Militares e Política Doméstica

31 de março de 2023

Por Flávio Rocha, Alexandre Becker,  Anna Bezerra, Aycha Sleiman, Diego Jatobá, Felipe Lelli, Flávia Souza, Heloísa Domingues, João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Lucas Mota, Roberto Silva, Tarcízio Melo e Vinícius Bueno (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)

 

A dinâmica em relação aos militares mudou com a posse do novo presidente da república, após a tentativa de golpe de 08 de janeiro iniciou-se um processo de desbolsonarização do governo

 

Início do governo Lula e relação com os militares

 

Na primeira semana do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,  dia oito de janeiro, Brasília foi tomada por manifestantes golpistas e apoiadores de Jair Bolsonaro. Após a participação militar na política ter atingido níveis inéditos desde o final da Ditadura Militar, isso durante o governo de Jair Bolsonaro, uma transição complicada de poder já era esperada  pelos observadores das Forças Armadas. 

 

Os eventos de 08 de janeiro de 2023, veiculados na imprensa e nos meios políticos como uma tentativa de golpe, contou com ampla participação de militares das Forças Armadas. Além de constituirem a frente mais lenta a sofrer investigações e punições, o fato é que os militares envolvidos nesse evento político tiveram um tratamento melhor do que as centenas de civis que foram presos por ordem do ministro do STF, Alexandre de Moraes. Somente no final de fevereiro, quase dois meses após o atentado, foi autorizado o julgamento dos militares acusados de participação ou omissão na invasão do Planalto. 

Assim, o início do terceiro mandato de Lula da Silva foi marcado pela manifestação do interesse em restringir a atuação de militares na política. Lula afirmou na terça-feira, dia 21, que se dedicará ao processo de despolitizar as tropas, contando, inclusive, com a elaboração de um projeto de lei para assegurar que os militares cujos planos sejam ingressar na política sejam obrigados a ir para a reserva. 

 

O atual presidente começou o processo de “desbolsonarização retirando militares da ativa de cargos políticos e avaliando as possibilidades de reformular o artigo 142. O projeto de lei para a substituição desse artigo,  que está sob a análise, se aprovado, também tirará o direito dos militares que forem candidatos e não se elegerem de retornarem para a ativa das Forças Armadas, e os que tiverem no mínimo 35 anos de carreira serão direcionados para reserva remunerada.

 

Pode-se esperar uma continuação do embate político envolvendo o governo Lula e o estamento militar, seja nos bastidores, seja em declarações abertas vazadas para a sociedade. 

 

A tradição militar de interferência política e o envolvimento ativo das forças armadas no governo do ex-Presidente Bolsonaro, torna relevante e complexa a relação dos fardados com o governo do Presidente Lula. Antes mesmo do novo governo tomar posse, os militares iniciaram a pressão para manter seus interesses, os quais destacamos a sua influência política, prebendas e seu fortalecimento institucional, com uma grande participação no orçamento público. Símbolo da manutenção de sua influência, os militares deram o aval para a escolha do ministro da defesa, teoricamente aquele que deveria ser o seu chefe, além de manter a definição dos comandantes das forças por antiguidade.

 

Tentando manter o equilíbrio entre os militares e setores do governo que desejam a total reformulação da relação civil-militar, a primeira ordem do presidente foi para que os comandantes acabarem com os atos golpistas em frente aos quartéis, e iniciar a demissão de militares em cargos comissionados, com o objetivo de desbolsonarizar do governo. Porém, o fato mais importante, foi a demissão do então comandante do exercito, general Júlio César de Arruda, por não cumprir a ordem de revogação da designação do ajudante de ordens do ex-Presidente Bolsonaro para o comando de uma unidade estratégica da força. Também pesou contra Arruda as informações que foram veiculadas na imiprensa de sua ação para impedir que a Polícia Militar do Distrito Federal retirasse os acampamentos em frente aos quartéis em Brasília.

 

Talvez, sabendo da fragilidade política de seu governo, bem como da influência política dos militares e do apoio que eles têm junto a uma parcela importante da sociedade, o presidente Lula esteja deixando para tratar com mais atenção a questão castrense  em um momento político, econômico e geopolítico mais favorável. Nessa direção, em encontro com militares, com a presença dos comandantes das forças, o presidente, segundo matéria da revista Veja de janeiro de 2023, sinalizou que desejava “olhar para frente”. Em 15 de março, o presidente participou de reunião com a alta administração naval, onde foram apresentados os programas estratégicos da Marinha Brasileira

Apesar das tentativas de aproximação feitas pelo presidente Lula, o clima de desobediência permanece. Nesse cenário, Jeferson Miola, articulista do portal Brasil 247, destaca que o exército premiou oficiais envolvidos em condutas ilegais com cargos importantes.

 

Diante da independência das forças armadas, espera-se que a relação institucional entre Comandante Supremo e os militares seja publicamente cordial, dentro da lei. Politicamente, as tensões continuarão, e provavelmente durante o atual mandato podem ocorrer outros episódios de atritos e divergências, assim não temos expectativas de mudanças no contexto das relações civis-militares.

O setor de inteligência e a ABIN no início do terceiro mandato do Lula

Dentre as falhas que poderiam ter evitado o famigerado 08 de janeiro está uma área extremamente sensível entre militares e civis no novo governo Lula: a atividade de Inteligência. O setor era subordinado ao altamente militarizado Gabinete de Segurança Institucional. O GSI esteve no centro das polêmicas envolvendo as manifestações bolsonaristas, seja por negligência ou por conivência. É notório nos bastidores de Brasília, o desejo de oficiais da Agência Brasileira de Inteligência(ABIN) saírem da tutela militar, entretanto sempre houve resistência do governo. Durante o período de transição houve, inclusive, reuniões de oficiais de inteligência com o governo na tentativa de desvincular a ABIN do controle militar, a formação de um curioso GT de Inteligência e assessores de Lula dispostos a tirar a ABIN do GSI e esvaziar o gabinete, além de relatórios de inteligência que alertavam para o perigo dos acampamentos de bolsonaristas nos quartéis militares. Os avisos acabaram sendo verdadeiros e a equipe de Lula imediatamente implementou mudanças no aparato de inteligência após as tentativas de golpe.

A primeira mudança foi vincular a ABIN ao Gabinete da Casa Civil, seguido de sindicâncias para apurar a responsabilidade do GSI nos atos golpistas. A indicação do ex-delegado da PF, Luiz Fernando Côrrea, ao comando da ABIN foi recebida de maneira mista entre os especialistas. Oficiais de inteligência reivindicam alguém da própria agência por temerem interferências externas e a primeira polêmica já se impôs quando o ex-delegado indicou um suposto bolsonarista para o cargo de diretor-adjunto, Alessandro Moretti. Tanto ABIN, PF e assessores de Lula denunciaram o perfil bolsonarista de Moretti, mas Correa insistiu em negar tal vinculação.

Acredita-se que sob a tutela civil a ABIN seja direcionada a vigiar movimentos extremistas, crime organizado e questões externas de segurança. O caminho de desmilitarizar a agência será longo e já demonstra problemas com a denúncia de uso de um sistema israelense de espionagem. O primeiro sinal positivo do novo perfil da agência é a indicação de Marco C. Cepik para a direção da Escola de Inteligência (ESINT). O novo diretor é um respeitado especialista em estudos de inteligência e autor de obras que são referências nacionalmente e internacionalmente. A formação de novos oficiais orientados em parâmetros civis e democráticos são os primeiros passos para desmilitarizar um órgão que por essência é civil e estratégico para a tomada de decisão. 

Política de Defesa 

Lançamento de foguete sul-coreano pela Base de Alcântara 

 

No dia 20 de março, foi lançado do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) um foguete sul-coreano – o primeiro de uma empresa privada na base. O lançamento, custeado pela empresa sul-coreana Innospace, marcou, segundo a Força Aérea Brasileira, uma nova fase para o CLA, dando início a uma abertura comercial. Segundo o Tenente-Brigadeiro do Ar Maurício Augusto Silveira de Medeiros, diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), “Este lançamento quebrou um paradigma, pois poderemos ter diversas operações comerciais, a partir do Centro Espacial de Alcântara (CEA), nos colocando entre os centros espaciais reconhecidos mundialmente e inseridos nesse mercado tão grande e que se desenvolve a cada dia mais, que é o mercado espacial”.

O lançamento do foguete sul-coreano é, também, uma consequência do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, assinado em 2019 pelo Governo Bolsonaro. Conforme publicado pelo grupo da OPEB em 2019, esse acordo apresenta pontos questionáveis a respeito da soberania brasileira. Todavia, é interessante ver que, no período do acordo, não se considerava a opção e possibilidade da cessão da base Alcântara para empresas privadas de estados aliados tanto dos Estados Unidos ecomo do Brasil – um ponto que, no caso sul-coreano, foi positivo ao colocar o CLA como uma possibilidade no mercado para países com programas espaciais (e indústrias aeroespaciais) em pleno desenvolvimento. 

 

Na mídia sul-coreana, se destacou o fato do lançamento ser também o primeiro lançamento de um foguete pela indústria privada sul-coreana, e também de o sistema de navegação utilizado pelo foguete ter sido o sistema brasileiro SISNAV, que funcionou com êxito. Desse modo, o lançamento de Alcântara por meio da parceria entre os dois países abre também a possibilidade de novas futuros acordos de cooperação bilaterais entre Coreia do Sul e Brasil.

 

Contudo, é importante enfatizar a pertinência dos debates acerca das questões envolvendo a soberania brasileira no acordo. Em artigo assinado por  Allison Ferdika, o site Geopolitical Futures chama a atenção para o papel da América Latina na corrida espacial entre China e Estados Unidos. O texto chama a atenção para a viagem de Lula para a China, onde seria negociada a construção de um novo satélite mas num contexto em que qualquer acordo assinado por um país do Hemisfério Ocidental com Beijing não seria visto com bons olhos por Washington. Isso ocorreria pelo simples fato de que o setor espacial é um campo de batalha central na disputa tecnológica entre EUA e China, o que já estaria entrando no cálculo de ambos pelo número de acordos que estariam sendo assinados em todo o subcontinente.

 

O Blindado Guarani entre o sucesso comercial e dependência tecnológica. 

 

O blindado de transporte de tropas Guarani é um dos grandes projetos de defesa levados a cabo pelo Exército Brasileiro. Em uma associação com a área militar da empresa italiana Iveco, o programa é a tentativa de reviver a indústria de blindados nacional, que outrora foi atendida por empresas nacionais nos anos 1970 e 80. 

Tal veículo teve seu desenvolvimento bem sucedido, mas o programa como um todo sofreu grande redução de escopo, e carecia de exportações. A maré de insucesso comercial parece estar acabando, uma vez que em anos recentes, emplacou vendas para Gana, Filipinas e está em vias de fechar um contrato de 156 viaturas para a Argentina (uma fantástica venda). Entretanto, com o sucesso também surgiram novos (e previsíveis) desafios. 

Em fevereiro foi noticiado que a Alemanha embargou exportação dos Guarani para as Filipinas, devido aos componentes alemães presentes na sua produção. Não é claro atualmente se tal medida, nessa altura do campeonato (com mais de 600 já fabricados no total), é uma retaliação ao Brasil (por conta da negativa do país em fornecer munição para a Ucrânia), Filipinas ou ambos. Mas é o preço que o país sempre correrá por ter optado por uma estratégia de defesa baseada na cooperação dependente com empresas de fora, sujeitas a interesses dos seus respectivos governos.      

 

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