reservas argentinas, as chamadas reduções, perdendo cerca de 95% de seu território original. 

 

O Estado de exceção chileno, com intervenção militar, provêm do governo anterior, de Sebastián Piñera, cujo objetivo era enfrentar “os graves e repetidos atos de violência ligados ao narcotráfico, terrorismo e crime organizado, cometidos por grupos armados”. O conflito no sul do país, por outro lado, se concentra na disputa de território entre os indígenas mapuches e os proprietários de terra.

 

Durante o período eleitoral, Boric reconheceu a soberania e cultura dos mapuches e apontou, inclusive, que o Estado de exceção não se aplicava ao sul do território, pois a questão ali se tratava de uma dívida histórica do país com os povos originários. Mas o tema mudava de figura em relação ao norte, onde o jovem político enxergava que a aplicação do Estado de exceção era necessário de forma excepcional, para controlar o fluxo migratório, principalmente de haitianos e venezuelanos e conter os ânimos entre os imigrantes refugiados e os moradores locais. 

 

Boric, que havia prometido um diálogo com os envolvidos, entrou numa questão delicada após determinar a volta do Estado de exceção no sul, que já havia sido imposto pelo seu antecessor Sebastián Piñera devido ao cenário de ataques e violência na região – esse novo movimento ficou conhecido como Estado de exceção “intermediário”. A visita de Izkia Siches, Ministra do Interior, segundo cargo mais importante do país, à Araucanía foi fundamental para a decisão, devido ao cenário de descontrole observado. A comitiva da Ministra chegou a ser recebida com tiros para o alto, em sua primeira visita, além de observar a interdição de estradas que são de suma importância para o país, devido a seu papel no escoamento de insumos fundamentais para fábricas, termelétricas e portos. Siches reconheceu em coletiva de imprensa que estão diante de um ”problema complexo e que não será solucionado da noite pro dia. Também sabemos que devemos atuar de forma coordenada como sociedade. Queremos enfatizar que nosso governo está comprometido com uma agenda de reconhecimento dos povos indígenas com os quais temos uma dívida centenária”.

 

O programa de governo de Boric discutia a retirada dos militares da Araucanía, definida na gestão anterior. Ao esboçar a nova Constituição, tinha-se a ideia de tornar o Chile um Estado plurinacional, porém a realidade do país não abre espaço para a concretização das ideias que podem, inclusive, ser rejeitadas nos debates finais, dificultando a governabilidade e determinadas medidas a serem tomadas. As saídas encontradas, até então, foram a criação de um Ministério dos Povos Indígenas e um cargo dedicado ao caso de roubos e contrabando na região. Parte da base de Boric no governo não concorda com a volta do Estado de exceção, como o Partido Comunista, ao considerarem isso como uma reaproximação com as políticas de Piñera. A discussão gerou debates, inclusive na oposição, que consideram o “diálogo” de Boric com o sul do país um fracasso diante das medidas tomadas.

 

Os conflitos sociais da atual gestão 

 

Como aludido anteriormente, apesar de estar próximo ao seu quarto mês de mandato, o pouco tempo do governo Boric já está repleto dos mais variados problemas. Isto se dá por conta de diversos fatores, a começar pela perspectiva econômica. Atualmente, o Estado chileno está passando por um recorde da inflação, chegando a casa dos 10% no mês de abril. Ao mesmo tempo, o governo busca diminuir o número de serviços privados, aprovar reformas tributárias para criar mais impostos e mudar as regras da previdência social. Como os resultados não são imediatos,  manifestações de protesto se multiplicam pelo país.  

 

Nesse contexto, a repressão policial também se tornou um problema. Na manifestação comemorativa ao Dia do Trabalhador, em 1° de maio, uma das bandeiras contestava a Convenção Constitucional. Nessa manifestação, três pessoas foram alvejadas com arma de fogo, sendo uma delas a jornalista Francisca Sandoval que morreu no dia 14 de maio. Seguindo aos disparos dos pistoleiros, a polícia reprimiu o protesto com canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo.

 

Ademais, outros problemas surgiram no que se refere a base estudantil. Protestos de estudantes e servidores tomaram conta das cidades de Santiago e Providência, onde durante os meses de abril e maio mais de 20 escolas foram ocupadas – entre outras exigências, os estudantes reivindicavam educação pública gratuita e o cancelamento das mensalidades universitárias. Durante o dia 27 de maio, uma grande marcha estudantil em Santiago rumou em direção à sede da presidência e foi alvo de ataques da Polícia de Controle da Ordem Pública, que visava reprimir e dispersar os estudantes – fato que novamente coloca em pauta a violência policial. No dia 1° de junho, enquanto Boric fazia sua primeira apresentação das contas públicas ao Congresso, em Valparaíso, outra manifestação estudantil em Santiago terminou com dois policiais feridos e vários manifestantes presos.

 

Isso se torna ainda mais preocupante, e especialmente simbólico, dado que Boric é ex-líder estudantil: dez anos atrás, ele liderava manifestações que reivindicavam educação pública, gratuita e de qualidade no Chile. Nesse caso, portanto, as críticas ao governo, que prometeu melhorias nas instituições públicas de ensino, provêm de sua própria base. 

 

No entanto, apesar dos diversos conflitos sociais, nem tudo aparenta estar perdido para o governo: após apresentar seu balanço de gestão ao Congresso, o presidente chileno conseguiu aumentar sua popularidade em oito pontos percentuais, atingindo 44% de aprovação popular e 47% de rejeição, um bom sinal dado que faltam apenas três meses para a realização do plebiscito de saída para a nova Constituição do Chile, que será algo basilar para a realização do programa do atual governo. 

 

A Convenção Constitucional

 

A Convenção Constitucional do Chile (2021-2022) é um resultado inédito das lutas populares no país, cristalizadas durante os protestos que ficaram conhecidos como Estallido Social (2019-2020). Uma das demandas daquele movimento era enterrar a Constituição de 1980, uma das principais heranças da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ainda que a Carta tenha sido reformada por 59 emendas até o início de 2022, esses processos não foram suficientes para romper com seu caráter neoliberal e autoritário. Para Jennifer M. Piscopo (Occidental College) e Peter M. Siavelis (Wake Forest University), os legados da era Pinochet (em especial o Estado Subsidiário de Direitos) criaram dois Chiles distintos: “um em que os ricos desfrutam de serviços privados de alta qualidade, e outro onde os pobres navegam em sistemas públicos precarizados”.

 

A saída institucional para os incessantes protestos foi o Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución, assinado pelas principais forças políticas chilenas com o objetivo de convocar um plebiscito de entrada no qual os cidadãos decidiriam se o país precisava de uma nova Constituição e, em caso positivo, como ela seria composta. Assim, em 25 de Outubro de 2020 – em uma votação na qual o sufrágio não foi obrigatório (e que registrou 50,9% de comparecimento, o maior índice desde o início do voto voluntário em 2012) – 78,27% dos chilenos expressaram seu desejo por uma nova Constituição e 78,99% acreditavam que sua elaboração deveria ficar a cargo de uma Convenção Constitucional (ao invés de uma Convenção Mista, que também seria integrada por parlamentares). Assim, nos dias 15 e 16 de Maio de 2021, os chilenos elegeram os 155 convencionais, em um processo eleitoral que reservou 17 vagas para a população indígena e estabeleceu um mecanismo de paridade, de modo que nenhum gênero superasse o outro em mais de um integrante na composição final da Convenção.

 

Os candidatos de esquerda, centro-esquerda, independentes e representantes de povos originários alcançaram 75% das cadeiras da Convenção, o que ultrapassa com folga os 2/3 necessários à aprovação de qualquer matéria. Isso apontou uma mudança no cenário político chileno e um descontentamento popular com as forças tradicionais – fato que desempenhou um papel crucial na eleição do novo presidente em 2022.

Contudo, a aprovação da Convenção Constitucional tem sofrido uma queda nos últimos meses: de acordo com a pesquisa do Centro de Estudios Públicos (CEP), divulgada no último dia 9 de junho,  27% dos entrevistados votarão pela rejeição da nova Constituição no plebiscito de saída de 4 de setembro, enquanto 25% já se decidiu pela aprovação. O número de indecisos e de pessoas que não souberam/não quiseram responder é de 37% e 11%, respectivamente. 

O que levou um processo aprovado inicialmente por quase 80% dos eleitores a um elevado nível de desconfiança? Primeiramente, podemos apontar o fraco desempenho dos setores políticos tradicionais (direita, centro e centro-esquerda), apesar de seu grande poder em outras esferas políticas. A jornalista Yasna Mussa destaca, além disso, que um dos maiores problemas é que uma das partes (sobretudo os setores conservadores) iniciou uma campanha para a rejeição da Constituição antes mesmo da primeira linha do documento ser escrita, pelo temor de que o novo texto modificaria o desenho institucional que possibilitou sua ascensão e manutenção no poder.

Além disso, uma pesquisa realizada pela ONG Derechos Digitales y Datavoz, entre janeiro e fevereiro de 2022, revelou que 58% da população recebeu notícias falsas sobre a Convenção. Outro fator foram as polêmicas relacionadas a alguns atores desse processo, como o caso do ex-convencional Rodrigo Rojas Vade, que ocupou uma das vice-presidências da Convenção, e ascendeu politicamente durante os protestos do Estallido Social a partir de reivindicações sobre o sistema de saúde chileno – sob a perspectiva de uma pessoa que sofria de câncer. Contudo, uma investigação realizada pelo jornal La Tercera apurou que o então convencional  não tinha câncer, mas sim sífilis. Após as revelações, Rojas Vade renunciou a seu posto na Convenção.

 

Em relação aos impactos que o plebiscito de saída terá na gestão de Boric, Pamela Figueroa (Universidad de Santiago de Chile), afirma que:

 

Se a constituição for aprovada, ele poderá estabelecer um governo mais próximo do seu programa. Caso contrário, terá de operar no quadro constitucional atual, o que limitará as transformações na área da segurança social e da saúde e educação, que são questões com que se comprometeu.

 

Sem uma maioria parlamentar (tendo em vista que a direita chilena conquistou metade das cadeiras para o Senado e a Câmara do Deputados se encontra fragmentada entre distintos grupos políticos) as pressões que o governo Boric tem sofrido para concretizar as mudanças transformadoras prometidas em seu plano de governo – como a taxação de grandes fortunas, reformas do sistema educacional, previdenciário, de segurança e de saúde, além das demandas territoriais da população indigena – podem se frustrar.

 

Governo Boric: influências na América Latina e eleições no Brasil 

 

As expectativas em relação ao governo Boric não são grandes apenas no Chile, dadas suas orientações progressistas, também chama atenção das esquerdas latino-americanas. Na opinião de Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional na UFMG e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o governo Boric repercute na América Latina numa dinâmica transnacional que, mesmo que não represente o mesmo fenômeno do início do século, sinaliza que “certamente a virada à direita estancou”.

 

Apesar das tensões, isso é evidente na postura do governo frente a iniciativas como as questões ambientais, especificamente nas negociações da primeira cúpula do Acordo de Escazú, que ocorreu em abril. Além dos avanços na questão ambiental representarem um marco para o país, esse é um exemplo de como o governo Boric pode contribuir em termos de possibilidades para a América Latina. Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV-SP, a capacidade do governo Boric de realizar seus objetivos significa, ainda, a inspiração de uma nova esquerda na América Latina. Na dinâmica do continente, essa renovação do jogo político tem no Brasil um peso especial: caso as eleições presidenciais de outubro favoreçam a centro-esquerda e o governo Boric ganhe notoriedade nos próximos meses, isto pode apontar para novos contornos na divisão de forças políticas da região. 


Reiterando, no que diz respeito às eleições brasileiras, vale destacar a relação entre as ações do governo Boric e as expectativas da população durante esses 100 primeiros dias. Ao que tudo indica, Boric vem sendo vítima de uma elevada expectativa popular de mudança imediata em relação aos rumos e aos resultados concretos para a população, num curto espaço de tempo. O legado de governos anteriores, notavelmente de moldes neoliberais, vêm acompanhado de um quadro de desmantelamento – social, econômico – de difícil reversão imediata, o que gera frustrações no início de governo. Dependendo dos resultados de outubro, cenário semelhante pode ocorrer no Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *