16 de novembro de 2023
Por Dante Apolinario, Gabriel Horacio de Jesus Soprijo, Leonardo Poletto Di Giovanni, Lívia Romano F. da Cruz, Lucas Portari, Luciana Araujo, Maria Clara Reis C. Pires, Mariana Barboza Cerino, Natália Martinho e Nícolas de Paula (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)
O acordo Mercosul-União Europeia ainda não saiu do papel. Após 20 anos de negociações, seu destino é uma incógnita.
O que é esse acordo? É uma iniciativa que tem como objetivo um conjunto de medidas para fortalecer as relações entre os dois blocos econômicos. A União Europeia foi fundada em 1992 com a assinatura do Tratado de Maastricht e é composta atualmente por 27 países membros do continente europeu. O Mercosul, fundado em 1991, é composto hoje por Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. Ambos os blocos estão desde 1999 buscando firmar um acordo de livre comércio abrangente. Em 2019, foi fechado um acordo entre ambos os blocos. Veja a cronologia dessa novela:
1995-2000 |
Início das negociações formais entre o Mercosul e a UE |
2000-2010 |
Várias rodadas de negociações são realizadas, mas sem um acordo concreto. |
2010-2016 |
As tratativas sofrem algumas interrupções, mas são retomadas em 2016, com um novo impulso. |
2019 |
Após duas décadas, chegou-se uma versão final do acordo em 28 de junho. |
2020-atualidade |
Processo de revisão legal do acordo, aprovação de seus termos pelos poderes legislativos de cada país dos dois blocos e no final da ratificação pelos presidentes. |
Durante o governo Bolsonaro, o acordo foi negociada, mas o processo não foi concluído, faltando a aprovação e ratificação pelas instâncias políticas ratificado antes de poder ser implementado. Parte disso é decorrente dos incêndios na Amazônia em 2019, o aumento do desmatamento e declarações como do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, de querer aproveitar a pandemia para “passar a boiada”. Logo após essas declarações e ocorrências, uma carta assinada por partidos europeus criticaram a postura do governo brasileiro em relação às tratativas das questões ambientais. Além disso Holanda e Áustria aprovaram moções contrárias ao acordo Mercosul x UE após essas situações (SENRA, 2020).
Em uma entrevista concedida a BBC News Brasil, Jordi Cañas, relator do acordo entre os Blocos inclusive chegou a afirmar em 2020, que a aprovação enfrentaria uma série de dificuldades, principalmente por conta das questões mencionadas. Ademais, declarou que “[..] o acordo é entre blocos. É uma relação entre países, não entre governos. O Brasil não é Bolsonaro. Bolsonaro é presidente do Brasil, que assim decidiu em eleições democráticas. Mas o Brasil não é o Bolsonaro. Bolsonaro é presidente, Brasil é um país.” (CAÑAS, [Entrevista concedida à SENRA], 2020, online). Em uma clara, crítica a postura e a gestão do então presidente Bolsonaro nas questões ambientais, que desagradaram os países da UE.
Após as eleições de 2022, que garantiu a volta de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, o acordo Mercosul x UE voltou a esperança por parte de quem é a favor do acordo de jeito que foi negociado. Todavia, surgiram uma série de discussões e exigências por ambas as partes do acordo. Em março de 2023, a UE enviou uma “side letter”, um adendo ao texto original, que colocava exigências de condições ambientais para avançar com a tramitação do Tratado. Essas demandas incluem sanções e restrições no comércio entre os blocos, caso o desmatamento seja desrespeitado. O Brasil rechaçou essa medida, afirmando que uma parceria estratégica não pode conter em cláusulas uma ameaça, que seria inclusive um desrespeito à soberania nacional. De outro lado, na França, alguns parlamentares aprovaram moções pedindo que o governo não ratificasse o acordo, devido às questões ambientais (MARTINS, 2023). Por mais que a justificativa seja ambientalista, em vários casos o fim é protecionista: os setores agrícolas franceses podem perder mercado dentro da própria França para os produtos brasileiros.
Existem vários pontos considerados delicados relacionados a esse tratado. Um dos principais é o de compras governamentais, segundo o texto de 2019 negociado por Bolsonaro, todos os países deveriam abrir o mercado para empresas de qualquer um dos blocos, isso significa que os governos não poderão dar preferência às empresas locais para estimular a produção interna, por exemplo. O presidente Lula se posicionou contrário a essa cláusula, defende que possa haver em casos concretos, como do complexo industrial de saúde, uma reserva para as compras do governo e empresas brasileiras, inclusive para garantir a geração de emprego e renda no país, além de estimular uma base industrial-tecnológica local (MARTINS, 2023a; 2023b).
Vale ressaltar que esse acordo vai além de uma questão econômica, como ressaltado pela professora Mauren Santos em entrevista concedida ao Podcast “Mulheres no Mapa” (2023). Segundo ela, esse documento pode ser entendido em linhas gerais como um tratado assimétrico, implementando uma troca muito direta de venda de matéria prima por parte do Mercosul, por produtos de altos valores agregados oriundos da UE. Além disso, a pesquisadora destaca que ocorreria também um impacto na saúde pública brasileira, questões trabalhistas, o preço dos alimentos de milhões de brasileiros, agricultura familiar, indústria, entre outros campos.
O presente texto tem como objetivo ampliar a discussão sobre esse tratado. Sendo assim estará dividido em quatro partes para além desta introdução: A primeira, apresenta os dados sobre a UE e o Mercosul e uma discussão sobre os acordos anteriores; A segunda, a mostra qual é a postura de cada um dos blocos e como estão se posicionando perante as novas exigências; A terceira parte, apresenta as perspectivas futuras das negociações; Por fim, as considerações finais.
Dados sobre o Mercosul e a União Europeia
Traçar o histórico da integração regional sulamericana que resultou na consolidação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) infere analisar as condições geopolíticas que levaram um grupo de países a organizar formas mais autônomas de desenvolvimento econômico. Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai estabelecem a primeira tentativa concreta de um mercado livre de taxas aduaneiras da região, com a assinatura do Tratado de Montevidéu, em 18 de fevereiro de 1960. Mas a criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) ainda não constituía o status de união aduaneira propriamente dito. Isso porque a adoção de uma tarifa externa comum e a livre circulação das mercadorias, oriundas dos países associados, presume o enfoque dos países membros nos interesses regionais, e não em suas respectivas particularidades domésticas.
Nesse estágio inicial, fortemente influenciado pelos ideários cepalinos, o interesse por um mercado comum latino-americano fora propulsionado pelo processo de substituição de importações. Nele, o desenvolvimento dos mercados nacionais ampliaria o intercâmbio comercial entre os países da região e desenvolveria economias de escala, ao passo que atenuaria a vulnerabilidade externa sul-americana em relação aos países europeus e os EUA. Nos anos 1970, a Alalc se expandiu, com a adesão de Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela. No entanto, a associação nunca alcançou seu objetivo de constituir uma área de livre comércio, na medida em que a própria dinâmica de industrialização tardia revelou-se incisiva na perpetuação das assimetrias locais.
Em 1980, a Alalc foi reestruturada na assinatura do II Tratado de Montevidéu. Agora chamada de Associação Latinoamericana de Integração (Aladi), buscou-se consolidar uma zona de articulação econômica visando obter resultados mais favoráveis aos países membros nas negociações de comércio internacional. Em 1985, no âmbito do Aladi, Brasil e Argentina avançaram na constituição de uma área de livre comércio através da assinatura da Declaração de Iguaçu. Seis anos depois, em 26 de março de 1991, com a adesão de Paraguai e Uruguai, no Tratado de Assunção, foi lançado o Mercado Comum do Sul, ou Mercosul. Junto com o Protocolo de Ouro Preto, ampliou as atribuições iniciais e deu personalidade jurídica de direito internacional à associação. A partir desse ponto em questão, é estabelecida entre os participantes uma união aduaneira, na qual as taxas de importação de produtos de fora do bloco seriam as mesmas em todos os Estados membros, embora com muitas exceções refletindo interesses de setores específicos com poder de influenciar as negociações.
Um outro impacto na dinâmica macroeconômica da esfera regional pôde ser visto pelo projeto de criação da Alca. Proposta em 1994, o governo estadunidense pressionou os países latinoamericanos à criação de uma área de livre comércio para todo o continente, com exceção de Cuba. A Alca implicaria em atrelar o desenvolvimento econômico da América Latina e o Caribe aos interesses do Washington, mantendo a região sob sua influência. A eliminação de barreiras alfandegárias, em conjunção com as assimetrias no setor da indústria resultaria em vantagens desproporcionais aos norte-americanos, em detrimento dos países latino-americanas, em particular dos integrantes do Mercosul. Apesar de ter sido recusado, a articulação do projeto Alca acabou servindo como exemplo característico no avanço do discurso do neoliberalismo e na constante tensão político-econômica de disputa pela influência regional das Américas.
Já a integração europeia começou em 1949, quando foi criado o Conselho da Europa por dez países da Europa Ocidental, com o intuito de promover a democracia e proteger os direitos humanos e o Estado de direito. No ano de 1952, Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo colocaram as suas indústrias pesadas sob um sistema de gestão comum, por meio da assinatura de um tratado. Em julho de 1968, quando seis países optaram por suprimir os direitos aduaneiros aplicáveis aos bens que importam entre si, marcando o início da União Aduaneira, embora somente em 1986, com o Ato Único Europeu ocorreu o início do processo de criação do mercado único de fato.
Após a assinatura do Tratado da União Europeia (Acordo de Maastricht), em 1992, são estabelecidas regras claras para a criação de uma futura moeda única, uma política externa e de segurança e reforço da cooperação regional. Assim, como determinado pelo tratado, em 1 de novembro de 1993, é oficialmente criada a União Europeia (UE) e, em 1 de janeiro de 1999, é introduzido o euro.
A União Europeia representa hoje 14% do comércio mundial de mercadorias, juntamente com a China e os Estados Unidos é um dos três maiores intervenientes mundiais no comércio internacional e conta com uma população total de 448,4 milhões de habitantes. Até agosto de 2023, a UE apresentou um volume de $1.711.791,1 e de $1.704.986,9 de euros, respectivamente em importações e exportações de bens.
Dados de 2021, divulgados pelo Banco Mundial, revelam que o perfil das exportações da UE é concentrado em bens de consumo, com um volume de 936,35 milhões de dólares, o que corresponde a 36,34% do total de exportações. Em segundo lugar, com uma participação de 28,70%, estão os bens de capital, em um volume de 870,299 milhões de dólares. As importações seguem um padrão similar, sendo compostas majoritariamente por bens de consumo (30,63%), em um volume de 768,768 milhões de dólares, e bens de capital (28,70%) em um volume de 720,505 milhões. Os principais parceiros comerciais do bloco são os Estados Unidos, a China, a Rússia, o Reino Unido e a Suíça. Os principais produtos exportados pelo bloco são medicamentos, automóveis, petróleo e derivados. Os importados são, em maioria, petróleo e derivados, gás natural, aparatos de transmissão e de circuitos digitais.
Um aspecto relevante é a alta pela demanda de produtos de alta tecnologia no bloco. Só entre os anos de 2021 e 2022, houve uma alta de 27% no volume de importações de carros híbridos e elétricos, basicamente da China. Por outro lado, o aumento do volume de exportações desses mesmos itens foi ainda mais expressivo, com uma alta de 41% e com um valor total de €59.1 bilhões.
Com um PIB atual em torno de U$ 16, a União Europeia representa o bloco econômico de maior integração e cooperação regional da atualidade, além de ser uma potência tecnológica, que pode ser muito relevante como parceiro comercial.
Quem é a favor do acordo?
No caso do Mercosul, apesar das complexidades do acordo, os principais setores liberais apresentaram interesse em sua efetivação, visto as possibilidades de lucro para alguns setores econômicos, em particular o agronegócio. No contexto latino, observaram-se tentativas de aceleração do tratado e liberalização da economia, principalmente após 2016 nos governos Temer e Bolsonaro, no Brasil, e de Mauricio Macri, na Argentina, porém sem sucesso na efetivação do termo. Os grupos favoráveis à negociação, interpretaram oportunidades a partir de pontos como a relevância do PIB dos blocos, que somariam cerca de 25% do índice mundial, além de um suposto amplo acesso ao mercado europeu, diminuição de impostos de importação de bens industriais e condicionamento qualitativo dos setores brasileiros para competição internacional.
Uma vez que a UE é o maior importador agrícola mundial e o Brasil seu segundo maior fornecedor, representantes do Ministério da Economia colocam em pauta a possibilidade de ganhos expressivos para o agronegócio, prevendo em 15 anos, “algo da ordem de R$ 1 trilhão em termos de importações e exportações a mais para a economia brasileira”como afirmado pelo secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, da época, Lucas Ferraz. Ademais, traz-se o acordo como uma oportunidade estratégica, onde apesar dos prejuízos certos à indústria, as economias teria um suposto potenciais de complementação.
Os principais pontos destacados, principalmente para setores favoráveis no Brasil e na Argentina, são os da ampliação e adequação das indústrias ao mercado europeu, a partir do barateamento de insumos produtivos, dinamizando condições de acesso a bens, serviços e investimentos, pelo acordo prever cerca de 82% de volume de comércio liberalizados para o Mercosul. resultado, aumentaria a possibilidade de acesso a tecnologia, insumos e bens intermediários necessários para produzir bens com valor agregado, gerando variedade as exportações das economias locais, consolidando sua participação nas cadeias de valor.
No caso do grupo europeu ressalta a importância do acordo para a consolidação da “autonomia estratégica do bloco”, uma vez que ele fortaleceria a posição europeia na América do Sul, à frente de concorrentes como EUA e, sobretudo, a China, que não possuem acordo com os países do Mercosul. Para os parceiros tradicionais da região, a maior presença comercial da UE pode ter consequências nos fluxos de exportação existentes.
Entre os principais países a favor, está a Alemanha, que é uma das principais economias europeias e, diante do avanço das empresas chinesas na região, começou a demonstrar forte apoio ao acordo. Isso se deve, em parte, ao fato de que a Alemanha é um grande investidor e exportador de automóveis, produtos químicos e máquinas, entre outros, e o acordo pode abrir novos mercados para esses produtos.
No caso dos países ibéricos, Espanha e Portugal são tradicionalmente promotores do acordo, em grande parte devido aos fortes laços históricos, culturais e linguísticos que mantém com a América Latina, em particular com países do Mercosul.
Em resumo, embora alguns países europeus sejam favoráveis ao acordo Mercosul-União Europeia devido a interesses econômicos e históricos, a posição em relação a esse acordo é complexa e enfrenta desafios significativos devido a preocupações ambientais e sociais de um lado, e oposição de alguns setores específicos de outro. O andamento do acordo dependerá, em última instância, da capacidade de conciliar essas preocupações com os benefícios econômicos e diplomáticos que ele pode oferecer.
Quem é contra o acordo?
No caso do Brasil, há preocupações com relação ao fato de se tratar de um acordo desigual, refletindo a forte assimetria entre as regiões ao ponto de classificar o acordo como neocolonial. Entre elas, destaca-se o aprofundamento de desigualdades sociais e o aprofundamento da desindustrialização que já ocorre, tanto no Brasil como na Argentina. Isso se dá pois a União Europeia possui a capacidade de centralizar a produção de bens manufaturados de maior valor agregado. Para o atual chanceler argentino, Santiago Cafiero, o acordo representa um “esforço desigual entre blocos assimétricos e não responde ao cenário atual”. O Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) sustenta que o acordo serviu a elites econômicas europeias, que exerceram um lobby para beneficiar setores como o industrial, químico e automotivo.
A diversidade de países que participam da União Europeia, no entanto, resulta em uma complexidade de prioridades que tornou mais difícil a unanimidade do bloco quanto à ratificação do acordo. Essas contestações são colocadas por setores políticos e econômicos de maior importância econômica aos seus respectivos países e, sendo assim, são capazes de fazer pesar suas preferências frente às decisões a serem expressas dentro do parlamento europeu. Desse modo, representantes de determinados setores agrícolas, em particular da França, e o reforço, nos últimos anos, das pautas ambientalistas compreendem dois dos principais forças que têm influenciado politicamente contra o acordo. Somado a isso, a insurgência em parte da Europa de uma onda política nova conservadora de rejeição às proposições características da globalização, em termos culturais e econômicos, parece também representar mais uma força no processo de protelamento do acordo entre os dois blocos.
As atividades de exportação de produtos agropecuários proveniente do Mercosul, particularmente representadas pela produção brasileira e argentina, significam relativa ameaça a alguns setores na Europa que gozam de força política em alguns países. Particularmente quanto ao Brasil: considerando ainda como um valor crescente em relação à 2021, no ano de 2022 os países da União Europeia compreenderam o segundo destino de maior volume às exportações do agronegócio brasileiro, mesmo sob condições restritivas de comércio, representando 16% do valor total exportado. Assim, em alguns países como França, Holanda, Bélgica, Áustria e Irlanda, determinados setores agropecuários temem pelo impacto da competitividade em suas produções locais contra economias com a presença de um agronegócio robusto, como a do Brasil. Além disso, a preocupação ambiental decorre do argumento de que o acordo resultará em um aumento da produção agrícola nos países do Mercosul com, supostamente, pouco ou nenhuma preocupação sobre o impacto ambiental. Vários grupos ambientais e sociais na Europa tem uma preocupação legitima e solidaria em torno dessa pauta, mas o argumento, no entanto, é visto como meio de acobertar o que seria o principal pressuposto desses setores para retardar a ratificação do acordo por parte de setores específicos da UE.
Assim, em 2019, com a negociação do acordo durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, as objeções europeias contra as condições do acordo se expressaram não somente através do lobby de setores do agronegócio europeu. As contestações começaram a se mostrar mais imperativas, e também mais bem alicerçadas aos argumentos dos movimentos ambientalistas e sindicais. Isso, devido às movimentações de setores e partidos políticos com as eleições do Parlamento Europeu, em maio de 2019, e também como resultado do aumento da participação de partidos verdes dentro de governos da UE. Junto da questão da geração de empregos, a honra às normas ambientais da UE como parte de políticas comerciais, foram tópicos reforçados como importantes pela opinião de cidadãos da União Europeia.
Dentro da França, com opinião mais frequentemente reiterada, a questão ambiental tem sido reforçada como condicionante para o acordo. A emergência ao governo do Brasil pelo atual presidente Lula, resultou em uma maior maleabilidade do posicionamento do presidente francês Emmanuel Macron. No entanto, de meados desse ano para o atual momento, a preocupação expressa por movimentos ambientalistas – legítimos – em relação ao impacto ambiental brasileiro, se fortaleceu novamente. E sob o suporte desse argumento ainda, a parcela significativa conservadora do parlamento francês passa também a reiterar sua preocupação quanto ao impacto do acordo sobre a economia agropecuária nacional. Configurando, desse modo, o amparo do protecionismo conservador francês como oportunizado pelo aumento da força e mobilização de defensores e atores do movimento ambientalista, tanto de dentro da UE, quanto na América Latina.
No caso da Holanda, embora o governo holandês ainda não tenha feito um posicionamento oficial, o apelo do setor agropecuário, relacionado ao movimento sindical e argumentos do movimento ambientalista, indicam para a rejeição do documento. No primeiro trimestre deste ano o Parlamento holandês aprovou uma moção contra acordo Mercosul-UE, justificada pelo argumento contra a inclusão de produtos agrícolas como parte do acordo comercial. Segundo o parlamento, a concorrência seria desleal aos fazendeiros locais, e poderia implicar simultaneamente para o aumento de transgressões ambientais por parte do Mercosul.
Similarmente, na Irlanda são principalmente produtores de carne bovina que buscam reforçar o posicionamento de rejeição através do parlamento. Particularmente considerando que 90% da produção irlandesa de carne é voltada para o mercado da União Europeia, com o acordo é esperado que o mercado europeu seja exposto a opções mais baratas que a produção irlandesa. Com isso, não somente reduzindo sua participação nesse setor e prejudicando o setor de trabalhadores pecuaristas, mas também trazendo a questão ambiental. Pecuaristas e ativistas ambientais buscam defender que o acordo levaria ao apoio e incentivo de produções pecuárias menos regulamentadas, e à violação de restrições ambientais.
Já dentro da Áustria, apesar de a questão imposta pela competitividade de produtos agropecuários também pesar para a rejeição da ratificação do acordo, a opinião não é unânime. Segundo jornal pan-europeu, se bem que Especialistas da Câmara do Trabalho, União dos Agricultores Austríacos e de várias associações ambientais apelam à rejeição, isso no entanto, difere do posicionamento da Federação das Indústrias Austríacas e a Câmara de Comércio da Áustria, que apoiam o acordo em sintonia com os interesses industriais e tecnológicas nos demais países europeus, em particular a Alemanha.
Perspectivas futuras
No Mercosul, depois de tanto tempo, o acordo pode sofrer um entrave significativo, senão a sua completa interrupção. Santiago Peña, atual presidente do Paraguai – país que assumirá a presidência do Mercosul em dezembro de 2023 – deu uma declaração ao Financial Times dizendo que “ou fechamos até 6 de dezembro ou não fechamos”, deixando clara sua insatisfação com a demora. A responsabilidade do encerramento, então, esaria nas mãos do presidente Lula, do Brasil.
O ultimato de Peña foi uma resposta ao atraso na tomada de decisão por parte da UE, visto que esse acordo vem sendo negociado há mais de 20 anos. A hesitação do bloco europeu tem sido interpretada como uma manobra para adquirir mais ganhos e mais controle sobre a relação multilateral, como por exemplo a proposta de sanções relacionadas ao desmatamento na Amazônia e a participação de empresas internacionais em compras de governos americanos.
Ao mesmo tempo, a UE não demonstrou nenhuma sensibilidade com as reivindicações do governo Lula de renegociar os acordos mais liberalizantes que dificultam políticas de retomar um esforço industrializante, como as regras sobre compras governamentais entre outras.
Os diferentes perfis das economias envolvidas na negociação, a saber, uma aliança de países industrializados do Norte Global (UE) e uma aliança de países exportadores do Sul Global (Mercosul) complexificam o arremate. Uma nota de conjuntura foi publicada pelo IPEA no 2° trimestre de 2023 acentuando que “é ponto pacífico que o acordo de livre-comércio entre os blocos irá acentuar este padrão de especialização [bens manufaturados europeus e agricultura e mineração latino-americanos] das economias”. Surge então a dúvida: os ganhos com o livre-comércio compensarão o risco da desindustrialização dos membros do Mercosul e sua perda de competitividade internacional? Essa preocupação é a ordem do dia nos países latinoamericanos envolvidos. A teoria das vantagens comparativas, ao ser posta em prática, já demonstrou não alcançar o seu postulado de que cada Estado deveria se especializar em uma produção característica de sua realidade histórica multifatorial, principalmente com o surgimento da teoria da dependência e o movimento cepalino da segunda metade do séc. XX; um acordo como este, de livre comercialização nos moldes neoliberais, deixa margem a uma desconfiança de possíveis estratégias neocoloniais.
Pela parte dos europeus houve uma mudança de prioridades muito grande ao longo dos últimos anos. Se durante a farra ultraliberal dos governos Temer e Bolsonaro havia um interesse muito grande do principal país da UE – a Alemanha – em avançar rapidamente na concretização do acordo, após o início da pandemia este cenário se alterou rapidamente. Em primeiro lugar, com a pandemia, todos os países europeus colocaram em primeiro plano o combate à pandemia de COVID-19, deixando em segundo plano questões comerciais, de investimentos e acordos regionais.
Ainda sob a sombra da pandemia e já com o cenário das eleições presidenciais brasileiras de 2022, em fevereiro deste mesmo ano se deu início à Guerra da Ucrânia. Logo de início, a guerra virou as atenções dos principais países europeus para o impacto da guerra sobre o preço e a disponibilidade de energia, fundamental para a competitividade da indústria alemã. Com o desenrolar da guerra e a decisão europeia – sob pressão dos EUA – de sancionar o gás russo, a UE se viu numa crise bastante significativa de energia, combustíveis e explosão dos preços destes. A Alemanha, principal potência industrial, que antes via o acordo comercial como uma possibilidade de se manter competitiva na AL em meio à disputa EUA-China, passou a ter outras preocupações e prioridades.
Mesmo representando uma pressão nas negociações – que poderia trazer certo receio -, o Itamaraty afirmou que o posicionamento de Peña se alinha ao brasileiro. A conjuntura internacional na qual o acordo foi desenvolvido mudou muito nos últimos anos, principalmente depois do impacto da Guerra na Ucrânia e da pandemia de COVID-19 na Europa, em particular na Alemanha, principal impulsionadora do acordo nos últimos anos. Agora, fica claro a presença de um jogo de empurra-empurra, com os blocos se esquivando da responsabilidade de encerramento.
Conclusão
O atual acordo entre o Mercosul e a União Europeia é um tema que perdeu relevância e urgência diante do contexto atual. A expectativa europeia de uma ‘’terceira via’’ na guerra comercial entre China e Estados Unidos parece cada vez mais fraca. Ambos os lados – Mercosul e UE – o acordo perdeu seu momentum por motivos diversos.
A Europa, mais uma vez, vê os seus interesses mais importantes do que o interesse daqueles com quem negocia. Há uma política de defender os interesses da indústria e tecnologia europeia no contexto do avanço da China e das políticas de estímulo desses setores nos EUA. Mas não há nenhuma compreensão com os interesses dos governos do Brasil e Argentina de estimular uma nova industrialização ecológica e digital também no Mercosul. O pleito de renegociar pelo menos a cláusula de compras governamentais foi simplesmente ignorado. Ao mesmo tempo, alguns setores tradicionais do agro, embora minoritários, mas com força política, não estão nem um pouco dispostos a competir com produtos brasileiros. Além disso, a atenção da Europa está deslocada para os conflitos no seu entorno, a Guerra na Ucrânia e a questão Israel-Palestina. Eles não estão preocupados com o acordo com o Mercosul.
Já no Mercosul, ao invés de se submeter a absurdos como a disputa em pé de igualdade entre empresas de ambos os blocos por licitações públicas, está mais interessado em preservar a sua autonomia e soberania, sem se submeter às exigências e sanções impostas pela UE. O atual acordo é de cunho neoliberal o que entra em choque, por exemplo, com as intenções do governo Lula de tentar promover uma nova industrialização e desenvolvimento de setores de maior teor tecnológico no país.
O acordo, que já enfrentava resistências e divergências por questões ambientais, sociais e econômicas, agora corre o risco de ser abandonado ou adiado indefinidamente. A falta de vontade política e de consenso entre os países envolvidos torna improvável que o acordo seja concluído e ratificado em um futuro próximo. Esperamos que na retomada das tratativas sobre este tema no futuro, existam maiores possibilidades de promover o desenvolvimento sulamericano ao invés de apenas fortalecer a velha dinâmica de produtos primários – bens industriais sob uma nova roupagem.