BRICS e a desdolarização

19 de outubro de 2023

 

Por Dante Apolinário, Gabriel Soprijo, Leonardo Poletto Di Giovanni, Maria Clara Reis C. Pires e Natália Martinho (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)¹

 

Os BRICS já vinham ganhando espaço na economia mundial dado o crescimento das suas economias e peso em setores estratégicos como energia, indústria e produção de alimentos. Além disso, a guerra da Ucrânia e as sanções impostas contra a Rússia impulsionaram as discussões já presentes no Grupo sobre a desdolarização. Com a entrada dos novos membros, os BRICS crescem em todas as áreas e se torna um importante grupo do Sul-Global na arena mundial.

 

Em de agosto de 2023, aconteceu a 15ª Cúpula dos BRICS em Joanesburgo, na África do Sul, que teve em sua agenda o tema de desafiar o domínio global do dólar na economia e no comércio internacional. Essa pauta está sendo discutida mundialmente, principalmente após a invasão da Ucrânia, quando a Rússia sofreu diversas sanções estadunidenses e o sequestro de suas reservas em dólar. 

Atualmente, Rússia e China lideram um esforço para aumentar a cooperação entre os BRICS e também expandir a adesão ao bloco. Estima-se que 40 nações tenham demonstrado interesse em participar. Como resultado da Cúpula, foram adicionados 6 novos países: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes (EAU), Etiópia e Irã. 

O debate sobre a  desdolarização da economia está crescendo tanto nos BRICS quanto no resto do mundo, e, ao que tudo indica, o bloco pode ter um papel de destaque na transição para um sistema multi-moeda, com o objetivo de diminuir a dependência do dólar no comércio internacional. Em uma entrevista à Sputinik Brasil, o presidente do Grupo Netley, Michael Goddard, disse que nos últimos 20 anos a parcela de pagamentos em dólar, embora ainda dominante, caiu devagar, mas a uma taxa constante, e é notável que esse processo está cada vez mais ganhando adesão e seria interessante que os BRICS criassem uma moeda comercial: “Penso que uma das maneiras pelas quais os BRICS poderiam desenvolver algo para competir com isso seria a tecnologia para de fato conectar os mercados de títulos dos [países do] BRICS”.

Já no Brasil, o presidente Lula  vem contribuindo com o debate e questiona: “Toda noite, me pergunto por que é que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar. Por que é que nós não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que é que nós não temos o compromisso de inovar?”, disse Lula em um discurso em Xangai, durante visita ao Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), também conhecido como “Banco dos BRICS”.

 

A problemática do dólar 

 

A moeda é uma mercadoria universal que expressa o valor de todas as mercadorias, contém valor em si mesma e surgiu a partir da necessidade de facilitar as trocas nos mercados. Além de ser um meio de troca, também funciona como unidade de medida de valor e serve para acumular reservas, ainda que este seja afetado pela inflação ou deflação.

 

Desde o estabelecimento dos Estados Unidos como a maior potência econômica global após a Segunda Guerra Mundial, o dólar estadunidense coordena as transações internacionais e domina as reservas monetárias mundiais. Entre 1999 e 2019, 96% das transações internacionais foram feitas em dólar. Tendo em vista esse cenário, surgiu o movimento de desdolarização, que se refere ao processo de diminuição da dependência do dólar enquanto principal moeda utilizada globalmente em transações e como reserva monetária.

 

Mesmo com a ascensão e a presença de outras potências econômicas como a China e a União Europeia, a maior parte das transações internacionais é feita em dólar. Essa realidade obriga os países a acumularem reservas dessa moeda, gerando perdas com o câmbio e tornando-os muito vulneráveis à volatilidade do dólar. Além disso, empréstimos dessa moeda feitos por órgãos como o FMI são condicionados à adoção de certas políticas pelos tomadores de crédito.

 

A hegemonia do dólar estadunidense foi defendida historicamente devido à força e centralidade da economia norte-americana que sustenta a confiança. Isso é muito visível também  no comércio entre a Argentina e o Brasil. Desde 2004 existe um mecanismo chamado de Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) que possibilita o comércio entre os dois países com pagamento direto entre peso e real sem passar pelo dólar. Devido à falta de confiança e conveniência em operar em dólar, o sistema só está sendo utilizado em uma parte menor do comércio bilateral. 

 

Contudo, a tendência é o surgimento de outros centros de dinamismo econômico com certa autonomia. A crise financeira de 2008 mostrou inclusive a fragilidade do sistema financeiro estadunidense. Mais recentemente, as sanções impostas à Rússia pela guerra da Ucrânia em 2022, com o bloqueio das suas reservas em dólar, geraram um cenário de maior incerteza internacional, motivando vários atores estatais a buscarem uma maior diversificação de suas reservas monetárias e uma menor dependência do dólar. Embora com pouco impacto prático, o debate ressurgiu também no Mercosul, onde se começou a sugerir avançar rumo a uma moeda de referência regional. Não serviria como moeda única (como é o caso do Euro). Dessa forma, não substituiria o real e nem o peso argentino. O objetivo é servir como um substituto para o dólar no comércio entre os dois países, de modo a garantir a soberania monetária entre eles. Por enquanto essa discussão não avançou, inclusive devido aos problemas na Argentina, altamente endividada em dólar. Surgiu no país vizinho inclusive uma discussão que vai na direção oposta, embora igualmente sem pé no chão: o candidato à presidência da República da Argentina com chances de ganhar as eleições Javier Milei apresentou propostas liberais ultra-radicais, entre elas a eliminação do peso argentino e a adoção do dólar como moeda oficial. Porém, esta é vista como uma política praticamente inexecutável, pois seriam necessárias reservas significativas de dólar, algo que a Argentina não possui. 

 

O peso econômico dos BRICS 

 

Embora de forma modesta, os Brics, ao contrário do Mercosul e outras realidades, estão em condição de dar alguns passos concretos na direção da desdolarização, devido ao tamanho das suas economias.

 

Os BRICS já vinham se destacando na economia mundial pelo peso que passaram a ter no mundo nos últimos anos – sobretudo puxados pela China. Com a entrada dos novos membros em 2024, o grupo ganha ainda maior importância na economia mundial. Alguns números com os novos membros na participação mundial saltam aos olhos: 36% do território; 45% da população; 38,3% da produção industrial em 2021 e 23,4% do volume de exportações, além de um peso significativo na produção agrícola e de metais.

 

A adição dos novos membros coloca os BRICS em um novo patamar em dois terrenos que merecem destaque. Em primeiro lugar, com a entrada da Arábia Saudita, Irã e EAU (e também o Egito e a Argentina em menor medida), junto de Brasil, Rússia e China, os BRICS passam a ter um papel muito grande nos setores de energia e petróleo e gás. De acordo com os dados da BP, nos seus Statistical Review’s, os BRICS passarão a possuir 40,6% das reservas provadas de petróleo (dado de 2020) e 42,4% da produção mundial de petróleo (dado de 2021), tendo participação maior até mesmo do que a OPEP, que detém 35,3% da  produção mundial. Além disso, o grupo também possui participação de  37% do gás, e 42% de energias renováveis na produção mundial. 

 

Em segundo lugar, Arábia Saudita e EAU fornecem um poder de fogo financeiro muito significativo para o grupo. Por serem dois dos maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo, estes dois países têm uma entrada de petrodólares gigantesca e vêm acumulando grandes reservas financeiras por meio de seus Fundos Soberanos. Esse fator pode permitir uma expansão muito significativa do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, que apesar de já ter mais de US$ 32 Bi em 96 projetos aprovados, ainda possui muito espaço para crescer de tamanho e importância.

 

Quais passos concretos os BRICS podem dar então? Em primeiro lugar, a proposta  de efetuar suas transações internas em moeda local e cogita-se até mesmo a possibilidade de criar uma moeda de referência própria para as transações intra-bloco. Fala-se no R5, aproveitando o fato de que os cinco membros que formavam os BRICS até a expansão tinham todas moedas com um nome que começa com R: Real, Rublo, Rupia, Renminbi, Rand.  Uma unidade de conta cujo valor seria determinado pelo cesto de cinco moedas, onde cada um entraria com o peso relativo da sua economia. A constituição de R5 como uma moeda de referência no mundo é viável exatamente pelo peso das economias que a sustentariam e que dariam confiabilidade.

 

Além da transação em moedas locais e constituição de uma moeda própria de referência, a desdolarização passa também por uma diversificação das reservas, valorizando moedas dos próprios países dos Brics. 

E, em quarto lugar,  é no NBD que o BRICS pode avançar mais rapidamente ao captar e emprestar em moeda local. Em 2023 somente 20% das captações e empréstimos eram em moeda local. Isso significa, na prática, um ganho enorme. Algum agente econômico que toma um empréstimo do NDB no Brasil faria isso em real e pagaria, portanto, juros e o principal em real, sem ter de enfrentar o risco cambial. A meta estabelecida pela presidenta do Banco, Dilma Rousseff, é chegar a 30% nos próximos dois anos, algo perfeitamente atingível. Isso teria inclusive um efeito demonstração, aumentando a credibilidade das moedas dos cinco membros fundadores do NDB. 

 

Conclusão

 

Há um debate crescente e generalizado no mundo questionando os privilégios e abusos que os EUA têm ao manter a hegemonia do dólar na economia global. Há um desejo de se pensar em uma futura economia internacional com uma multipolarização financeira e isso faz parte de um busca por multipolaridade no sentido mais amplo, na qual mais países possuiriam maior espaço e autonomia relativa com relação às políticas monetárias dos EUA. 

 

O problema é que é um processo complexo, que encontra resistência não somente dos próprios EUA, mas de um conjunto de agentes econômicos que se sentem mais confortáveis e mantêm mais confiança no dólar. Por isso, muitos debates se mantêm na esfera da retórica sem se traduzirem em políticas concretas. 

 

Foi demonstrado, porém, que os BRICS estão em condição privilegiada para dar alguns passos concretos: aumentar trocas comerciais em moedas locais, aumentar parte das reservas internacionais em moedas de seus parceiros, criar uma moeda de referência comum e sobretudo, aumentar a atuação do NDB, o Banco do Brics, em moeda local. 

 

A ampliação do grupo reforça seu peso e sua condição de avançar nessas políticas, por enquanto liderado pelos primeiros cinco países. A adesão dos novos membros elevou o patamar do grupo no cenário internacional, principalmente em dois aspectos. O primeiro, de energia, devido à adesão de países como Arábia Saudita, Irã e EAU, pois, com isso, o grupo passou a representar 42,4% da produção mundial de petróleo, com base nos dados de 2021. Outro ponto é que Arábia Saudita e EAU fornecem um poder de fogo financeiro importante por serem dois maiores Fundos Soberanos, o que pode ajudar a promover uma expansão significativa do Banco dos BRICS.

 

Há de se lembrar, porém, que o dólar ainda tem um peso muito forte no sistema financeiro internacional e esse processo de mudança da realidade é lento, complexo e cheio de contradições. Não é uma empreitada para voluntaristas ou aventureiros.


¹Agradecimentos aos professor Giorgio Romano Schutte.


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