A reaproximação entre Brasil e Angola e o fortalecimento do Sul Global

19 de outubro de 2023

 

Por Aline Herrera Vasco e Bruna Muriel (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)

 

Exploramos a recente reaproximação entre o Brasil e Angola, destacando os laços históricos, culturais e econômicos que unem essas nações. Sob o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, essa reaproximação busca não apenas aprofundar as relações bilaterais, mas também fortalecer o papel do Brasil no cenário internacional. Abordamos as implicações dessa parceria para o Sul Global e a necessidade de superar as hierarquias étnico-raciais enraizadas na história colonial. À medida que o Brasil retoma seu protagonismo global, este artigo analisa as oportunidades e desafios de construir uma cooperação verdadeiramente democrática e anticolonial.


A negligência da Política Externa Brasileira em relação aos países africanos observada entre a crise política de 2013 e o fim do governo de Jair Bolsonaro em 2022 vem sendo substituída, nesse terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pela retomada das relações estratégicas com o continente, visitado pela comitiva presidencial brasileira em agosto deste ano. Angola, país descrito por Lula como “um país irmão, com quem compartilhamos a mesma língua, muita história e laços de sangue e cultura em comum”, foi um dos países visitados. 

Para além de impulsionar novos acordos político-econômicos, a reaproximação com Angola está marcada pelo reconhecimento e fortalecimento dos vínculos históricos, linguísticos e culturais entre os dois países. Vínculos, esses, cuja origem foi o violento translado de milhares de negros/as oriundos do reino do Ndongo, cujos territórios e corpos foram ocupados, violentados e escravizados, para a maior colônia portuguesa de além-mar.  Segundo dados do The Trans-Atlantic Slave Trade Database, inclusive, os territórios que hoje correspondem a Angola e Brasil protagonizaram o maior fluxo de pessoas escravizadas entre 1515 e 1865, quando mais de 12,5 milhões de indivíduos foram deslocados violentamente (Imagens 1 e 2). 


Imagem 1: Visão Geral do Comércio de Escravos para fora da África entre 1500 e 1900.

Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database

 

Imagem 2: Volume e direção do comércio transatlântico de escravos de toda a África para todas as regiões americanas.

Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database

 

Durante a visita, o presidente Lula realizou reuniões privadas e ampliadas com o seu homólogo João Lourenço, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Líder vinculado aos movimentos de trabalhadores e à defesa da soberania nacional, Lourenço participou da luta independentista contra o colonialismo português durante a década de 1970. Vale a pena lembrar que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência angolana em 1975. 

Entre as iniciativas que o Brasil pretende conduzir no continente africano estão a abertura de novas embaixadas, a reabertura daquelas fechadas durante o governo Bolsonaro e o retorno do investimento de empresas brasileiras na região em setores que vão do agronegócio à indústria de defesa. Em Angola, especificamente, a discussão girou em torno de acordos de cooperação para a diversificação da economia angolana e a entrada de investimentos brasileiros em setores estratégicos, como infraestrutura e energia. 

O Ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad, reforçou a necessidade dos empresários brasileiros explicarem, à sociedade brasileira, a importância do estreitamento das relações comerciais com a África: “Tem empresa brasileira abrindo filial na Alemanha para ter acesso à linha de crédito e contratar os bens alemães para fazer serviços em Angola. Eu disse que é importante que eles, empresários, expliquem isso, porque pode dar a impressão de que é uma coisa ideológica e não pragmática”. 

Isso porque, apesar da importância estratégica desses acordos para a PEB e do ganho econômico potencial que anunciam para o empresariado brasileiro, a cooperação com a África ainda gera desconfiança. O ex-presidente Jair Bolsonaro sequer visitou o continente durante o seu mandato, refletindo e reforçando a interpretação da África como ator menor e passível de desprezo. 

Hierarquia e colonialidade na PEB 

A raiz histórica deste olhar sobre o continente africano está, entre outros fatores, na manutenção da hierarquia étnico-racial forjada nos primórdios da colonização para justificar a escravidão dos povos negros e indígenas. Ainda que o colonialismo enquanto fenômeno histórico-político de ocupação estrangeira tenha praticamente deixado de existir com as lutas pela independência ao longo dos séculos XIX na América Latina, e XX na África e na Ásia, dentro da perspectiva da “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2000) seguimos vivendo em um mundo colonial, no qual se alimentam mutuamente a dominação de classes e a dominação étnico-racial. A descolonização segue, portanto, no horizonte das lutas emancipatórias.

Fanon (2010) explica como a cor foi o elemento demarcador da separação, construída ao longo do período colonial, entre o “eu” e o “outro”: o primeiro correspondendo ao lugar do colonizador, daquilo que é correto e bom e, o segundo, o lugar da antítese do “eu”, daquilo que é diferente, errado e ruim. 

Santos (2007) traz essa reflexão para a análise das desigualdades contemporâneas, explicando a responsabilidade do Direito e da Ciência Moderna na perpetuação, hoje, das linhas cartográficas confeccionadas nos primórdios da expansão marítima para dividir a zona metropolitana da zona colonial, o lado “humano” do lado “não humano” (ou “sub-humano”). Esta lógica subjaz todas as dimensões da existência humana (sociabilidade, cultura, mentalidades e subjetividades), incluindo as iniciativas políticas e comerciais que se dão no âmbito das relações internacionais. 

Na ocasião de sua visita a Angola, Lula fez o convite para que o país participe das reuniões do G20 a partir de dezembro, quando terá início a presidência brasileira do bloco que reúne as maiores economias globais.  Isso pode significar maior apoio ao projeto brasileiro de formar parte do Conselho de Segurança da ONU como membro permanente com poder de veto. Algo apontado pelo Brasil como necessário diante das falhas de atuação do  órgão que carece de representação geográfica. 

A retomada do protagonismo internacional brasileiro  traz maior expressividade para as vozes dos países periféricos e, quiçá, contribua para ampliar a margem de negociação dos países do Sul Global com os países do Norte Global. 

Desde as perspectivas anticolonialistas, entretanto, o Sul Global é compreendido para além de sua dimensão geopolítica, mas “como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo” (SANTOS, 2007, p.11). Para além do esforço de democratização das instâncias político-jurídicas internacionais, portanto, o seu fortalecimento significa um esforço de descolonização das mesmas através da presença de atores não estatais, narrativas, práticas sociais e saberes contra hegemônicos, cuja presença estremece a cartografia abissal que sustenta as hierarquias e as desigualdades do sistema internacional.  

É importante observar que as linhas abissais são primordialmente metafóricas, mas não apenas. É só observarmos o muro que acompanha a Linha Vermelha no Rio de Janeiro, escondendo a favela da Maré do olhar encantado do estrangeiro que chega ao Aeroporto Tom Jobim. Ou aquele que, há dez dias, observamos pelas imagens do terrível conflito na Faixa de Gaza. 

No primeiro caso, a divisão entre o “lado de cá” e o “lado de lá” permite a naturalização do que Abdias Nascimento denomina genocídio do negro brasileiro (Nascimento, 2016): o assassinato de negros/as periféricos/as pelas forças coercitivas do estado e, simultaneamente, o apagamento de nossa herança africana. No segundo, permite a imediata empatia com a dor dos/as israelenses, cidadãos/ãs dignos/as com histórias de vida singulares e crianças a serem protegidas pelas leis do direito internacional. Enquanto um esforço significativo se faz necessário para que brotem sentimentos de compaixão em relação aos homens, as mulheres, crianças e idosos palestinos/as que assistimos morrer dia e noite, ao vivo, há quase duas semanas. 

Esta mesma lógica explica, em parte, a visão de certos setores da sociedade brasileira de que “bom mesmo para o Brasil” é o estabelecimento de parcerias, contratos e convênios com os Estados Unidos e os países da União Europeia. Formados por uma população majoritariamente branca, de origem espiritual judaico-cristã e “cientificamente comprovados” como “mais desenvolvidos”, eles correspondem ao nosso modelo civilizatório. Simultaneamente, a relação diplomática com os países africanos é menosprezada, em um desdém histórico que se estende às culturas, línguas, saberes e espiritualidades da população negra, dentro ou fora do continente africano. 

É quase certo que novas e renovadas opressões vão surgir neste processo de reaproximação diplomática com os países africanos. É o que evidencia o legado de destruição que trouxeram, para os ecossistemas e comunidades locais de territórios africanos, aqueles megaempreendimentos impulsionados por grandes corporações brasileiras entre 2003 e 2013 (LAMAS, 2021). 

O momento, no entanto, é de celebrar. Uma celebração que, de preferência, ande de mãos dadas com a pressão para que as novas iniciativas impulsionadas pelo Brasil em Angola, Moçambique, Luanda, Ruanda e Serra Leoa estejam ancoradas em um projeto verdadeiramente pós-abissal, portanto democrático, ecológico e radicalmente anticolonial.

 

Referências Bibliográficas

 

ADAMOR, Julio. Em Angola, Lula assina acordos para retomada de parceria estratégica entre os países. Brasil de Fato, Botucatu, 25 ago. 2023. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2023/08/25/em-angola-lula-assina-acordos-para-retomada-de-parceria-estrategica-entre-os-paises>. Acesso em: 02 out. 2023.

 

BRASIL. Lula tem compromissos em três países africanos. Planalto. Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/08/lula-tera-compromissos-em-tres-paises-africanos-na-proxima-semana>. Acesso em: 02 out. 2023.

 

G1. Em Angola, Lula diz que governo estuda abertura de Consulado Geral em Luanda. G1, 26 ago. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/26/em-angola-lula-diz-que-governo-estuda-abertura-de-consulado-geral-em-luanda.ghtml>. Acesso em: 02 out. 2023.

 

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010.

 

PRAZERES, Leandro. Embaixadas e até empresas da lava jato: Como Brasil tenta recuperar o prejuízo na África. BBC News Brasil,  Angola, 26 ago. 2023.  Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c723kye0mldo>. Acesso em 17 out. 2023.

 

LABOLSSLÈRE, Paula. Em Angola, Lula defende reforma do Conselho de Segurança da ONU. Agência Brasil, Brasília, 26 out. 2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-08/em-angola-lula-defende-reforma-do-conselho-de-seguranca-da-onu>. Acesso em: 2 out. 2023.

 

FOCUS BRASIL. Lula retoma parceria com Angola – Focus Brasil. Focus Brasil, 29 ago. 2023. Disponível em: <https://fpabramo.org.br/focusbrasil/2023/08/29/lula-retoma-parceria-com-angola/>. Acesso em: 02 out. 2023.

LAMAS, I. A. Um vazio de governança? Desinvestimentos da Vale em Moçambique e atuações conflituosas da corporação em perspectiva internacional. In: Indústria Extractiva em Moçambique: Desafios, Sucessos e Perspectivas, 2021, Maputo. Anais sobre a Indústria Extractiva em Moçambique: Desafios, Sucessos e Perspectivas, 2021.

 

MAZUI, Guilherme. Em Angola, Lula diz que Brasil vai voltar a investir na África. G1, Brasília, 25 ago. 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/25/em-angola-lula-diz-que-brasil-vai-voltar-a-financiar-empreendimentos-na-africa.ghtml>. Acesso em: 02 out. 2023.

 

NASCIMENTO Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.

 

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, pp. 117-142. Buenos Aires: Editora CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. 

 

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 03-46, abr. 2007.

 

_____; MENESES, Maria Paula. Introdução. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 09-21.

 

WALTZ, Kenneth. Teoria das Relações Internacionais: realismo estrutural e neorealismo. Tradução de Eleni Maria Dantas Teixeira. 2ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Artmed, 2008

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