21 de setembro de 2023
Por Ana Claudia Paes, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Caio Vitor Spaulonci, Felipe Firmino Rocha, Gabriel de Mello Rodrigues, Giovanna Furquim Moreschi e Juliana Valente Marques (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)
“Somente movidos pela força da indignação poderemos agir com vontade e determinação para vencer a desigualdade e transformar efetivamente o mundo ao nosso redor”.
Presidente Lula na ONU
Na última terça, 19 de setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferiu um discurso marcante na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Sua presença no pódio da ONU representa um momento importante não apenas para o Brasil, mas também para toda a América Latina, destacando a valorização do multilateralismo e a expectativa em torno de sua participação.
O contexto da abertura
A abertura da Assembleia Geral da ONU sempre é cercada de expectativas quanto aos temas a serem abordados e os questionamentos que surgirão. Neste ano, não foi diferente. Havia forte expectativa com a volta de Lula, após quatro anos da presença de Jair Bolsonaro no púlpito. Digna de nota foi a ausência de quatro dos cinco líderes dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU no evento. Apenas Joe Biden estava presente. Vladimir Putin e Xi Jinping mandaram representantes, assim como Emmanuel Macron e Rishi Sunak, demonstrando um esvaziamento do mais importante fórum de lideranças globais, o que pode corroborar a proposta de Lula de um mundo multipolar para além da ONU. A ausência de líderes de importantes nações no palco da ONU pode suscitar preocupações sobre a coesão e a eficácia da organização internacional, bem como ser vista como sintoma de uma possível crise na ONU, uma vez que a ausência de líderes-chave pode dificultar a tomada de decisões e a busca por consenso em questões globais.
Nesse contexto, a visão de Lula de um mundo multipolar, onde o poder e a influência são compartilhados entre várias nações, pode ganhar destaque. Ele parece buscar uma ONU mais inclusiva e adaptada aos desafios contemporâneos, e sua proposta de reforma na governança internacional pode ganhar apoio em um cenário de ausência de líderes de países importantes.
Durante os anos em que o Brasil esteve sob a liderança do governo Bolsonaro, a política externa enfrentou críticas e controvérsias consideráveis. O Brasil viu-se isolado em muitas questões e a sua imagem global foi afetada negativamente devido a uma postura diferente da sua tradicional em pautas ambientais e de direitos humanos.
A chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência representou uma ruptura significativa com a abordagem diplomática brasileira anterior. Sua intervenção, caracterizada pela leitura perspicaz do contexto internacional, ofereceu uma visão ampla e esclarecedora de questões que afetam a comunidade internacional. O presidente Lula dividiu seu discurso em dois momentos. Primeiramente, comentou a situação interna e fez uma leitura do panorama internacional. Em seguida, direcionou seu olhar para a forma como o Brasil se coloca diante desse cenário.
Lula começou seu discurso destacando a importância da democracia e como ela foi fundamental para superar momentos de ódio, desinformação e opressão no Brasil. Ressaltou que a vitória da democracia permitiu que a esperança prevalecesse sobre o medo, renovando a confiança na capacidade do país de enfrentar desafios.
A missão delineada no discurso foi clara: unir o Brasil e reconstruir um país soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre. Ele enfatizou a importância de o Brasil se reencontrar consigo mesmo, com sua região e com o mundo, destacando especialmente o compromisso com o multilateralismo.
A frase “O Brasil está de volta” expressou o desejo de contribuir de maneira significativa para enfrentar os principais desafios globais, demonstrando um compromisso renovado com a cooperação internacional e a busca de soluções conjuntas.
Lula aproveitou a oportunidade para destacar a necessidade da resolução de questões cruciais, como os conflitos armados, a crise climática, a desigualdade global e a crise do multilateralismo. Seu discurso contrastou com as tensões e os confrontos que caracterizaram a política externa anterior.
Como forma de demonstração da estabilidade política interna do país, a delegação presente na Assembleia incluiu os presidentes das duas câmaras nacionais, Rodrigo Pacheco (PSD), do Senado, e Arthur Lira (PP),da Câmara. Também estiveram presentes representantes de diversos ministérios, como as ministras do Meio Ambiente, Marina Silva, dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, da Saúde, Nísia Trindade, da Gestão, Esther Dweck, das Mulheres, Cida Gonçalves, além dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, das Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o titular das Relações Exteriores, Mauro Vieira.
A presença de Lula na tribuna representou não apenas uma mudança na liderança política do Brasil, mas também de direção na forma como o país se posiciona e se relaciona com a comunidade internacional. O discurso de Lula marca o início de uma nova era na diplomacia brasileira ao mesmo tempo que recupera elementos da política externa “ativa e altiva” executada durante seus dois primeiros mandatos. Nesse momento, assim como há 20 anos atrás, os princípios de cooperação, solidariedade e busca de soluções conjuntas se constituem como centrais na inserção internacional do Brasil.
O presidente lembrou de seu primeiro pronunciamento na Assembleia Geral, em 2003, quando afirmou sua confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência. No atual discurso o mandatário traz à tona a continuidade e os resquícios de políticas exteriores anteriores. Caracterizado pela leitura do contexto internacional, Lula apresentou o que o Brasil pode fazer nesse cenário global e como pode contribuir para a solução dos desafios que o mundo enfrenta.
Cabe ressaltar uma curiosidade acerca dos motivos que fizeram o Brasil se constituir como o país que abre a Assembleia Geral. Uma das teorias é que isso pode ser visto como um “prêmio de consolação” após a campanha do país para se tornar um dos membros permanentes do Conselho de Segurança nos primórdios da Organização, logo rejeitada. Vale notar que o Brasil começou a abrir a Assembleia Geral em 1949, 1950 e 1951, e depois em 1955, com exceções em 1983 e 1984. Essa peculiaridade está ligada ao contexto da Guerra Fria e à suscetibilidade das nações diante das tensões globais.
O discurso atual pode ser visto como uma tentativa de reforçar o compromisso do Brasil com o multilateralismo e a cooperação internacional, bem como uma reforma da ONU e de outros arranjos multilaterais que envolvam outros fóruns decisórios, num momento em que a governança mundial está em questão.
Pontos-chave do discurso de Lula
Os pontos-chave do discurso de Lula incluíram:
Conflitos Armados
Lula destacou a importância de buscar soluções pacíficas para os conflitos armados e promover a estabilidade global. Neste cenário, ele enfatizou a postura do Brasil de resolução pacífica das controvérsias e o valor da negociação como meio de solucionar os conflitos. Mencionou, mas não deu o destaque esperado à guerra na Ucrânia, uma vez que citou diversos outros enfrentamentos que ocorrem pelo mundo
Crise climática
Lula trouxe à tona a preocupação com eventos recentes ligados à crise climática, como os desastres no Marrocos, na Líbia e no Rio Grande do Sul, e enfatizou a responsabilidade dos países ricos do G20 nesses problemas. Ele ressaltou a necessidade de ações concretas para combater as mudanças no meio ambiente.
Desigualdade e fome
A desigualdade global foi apontada como problema central, especialmente a fome que afeta milhões em todo o mundo. O presidente apontou que “o mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade”.
Crise do multilateralismo
O chefe do Executivo expressou preocupação com a crise da governança mundial e ressaltou a importância de reformular instituições globais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Conselho de Segurança da ONU. Com as críticas ao Fundo, Lula trouxe dados dos investimentos disponíveis para países europeus e africanos em 2022, mostrando que a desigualdade está presente até mesmo nas instituições criadas para seu combate. Por sua vez, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), o presidente apontou sua paralisia e ressaltou que a organização privilegia o protecionismo dos países ricos e criticou o atual sistema de solução de controvérsias.
O petista também mencionou a necessidade de fortalecer o BRICS como uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre emergentes. O bloco surgiu como resposta ao imobilismo das instituições globais e enfatizou que a recente ampliação do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem internacional que reflita a pluralidade econômica, geográfica e política do século XXI. As decisões unilaterais, completou Lula, podem prejudicar profundamente nações: “O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo”, por parte dos Estados Unidos.
Ascensão do fascismo
O presidente enfatizou a necessidade de se reforçar a democracia e combater a ascensão do fascismo em todo o mundo. Defendeu a preservação dos valores democráticos e a promoção do Estado de Direito como pilares essenciais para a paz e a estabilidade global. O mandatário citou a situação guatemalteca e o potencial risco do vencedor das eleições ser impedido de assumir o cargo. Algo semelhante ao que ocorreu no Brasil em 8 de janeiro, com a tentativa de golpe nas sedes dos três poderes.
Apontou ainda que o neoliberalismo traz ameaças às democracias, pois “seu legado é uma massa de deserdados e excluídos” que possibilitam a ascensão de “aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas” com alguns “sucumbindo à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”.
Neste contexto, destacou a necessidade do combate à desinformação e crimes cibernéticos, ressaltando a liberdade de imprensa, e criticando de forma direta a prisão do jornalista Julian Assange.
Desenvolvimento sustentável
No que diz respeito à Política Externa Brasileira (PEB), Lula destacou a importância da Amazônia, que fala por si só e é fundamental para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Ele mencionou as contribuições do Brasil em diversas áreas, como igualdade de gênero e combate à fome. Além disso, ressaltou a necessidade de uma reforma trabalhista que promova o “trabalho decente” em detrimento do neoliberalismo e defendeu o resgate das melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU.
Reforma das instituições globais
O presidente reforçou a necessidade de reformar as instituições globais, incluindo o Conselho de Segurança da ONU, para torná-las mais representativas e eficazes, reforçando a posição histórica do Brasil, assim como fez na Cúpula dos BRICS, em agosto. Lula afirmou que o Conselho de Segurança vem perdendo sua credibilidade, principalmente após seus países-membros serem incapazes de trazer uma resolução pacífica para um conflito iniciado por um membro do próprio Conselho – na fala, o presidente menciona os membros permanentes, “que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime”, crítica que transpassa a Guerra Rússia-Ucrânia. Ele também expressou a vontade do Brasil de se tornar um membro permanente deste órgão e contribuir de maneira mais significativa para as decisões que moldam o cenário internacional.
Considerações finais
Nos três dias em que esteve em Nova York, o presidente realizou diversos encontros bilaterais com líderes mundiais, incluindo doadores do Fundo Amazônico e os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e dos EUA, Joe Biden, com o qual Lula realizou cerimônia de lançamento da “Iniciativa Global Lula-Biden para o Avanço dos Direitos Trabalhistas na Economia do Século XXI”.
Reflexo de uma política externa altiva e ativa, o discurso de Lula representa uma tentativa de realizar intersecções entre pautas internas e externas, como o combate à desigualdade.
Lula proferiu uma intervenção sofisticada, por tratar de praticamente todos os temas que afetam a agenda internacional. Há agora a expectativa de que o Brasil seja capaz de realizar articulações com outros países visando impulsionar mudanças no cenário global.