20 de setembro de 2022
Por Ana Tereza Marra e Vitor Gabriel da Silva (Foto: elaboração própria/creative commons)
Apesar de não mencionadas explicitamente nas propostas, relações com o país são abordadas sob o ponto de vista político que defende o multilateralismo em prol do desenvolvimento
Analisamos o papel conferido à China nos planos de política externa dos principais candidatos à presidência representantes da centro esquerda melhor posicionados nas pesquisas de intenção de voto: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT) e constatamos que a China, apesar de ser a principal parceira comercial do Brasil e uma das grandes fontes de investimento do Brasil, é mencionada como integrante do Brics, mas como país, isoladamente, é ignorada pelos planos de governo.
Ambos destacam a importância de recuperar o prestígio e protagonismo internacional do Brasil através da diplomacia, além de ressaltar a importância da aproximação com os vizinhos da América do Sul e desenvolvimento conjunto e integrado na região. Lula é o candidato líder nas pesquisas e é candidato à sua segunda reeleição. Os dois primeiros governos de Lula, de 2003 a 2010, deram novos rumos para a política externa brasileira, com destaque para o protagonismo regional e a expansão das cooperações e coalizões no âmbito internacional.
O país adotou uma política universalista e de diversificação dos parceiros, especialmente os países do Sul Global, denominada pelo ex-chanceler, Celso Amorim, de política externa altiva e ativa. A diplomacia foi utilizada para aproximar-se das potências regionais, promover a construção de uma ordem multipolar e defender o multilateralismo, além de ser uma fonte para o desenvolvimento econômico interno. Uma das parcerias estratégicas que podemos destacar nesse período foi com a China. O crescimento chinês era intenso, tornando-se a principal parceira comercial desde 2009, formando e consolidando o BRICS, formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, dentre outros pontos.
Com isso, a política externa proposta pela candidatura de Lula busca restaurar as diretrizes das relações internacionais adotadas durante os seus primeiros governos, focada em recuperar o prestígio internacional do Brasil e a política externa altiva e ativa. Há um destaque para a América Latina, países da África e os BRICS, Unasul, Mercosul e CELAC, ressaltando a importância da integração como forma de inserção internacional. O programa menciona também “trabalhar pela construção de uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, que contemple as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento, com novas diretrizes para o comércio exterior, a integração comercial e as parcerias internacionais”. O plano demonstra também preocupação com o papel do Brasil diante dos compromissos ambientais e de mudanças climáticas, como por exemplo na redução de emissão de gás carbônico, foco na transição energética e o cumprimento do Acordo de Paris.
Não há menção direta aos Estados Unidos ou à China em seu plano de governo. Nos discursos, Lula tem agido com cautela procurando destacar, por um lado, a importância das relações com a China para o Brasil mas, por outro, reconhecendo que há questões a serem trabalhadas nas interações bilaterais, principalmente no que se refere à assimetria do comércio entre os países: o Brasil possui amplo superávit, mas exporta produtos de pouco valor agregado e importa bens industriais, principalmente da indústria da transformação.
Em coletiva com jornalistas estrangeiros sobre as relações com Pequim, Lula afirmou que “temos interesses soberanos, comerciais e agrícolas e que vamos brigar para que eles prevaleçam, mas, do ponto de vista de Estado, nossa relação com a China sempre foi muito forte e espero que continue sendo”. Em outro evento, voltado para um público de empresários – os quais muitos reclamam que o comércio com a China contribui para a desindustrialização no país – na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em coro com preocupações de setores da indústria, Lula afirmou que a China está “tomando conta” da economia brasileira. Na ocasião, ele defendeu que o empresariado deve trabalhar em conjunto para encontrar uma solução, sinalizando a existência de pontos a serem melhor trabalhados nas relações bilaterais. Apesar de reconhecer questões nessas interações, Lula tem abominado a política barata de contraposição ao país criada durante o governo Bolsonaro, e declarou por meio de seu Twitter que “o Brasil não tem contencioso internacional”, que teria sido estimulado no governo atual. Sua postura, em síntese, defende a amizade e relações não só com a China, mas com os EUA, Europa e América Latina, em prol do desenvolvimento.
A China no plano de governo de Ciro
Ciro Gomes, candidato à Presidência da República pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), traz propostas e planos desenvolvimentistas com o objetivo de fortalecer a indústria de transformação e defende o “padrão chinês” para reverter a política de desindustrialização dos últimos anos. Durante sua visita à Fundação Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos), em agosto, Ciro disse entender que o papel do Estado é proteger os produtores industriais brasileiros, e propõe a adoção de um sistema semelhante ao modelo chinês, para modernizar o parque industrial e o empreendedorismo no país, estimulando o desenvolvimento. Em seu Twitter, Ciro Gomes já afirmou que “em 1980, o Brasil equivalia a oito Chinas sob o ponto de vista da modernidade. Hoje a China está com robô em Marte e o Brasil precisa importar máscaras de proteção […]” e que “[…] os últimos 30 anos foram de desmonte da política industrial”, já que na “década de 1980, a indústria brasileira era muito maior que a indústria chinesa”.
Na FIESP, em julho deste ano, Ciro Gomes disse que o governo chinês está muito insatisfeito com a política externa brasileira, e que estão buscando a autonomia em relação à produção de vegetais para os próximos cinco anos, segundo documentos. Além disso, estimula outros países a produzirem soja, produto que é um dos pilares do comércio exterior brasileiro com a China, para diversificar suas fontes de abastecimento, como, por exemplo, Angola. Ciro Gomes chegou a afirmar que a China possui “[…] artefatos militares na Venezuela, aqui do lado, mais eficazes do que qualquer estrutura dissuasória de defesa brasileira, com mira em Manaus, porque começaram a desconfiar das maluquices da governança brasileira”.
Contudo, em seu plano de governo, a política externa e as perspectivas para as relações internacionais são pouco exploradas, sobretudo no que tange às relações com a China. Há apenas a menção de que as relações internacionais em termos econômicos e políticos serão norteadas pela defesa dos interesses nacionais e a soberania do país, e o site da campanha destaca o Mercosul e os Brics, mas sem citar planos para estes.
Recentemente, Ciro foi convidado para se reunir com Jin Hongjun, responsável pelos negócios da Embaixada da China no Brasil, tratando da segurança das eleições diante do aumento das tensões provocadas por Jair Bolsonaro acerca das urnas eletrônicas, além das perspectivas das relações bilaterais e a Guerra da Ucrânia.
Em recente entrevista à Globonews, Ciro defendeu uma ordem multipolar, propondo uma política externa baseada na defesa dos regimes de preferências comerciais industriais, transferência tecnológica sensíveis e a busca de uma estrutura de financiamento “rebelde” às interdições de Bretton Woods e do Fundo Monetário Internacional (FMI), citando o Banco dos BRICS como exemplo. Além disso, Ciro Gomes destaca que nesta nova ordem mundial, o Brasil não deve trocar “o imperialismo norte-americano pelo imperialismo chinês, e sim buscar uma ordem baseada no direito e não na violência”.
Brasil, China e disputas ideológicas
Apesar de ser a principal parceira comercial do Brasil, que está expandindo toda a presença na América Latina em setores estratégicos de infraestrutura, energia e transporte, além de ser uma competidora direta para a indústria de manufatura brasileira, a China não tem aparecido nos debates de política externa propostos por Lula e Ciro Gomes. O que prevalece é a defesa do multilateralismo e o foco em estratégias de desenvolvimento pautadas nas políticas sociais e norteadas pela soberania nacional.
Fora dos planos de governo, a análise de seus discursos aponta que a China tem sido mobilizada como exemplo de país a ser seguido, em termos de políticas de desenvolvimento econômico, mas, por outro lado, é vista como competidora que incomoda (e portanto, pode ser obstáculo) à recuperação industrial brasileira.
Apesar do incômodo econômico que a China causa para vários setores nacionais, é possível perceber que ambos os candidatos consideram que as relações com a China são essenciais para o Brasil, levando-se em consideração o país ser nosso principal parceiro, fonte de superávit e relevante para setores específicos, como o agronegócio. Destaca-se ainda que a China “é um parceiro importante na defesa do multilateralismo e na construção de uma ordem multipolar, especialmente, porque pode contribuir no sentido de a América do Sul alcançar maior margem de manobra em relação aos Estados Unidos”, como afirmam as pesquisadoras Tatiana Berringer e Ana Tereza Marra.
Então por que os candidatos pouco falam da China nos seus planos? Pesquisadores apontam que a ausência de menção direta pode ser explicada tanto pela disputa sino-americana vigente, uma vez que citações aos dois países poderiam ser entendidas como apoio ou rechaço a um dos lados, como também pelas narrativas em torno da sinofobia, crescente em vários Estados Ocidentais, que foi alimentada por Bolsonaro nos últimos anos, mesmo sem ganhar força no Brasil.
Outro motivo presumido é que não está claro para nenhum candidato o papel que a China pode cumprir para as relações internacionais brasileiras. Enquanto sob a visão política – articulações em torno do Brics, abertura para ações multilaterais e busca de um mundo mais multipolar – são mais visíveis as contribuições que a China pode dar para a inserção brasileira, sob o ponto de vista econômico, isto se complica. Levando em consideração a assimetria das relações comerciais e o impacto desigual que as trocas com a China têm para os setores nacionais, uma vez que privilegia, por exemplo, o agronegócio e importadores mas, prejudica vários segmentos da indústria nacional, que concorrem com os chineses internamente e em outros países, não é fácil definir uma estratégia de ação que agrade a todos (ou a maioria). E, nesse momento decisivo de eleição, ninguém quer se comprometer além do necessário.