A recente hegemonia brasileira na Copa Libertadores da América

16 de novembro de 2023

 

Por Gustavo Mendes de Almeida (Imagem: Unsplash)

 

A crise que se abate sobre as principais economias da América do Sul, aprofundada pela pandemia e pela Guerra na Ucrânia, se expressa também nos estádios de futebol. Com o título do Fluminense, conquistado em cima do Boca Juniors (ARG) no dia 4 de novembro, o futebol brasileiro chegou a sua quinta conquista consecutiva da Copa LIbertadores da América, evidenciando o enfraquecimento do futebol uruguaio, que não chega sequer a uma final desde 2011, e que tem a migração precoce de jovens talentos para a Europa como fator que contribui para tal. Do outro lado do rio da Prata, times argentinos enfrentam dificuldades semelhantes, sobretudo por conta da fragilização financeira dos clubes, o que os insere em uma realidade completamente diferente de quando eram dominantes no continente, entre os anos 1960 e 1990.

 

A Copa Libertadores da América é o principal torneio de clubes de futebol da América do Sul. Por muito tempo, os times argentinos foram os verdadeiros donos da competição, seguidos pelos clubes uruguaios. Entretanto, especialmente a partir da década de 1990, as equipes do Brasil passaram a dar maior importância ao campeonato e, aliado a dificuldade dos clubes uruguaios em manter elencos fortes por muito tempo e ao aprofundamento da crise econômica na Argentina, os brasileiros conquistaram um espaço cada vez maior no torneio, dinâmica que encontra seu ponto mais alto com o desfecho da final de 2023. 

 

Em um Maracanã lotado, após lamentáveis confrontações entre os torcedores dos dois clubes, o Fluminense venceu o Boca Juniors e conquistou a Copa Libertadores da América, título inédito para um dos clubes mais tradicionais do Brasil. A vitória do Flu faz com que o Brasil atinja uma marca histórica na competição: é a primeira vez que clubes de um mesmo país vencem a Libertadores por cinco temporadas seguidas: Flamengo (2019 e 2022), Palmeiras (2020 e 2021) e o Fluminense (2023).

 

Historicamente, os grandes adversários dos clubes brasileiros foram os argentinos, que ainda possuem vantagem sobre o Brasil na quantidade de títulos conquistados, sendo 25 taças para os hermanos contra 23 para os brasileiros, desde o início da competição em 1960. A terceira força do continente é o Uruguai, que possui 8 taças, sendo cinco para o Penãrol e três para o Nacional. Os demais países possuem menor tradição no futebol sul-americano. Paraguai e Colômbia possuem três títulos cada, em uma hegemonia do Olímpia em solo paraguaio – sendo responsável por todas as três conquistas do país -, enquanto na Colômbia o Atlético Nacional de Medellín ganhou duas Libertadores e o Once Caldas se sagrou campeão uma única vez. O Colo-Colo (CHI) e a LDU de Quito (EQU) são os responsáveis pelo único título que Chile e Equador possuem. Bolívia, Peru e Venezuela não possuem clubes que conquistaram a Libertadores, similarmente ao México, que entre 2000 e 2016 teve seus clubes disputando a competição. 

 

Nos últimos anos tem se evidenciado uma superioridade dos clubes brasileiros em relação aos demais clubes da América do Sul. Para termos uma dimensão, de 2010 até 2023, os clubes brasileiros não foram campeões em apenas quatro oportunidades (2014, 2015, 2016 e 2018). Neste período, os países com menor tradição na competição não conseguiram alterar essa lógica e, além disso, clubes uruguaios e argentinos, que dominavam o continente até meados dos anos 1990, estagnaram em relação ao futebol brasileiro. 

 

Uruguai, um celeiro de craques que padece perante a saída precoce de suas jóias

 

O Uruguai é um caso interessantíssimo no mundo do futebol. Como pode um país com uma área inferior ao estado do Ceará, com menos de 3,5 milhões de habitantes, revelar tantos craques? Uma geração de ouro, encabeçada por Diego Forlán, Edinson Cavani e Luisito Suárez está chegando ao fim, mas jovens talentos uruguaios já estão surgindo para substituí-los na seleção Celeste. A questão é que esses talentos pouco tempo ficam em solo uruguaio, uma situação também enfrentada por Brasil e Argentina, mas que afeta com maior intensidade um país em que a população é substancialmente menor. Exemplos dessa dinâmica são os jogadores Darwin Núñez (Liverpool-ING), Ronald Araújo (Barcelona-ESP) e Federico Valverde (Real Madrid-ESP), que atuam em grandes clubes da Europa e se constituem nos três uruguaios com maior valor de mercado, segundo o site especializado Transfermarkt. Estes jogadores saíram ainda muito cedo do Uruguai e por cifras baixas se comparado a seu potencial, o que impediu com que seus clubes de origem pudessem se reforçar e repor suas saídas. 

 

O Peñarol tem se notabilizado por revelar grandes jogadores da atual geração, entre eles estão o centroavante Darwin Núñez e o meio-campista Federico Valverde. Núñez deixou o clube no ano de 2019, após apenas 22 jogos com a camisa carbonera, com destino ao Almería (ESP), por cerca de € 15 milhões – desde 2022 o atleta de 24 anos veste a camisa 9 do Liverpool (ING), quando foi adquirido por cerca de € 80 milhões, uma quantia cinco vezes maior do que o Penãrol recebeu apenas três anos antes por sua venda. Federico Valverde, por sua vez, representa um caso ainda mais extremo, uma vez que foi vendido ao Real Madrid (ESP) no ano de 2016 após apenas 13 partidas pelo Peñarol, por uma quantia de € 5 milhões – hoje é avaliado em € 100 milhões, ou seja, um valor vinte vezes maior. 

 

O zagueiro Ronald Araújo possui uma carreira distinta em relação a Valverde e Núñez. Diferentemente destes, Araújo teve uma transferência interna antes de ir para a Europa, sendo vendido pelo Rentistas ao Boston River em 2017, em uma transferência avaliada em € 395 mil. Um ano depois, o Barcelona (ESP) adquiriu o jovem zagueiro por € 4,7 milhões. Hoje, o jogador de 24 anos está avaliado em € 70 milhões, quatorze vezes mais. 

 

As precoces transferências de jogadores sul-americanos para a Europa, que corroem nosso futebol, afetam sobremaneira os uruguaios. O Peñarol não vence uma Copa Libertadores desde 1987, tendo como melhor resultado desde então um vice-campeonato frente ao Santos, no ano de 2011, sendo essa a única vez que o time chegou à final desde seu último título. Por sua vez, o Nacional venceu sua última Libertadores no ano de 1988, sendo essa a última vez que o clube de Montevidéu chegou à uma final da competição. Para além dos dois clubes, nenhum outro time do Uruguai chegou sequer a uma final de Libertadores em toda a história. 

 

Os impactos da crise econômica nos clubes argentinos

 

Até meados dos anos 1990 os clubes da Argentina dominavam a Copa Libertadores. De 1960 até 1990, Boca Juniors, River Plate, Estudiantes, Racing, Argentinos Juniors e Independiente foram responsáveis por incríveis quinze taças, em um período no qual os clubes brasileiros venceram apenas cinco vezes. É fato que a crise econômica da Argentina por si só não explica a queda de rendimento dos clubes do país na competição, entretanto, com o aprofundamento deste processo como herança da violenta Ditadura Militar argentina, aliada a uma maior atenção dos clubes brasileiros com a competição após o bi-campeonato do São Paulo em 1992 e 1993, constituem-se como fatores importantes para a análise.  

 

Os problemas econômicos enfrentados pela Argentina há algumas décadas, principalmente em relação à perda de valor de sua moeda, enfraquecem o poder de investimentos dos clubes, que acabam ficando extremamente dependentes de suas jovens promessas, inseridas em um contexto diferente do uruguaio. Por possuir uma população substancialmente maior em comparação a do Uruguai, a probabilidade de revelar jogadores é maior na Argentina, fator turbinado pela tradição e pela importância que o esporte tem no país. A tradição argentina também contribuiu para atrair jogadores de outros países da América do Sul, que encontram principalmente no Boca Juniors e no River Plate grandes vitrines para, posteriormente, chegarem à Europa – jogadores chilenos, colombianos e uruguaios percorrem este caminho com frequência, numa situação similar ao que acontece no Brasil. São essas condições que permitem com que, mesmo não atingindo o sucesso de outrora, os clubes argentinos ainda tenham grande importância na Copa Libertadores, diferentemente dos clubes uruguaios.

 

A década de 2000 comporta o último grande momento dos clubes argentinos na Libertadores, período no qual venceram cinco vezes a competição, sendo quatro títulos do Boca Juniors e um do Estudiantes. A superioridade em relação ao Brasil foi demonstrada nesse período, uma vez que em quatro das cinco oportunidades, as vítimas dos argentinos nas finais foram justamente os clubes brasileiros. O Boca Juniors superou o Palmeiras em 2000, o Santos em 2003 e o Grêmio em 2007. No ano de 2009 o Estudiantes derrotou o Cruzeiro. No entanto, a partir de 2010 essa situação se alteraria, com o Brasil vencendo dez vezes a competição desde então, período no qual os argentinos conquistaram três taças – River Plate em 2015 e 2018, e o San Lorenzo em 2014.

 

Entre 1997 e 2007, Mauricio Macri foi presidente do Boca Juniors, período no qual o clube conquistou quatro Libertadores. O sucesso na gestão do clube o tornou conhecido em todo o país, entretanto, Macri não teve o mesmo sucesso quando esteve, na qualidade de Presidente da República, na Casa Rosada e, o aprofundamento da crise econômica, resultante de seu desastroso mandato (2015-2019), trouxe reflexos também para o futebol. 

 

O relativo sucesso do futebol argentino desde 2015 recai sobretudo no River Plate, que ainda consegue driblar de alguma forma os percalços econômicos através de uma sólida categoria de base, que ano após ano municia o time principal. Os jovens talentos do River, quando integrados ao elenco profissional do clube, tornam-se tanto protagonistas nos títulos, quanto fonte de receita, casos de Julián Álvarez (Manchester City-ING) e Enzo Fernández (Chelsea-ING), que revelados pelo time de Buenos Aires, hoje atuam na Europa e tiveram papel importante para o tricampeonato mundial da Argentina na Copa de 2022. A atuação de olheiros espalhados pela América do Sul, somada à tradição do futebol argentino anteriormente mencionada, permitem com que os milionários reponham as saídas de suas jovens revelações a um baixo custo, possibilitando a manutenção de um elenco forte. 

 

O fator econômico pesa tanto na possibilidade de contratar novos jogadores, como em manter seus principais talentos, o que foi um fator preponderante para o título do Fluminense. O elenco do clube carioca consiste em uma interessante mescla de jogadores experientes com jovens promessas, o que permitiu com que a montagem do time tenha sido extremamente econômica. Jogadores como Marcelo, Fábio, PH Ganso e Germán Cano chegaram de graça ao clube das Laranjeiras, trazendo experiência para o plantel. Por outro lado, nomes como Nino, Martinelli, John Kennedy e, principalmente, o meio-campista André, representam a forte categoria de base do clube, e passaram a ser cobiçados por clubes da Europa, entretanto, o Fluminense se comprometeu a manter seu time até o fim da temporada, privilégio para um time que não se encontra em uma posição financeira desesperadora, e que tem no Brasil um ambiente econômico menos turbulento. 

 

A permanente dificuldade dos países com menos tradição

 

É possível dividir os países da América do Sul em três categorias quando se fala de futebol: existem aqueles de maior tradição, os de tradição relativa e, por fim, os com pouca tradição. Brasil, Argentina e Uruguai são as únicas seleções do continente que venceram Copas do Mundo, além disso, conquistaram 56 das 64 edições da Copa Libertadores. No segundo escalão estão Colômbia, Chile, Equador e Paraguai, que além de participarem de Copas do Mundo com frequência relativa, conquistaram as 8 edições restantes da Libertadores. Com menos tradição no futebol sul-americano encontram-se Bolívia, Peru e Venezuela, que ainda não tiveram clubes vencedores de Libertadores e participam com pouca frequência de Copas do Mundo – o Peru talvez seja o país mais promissor, uma vez que disputou cinco Copas do Mundo, possui dois vice campeonatos de Libertadores (com o Universitario de Lima em 1972 e o Sporting Cristal em 1997) e um título da Copa Sul-Americana, o segundo principal torneio de clubes da América do Sul e vencido pelo Cienciano de Cusco em 2003. 

 

Dos países de segundo e terceiro escalão, o último título de Libertadores foi conquistado pelo Atlético Nacional de Medellín (COL), no ano de 2016. Em nível de Libertadores, pode-se dizer que o sucesso destes clubes é esporádico, sem uma ocorrência tão frequente. Os últimos títulos de Chile, Paraguai e Equador foram em 1991, 2003 e 2008 respectivamente. Por outro lado, o atual contexto demonstra uma grande importância dos times equatorianos na Copa Sul-Americana, pois  ganharam três das últimas quatro edições, sendo dois títulos do Independiente Del Valle, além de uma conquista da LDU de Quito, que derrotou o Fortaleza na edição de 2023. 

 

Independente de conquistas ou não, todos os países são importantes para a riqueza do futebol Sul-Americano. Na temporada de 2023, por exemplo, o Independiente Del Valle (EQU) superou o Flamengo na disputa da Recopa Sul-Americana (que confronta o campeão da Libertadores com o campeão da Copa sul-americana), e o Bolívar (BOL) venceu o Palmeiras por 3×1 na fase de grupos da Copa da Libertadores, numa demonstração de que não existe jogo ganho, nem mesmo quando se enfrenta equipes menos tradicionais. 

 

A hegemonia brasileira é momentânea, pode ou não perdurar. Entretanto, no atual estado das coisas, é difícil prever que o Brasil perca essa posição, principalmente por possuir um cenário econômico mais favorável em comparação aos seus vizinhos. No mais, vale ressaltar que mais importante do que o domínio no continente, é apreciar o charme e as peculiaridades do futebol sul-americano, que se constitui como um um cenário único e incrível no mundo do futebol. 

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