Devagar na corrida pelo carro elétrico, Brasil pode ocupar papel central no mercado de emissão zero

23 de agosto de 2022

 

Por Dante Apolinario, Bruno Castro, Isabela Temístocles Gomes, Leonardo Poletto Di Giovanni e Pedro Vahamonde Rangel[1] (Foto: Pixabay)

 

A América do Sul detém aproximadamente dois terços das reservas mundiais de lítio e uma política externa mais cooperativa poderia dar ao Brasil, que ainda não aposta no desenvolvimento deste mercado, condições de aperfeiçoar tecnologia para a produção de baterias mais potentes

 

O acirramento das mudanças climáticas e o agravamento do aquecimento global demonstram a necessidade e a urgência da mudança de uma economia à base de combustíveis fósseis para uma de matriz carbono neutra. A magnitude dessa transformação é de tamanha envergadura que implica em desafios para todos os setores econômicos, e a forma, velocidade e intensidade em que os países conduzirão a superação desses desafios envolvem questões de geopolítica e competição internacional. Mas, enquanto o mundo se prepara para assumir o carro elétrico, com projeções para a proibição de venda de carros à combustão, o Brasil ainda não possui grandes incentivos para o desenvolvimento nacional deste mercado. 

Um dos principais desafios é a transição para carros com emissão zero, em particular os elétricos. Embora o transporte coletivo fosse uma solução mais profícua para a redução da emissão de carbono na mobilidade urbana, tendências culturais ainda preservam a preferência pelo transporte privado. Ou seja, a indústria automobilística é uma peça-chave na nova revolução tecnológica. O carro elétrico demanda vários metais específicos, entre os quais o lítio, elemento essencial para a produção de baterias mais potentes. A América do Sul, que reúne 70% das reservas do mundo desse metal, é alvo de cobiça, portanto dependerá de sua própria estratégia uma inserção privilegiada nesse novo cenário.  

Apesar da pandemia de Covid-19 e dos consequentes desafios impostos às cadeias de suprimentos globais, a venda de carros elétricos em todo o mundo bateu recorde. Enquanto, em 2012 foram vendidos 120.000 carros desse tipo no ano todo, em 2021 a mesma quantidade é vendida em apenas uma semana.

O comércio desse segmento já representa 9% de todo mercado global de carros novos em 2021 – quatro vezes mais que em 2019. Países como a China triplicaram seus números em comparação a 2020, chegando a 3,3 milhões após anos de estagnação. A Europa aumentou em dois terços ano a ano e, juntamente com a China, já representa 85% da venda global do ano passado. Mesmo os Estados Unidos, que detêm só 10% do mercado, ultrapassou o dobro de vendas em relação a 2020, chegando a 630.000 unidades.

Porém, esses dados não são ao acaso, eles refletem políticas públicas específicas de investimentos massivos. A China, por exemplo, ofereceu apoio estatal ao subsidiar empresas de veículos elétricos focadas na internacionalização, como a Geely e a BYD (líder de mercado global no ramo). Caminhando no mesmo sentido, a União Europeia lançou em 2017 a Aliança Europeia para Baterias (European Battery Alliance), que consiste no investimento em pesquisa e inovação de baterias elétricas.

A França pretende investir 2,5 bilhões para apoiar a produção de 2 milhões de veículos elétricos e híbridos, além de oferecer ajuda na construção de estações de recarga. Do outro lado do Atlântico, Biden anunciou o investimento de US $174 bilhões para a promoção dessa inovação, com a intenção de construir 500 mil novas estações de recarga até 2030, além dos incentivos tributários para a aquisição dos novos carros. O que está em jogo não é só agilizar a transição, mas também a disputa pela liderança, controle e autonomia tecnológica.

O mundo caminha para o desenvolvimento das novas tecnologias e uso massivo de carros movidos a eletricidade. As principais potências do mundo (Estados Unidos, China e países do bloco Europeu) já mostram evidências claras de adoção desta tendência com fortes políticas estatais de incentivo à nova tecnologia. Resta saber quais serão as consequências reais para o meio ambiente, e como os países latino americanos, maiores portadores de insumos para baterias elétricas do mundo, se posicionarão nesse novo cenário.

O Brasil em direção à descarbonização

Exemplo da falta de incentivos no Brasil ao desenvolvimento dessa indústria é o preço dos carros elétricos: a tributação sobre este tipo de carro chega a ser próxima à de carros à combustão – quando, na realidade, deveria ser drasticamente inferior. Além disso, apesar do lançamento de carros elétricos no país, existem apenas três automóveis que custam menos de R$200.000 – o que mostra como esta tecnologia ainda é de acesso para poucos, e está longe de ser disseminada como a grande alternativa de redução de emissões no setor de transportes.

O setor automotivo, que representa 22% do PIB industrial brasileiro, tem decisões pendentes sobre o futuro do parque automobilístico nacional. Historicamente, as montadoras aqui são todas multinacionais, o que faz com que o país dependa de decisões tomadas lá fora, levando em consideração vários fatores, além daqueles de interesse para o Brasil. Cabe então ao governo criar um marco regulatório forte e de médio-longo prazo para direcionar os investimentos e, ao mesmo tempo, apostar no desenvolvimento de tecnologias nacionais ao longo da cadeia de produção. Além disso, o país ainda possui um grande potencial a ser explorado: a busca por motores que sejam efetivamente eficientes, e não apenas adaptados, ao etanol – processo que pode acelerar o processo de descarbonização a partir de uma tecnologia brasileira. 

Acontecimentos recentes evidenciam uma tendência importante a ser considerada nas políticas de governo em relação ao emprego e à economia: o encerramento das atividades fabris da Ford em 2021, o fechamento da única fábrica de carros da Mercedes-Benz no Brasil e a suspensão da produção de carros Audi mostram como o país está a mercê de decisões tomadas lá fora. Outro aspecto é a dificuldade para o setor de autopeças para se preparar para os desafios futuros. O déficit comercial nesse setor foi de mais de US$10 bilhões no ano passado.

Apesar dos desafios, o Brasil, pelo tamanho de seu mercado, permanece relevante para a produção de automóveis, com destaque para fabricantes como Renault, Hyundai, Honda e o grupo Stellantis (composto por Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën). Olhando de modo mais específico, regionalmente, o Brasil pode vir a ter um papel ainda mais importante.

Novo ciclo da prata latino-americana?

Os carros elétricos são chamados de “limpos” por causa das emissões de CO2 do próprio motor, mas isso não significa que não usem recursos naturais e não haja emissões em seu processo de fabricação. O principal material novo – que não era demandado nos carros à combustão – é o lítio, usado nas baterias novas e com maior capacidade, mas também nos circuitos eletrônicos dos novos veículos.

A América do Sul detém aproximadamente dois terços das reservas mundiais de lítio, sobretudo no chamado “Triângulo do lítio” (Bolívia, Chile e Argentina). Isso coloca a região em uma posição muito importante para o futuro da revolução tecnológica em curso, não apenas dos carros elétricos, mas também dos semicondutores, celulares, computadores e 5G. Claro, apenas possuir as reservas de uma matéria-prima importante para uma cadeia global pode não significar tanto (como ocorreu com o cobre no Chile ou petróleo em outros países). No entanto, deter uma parcela muito significativa das reservas de lítio em um mundo onde as tecnologias associadas ainda não estão totalmente desenvolvidas, abre uma janela de oportunidade para esses países escalarem nas cadeias de valor e participar dessa revolução tecnológica, não apenas como exportadores primários.  Com uma política externa mais cooperativa, o país poderia tentar comercializar o lítio dos seus vizinhos (principalmente, Bolívia, Chile e a Argentina), tendo em vista o seu próprio aperfeiçoamento tecnológico na produção de baterias mais potentes.

A próxima década será decisiva para a formação dos atores da nova revolução tecnológica. A nova onda de governos de esquerda na América Latina pode significar uma mudança nas suas inserções econômicas. E o Brasil também tem a possibilidade de aproveitar e participar desse processo junto com seus vizinhos, seja via parcerias tecnológicas, investimentos ou mesmo dentro de um potencial mercado fornecedor de lítio para uma possível indústria de carros elétricos brasileira.  

Na corrida pelo futuro do setor automobilístico, as principais economias do mundo (China, União Europeia, Estados Unidos) trocam olhares e ficam com medo de serem deixadas em segundo plano. Uma competição de investimento estatal se forma porque a luta pela inovação e liderança tecnológica continua.

No Brasil, pinta-se um novo capítulo de uma velha história. O setor automobilístico, juntamente com a indústria de autopeças, garantiu durante muito tempo o desenvolvimento da nação. Dado a capacidade desse segmento industrial de empregar milhares de trabalhadores e gerar efeitos encadeadores na economia, foi a aposta de muitos governos desde a 4° República. Atualmente, por causa da falta de incentivos para o seu desenvolvimento, mostra cada vez mais a tendência de evacuar o país. Para que isso mude, é necessário uma mudança de postura do governo brasileiro, evidentemente. Bem ao estilo “jeitinho brasileiro”, o Brasil não precisa seguir necessariamente o mesmo caminho que as grandes potências estão tentando.

Dado o seu antigo papel como líder regional, sendo o mais populoso e o maior país da América do Sul, pode ser um protagonista na articulação da região para o comércio das reservas de lítio regionais no mercado internacional. E, indo além da simples exportação da matéria prima, estimular investimentos para a sua industrialização na região.

Além disso, no caso brasileiro, há uma alternativa para a descarbonização do setor. Trata-se da utilização do etanol que, por mais que possa implicar na emissão de carbono para a atmosfera ao longo da cadeia de produção, é muito mais limpa do que a gasolina convencional. Assim, o Estado poderia investir em iniciativas que busquem o aperfeiçoamento do motor movido a etanol. Com tantos pontos em definição, o próximo ciclo de governo (2023-2026) terá grandes desafios e oportunidades ao lidar com um setor automotivo que se direciona para uma economia zero carbono.

[1] Os autores agradecem a colaboração do professor Giorgio Romano Schutte.

 

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