Intervir ou não intervir? Desdobramentos e questões de (mais uma) missão de paz patrocinada pelos EUA no Haiti

30 de novembro de 2023

 

Por Ana Carolina Carvalho de Oliveira, Camila Micheletti Flores, Fernanda Messias Moretti, Gabriela Fernandes Nabuco de Araujo, Patricia Lima Rego e Flávio Rocha (Imagem: Pixabay)

 

Em outubro de 2022, o primeiro-ministro haitiano Ariel Henry foi autorizado a pedir uma intervenção humanitária e militar  após o aumento da violência armada por gangues e um surto de cólera no país. O Secretário-Geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, pediu ao Conselho de Segurança (CSNU) que considerassem o envio de forças internacionais ao Haiti no mesmo ano.

 

Em 21 de setembro de 2023, durante a 78º Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU), Ariel Henry reiterou, novamente, “a determinação do seu governo em trabalhar, em parceria com as partes interessadas locais e a comunidade internacional, para criar condições que conduzam a um futuro melhor para o povo haitiano”. Um mês após o discurso, o CSNU aprovou uma nova intervenção armada no Haiti, não sendo considerada uma Missão de Manutenção de Paz, mas uma Missão Multinacional de Apoio à Segurança (MSS) com a presença dos Estados Unidos, Quênia e tropas da Jamaica, Bahamas e a pequena Antígua e Barbuda, financiada de forma voluntária pelos países-membros.

 

Com um histórico de participação, sobretudo econômica, no vizinho haitiano, os Estados Unidos tomaram a frente em relação ao pedido feito pela Organização das Nações Unidas, mencionando que iriam propor “uma resolução para  missão liderada por um país parceiro com a experiência profunda e necessária necessária para que tal esforço seja eficaz” na qual financiariam uma parte significativa dos custos, junto com outros países-membros como Espanha, Belize, Senegal ,Peru e Itália, entre outros, sem especificação exata do tipo de ajuda que poderiam fornecer, seja ela na forma de tropas militares ou financiamento.. Especula-se, no entanto, que, do ponto de vista financeiro, os custos serão cobertos pela ONU. 

 

Dessa maneira, o governo de Biden convidou o Canadá para liderar a missão, sendo surpreendido pela resposta de que as intervenções militares do passado nunca foram efetivas para criar estabilidade no Haiti. Em seguida, o convite foi feito ao Brasil, que também recusou a proposta. O posicionamento do governo Lula será discutido mais adiante. Por fim, os Estados Unidos convidaram o governo do Quênia para protagonizar militarmente a intervenção, uma vez que o país já participou de Missões de Paz da ONU em vinte e nove países desde a década 90. 

 

Os Estados Unidos conduziram uma operação multinacional no Haiti em 2004 para aliviar as crises políticas e de segurança do país, durante o governo do presidente Jean-Bertrand Aristide. Foram enviadas forças francesas, chilenas e canadenses, bem como o Exército e os Fuzileiros Navais dos EUA. Este grupo acabou sendo substituído pela Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), liderada pelo exército brasileiro. No entanto, a estabilidade política permaneceu ilusória.

 

Luiz Inácio Lula da Silva era presidente quando o Brasil ficou no comando militar  da Minustah. Com pouco menos de 2.000 soldados brasileiros, o presidente Lula descreveu a expedição como “a mais nobre missão humanitária já realizada pelas Forças Armadas Brasileiras”e que fazia parte da  “(…)missão do Brasil no Haiti: ajudar o país a reencontrar o caminho do desenvolvimento”. Entretanto, a intervenção se tornou motivo de debate e discordância no Brasil e no mundo devido à participação de soldados brasileiros no trágico episódio de 2005 na favela Cité Soleil (que será descrito mais à frente) assim como ao subsequente suicídio do comandante brasileiro naquele ano, o General Urano Bacelar,  em Porto Príncipe. 

 

Como resultado, o Haiti e o governo brasileiro perceberam que as forças policiais haitianas eram incapazes de prover segurança e uma efetiva melhora de vida à população local. Ao longo dos anos diversas alegações foram feitas por residentes, incluindo crimes de abuso de autoridade e que incluíam violação dos direitos humanos. O legado da intervenção de 2004 no Haiti não é positivo para o Brasil e dúvidas sobre a eficácia e os efeitos a longo prazo desta operação permanecem até hoje, reverberando na decisão brasileira de não aceitar participar da intervenção atual.

 

Apesar disso, outra missão internacional armada foi aprovada pelo Conselho de Segurança, com apoio dos Estados Unidos, uma vez que Linda Thomas-Greenfield, representante dos EUA nas Nações Unidas, disse que iria propor uma missão liderada por “um país parceiro com a experiência profunda e necessária para que tal esforço seja eficaz.”. Vale lembrar, no entanto, que a relação dos Estados Unidos com o Haiti possui um longo histórico intervencionista, que remonta à ocupação estadunidense em 1915, que visava, entre outras coisas, defender os interesses e o acesso dos EUA ao Canal do Panamá; e ao apoio à ditadura de François Duvalier, para impedir que a influência da Revolução Cubana (1959) se espalhasse pelo Caribe. Além disso, há a promoção de uma  política forte e arbitrária de deportação aos refugiados haitianos que conseguem chegar em solo americano, favorecida pelo primeiro-ministro haitiano Ariel Henry.

 

Logo, uma intervenção internacional, proposta e apoiada pelos Estados Unidos, levanta questões sobre os interesses do país na região, visto que, enquanto outros países se mostram receosos em apoiar uma missão nos mesmos moldes da Minustah, os EUA aprofundam sua postura cada vez mais intervencionista em relação ao país caribenho. Experiências anteriores, como a Minustah, demonstraram que esse tipo de ação forja uma estabilidade não durável, e que pode inclusive acentuar as mazelas sociais que o país enfrenta. 

 

Depois de treze anos no Haiti, as forças brasileiras se retiram, sendo substituídas  por forças policiais da ONU: o Brasil passa a não mais fazer parte dessa operação. Embora sua participação tenha sido efetiva seguindo o comando da missão, contabilizando a  passagem de 35 mil soldados brasileiros pelo Haiti, a decisão da retirada esteve atrelada a estratégia de revisão das missões de paz na ONU, bem como com mudanças nas condições no Haiti que cercam fatores relacionados à segurança, ao desenvolvimento institucional e às considerações econômicas.

 

Entretanto, mesmo após essa retirada,  as relações diplomáticas entre os dois países se estreitaram, havendo grande emigração de haitianos para o Brasil. Os haitianos quando chegam ao país, podem recorrer à lei do refugiado, que entende que qualquer pessoa pode pedir refúgio em nosso país  desde que provenientes de regiões em guerra civil ou se forem vítimas de perseguições políticas. 

 

Atualmente, o Brasil mostra-se contrário a liderar a operação da ONU no Haiti. Embora o Governo dos Estados Unidos e o secretário geral da ONU, António Guterres, tenham feito apelos ao presidente Lula para que o país enviasse forças policiais para ajudar a conter a violência das gangues locais no Haiti, o Brasil não demonstrou entusiasmo em acatar os pedidos. A recusa do Brasil em liderar essa operação se estabelece a partir de dois pontos principais. O primeiro deles diz respeito a uma avaliação estratégica e diplomática realizada pelo Brasil de que a comunidade internacional praticamente abandonou o Haiti após o fim da operação Minustah. E o segundo fator que influenciou o Brasil a recusar a liderança da operação no Haiti diz respeito à natureza dessa atual missão, uma vez que a ação agora aprovada pelo Conselho de Segurança é apenas policial e não militar. O que poderia vir a levar a críticas internas pelo envio de grandes números de profissionais e equipamentos para o Haiti em um momento em que os  índices de violência estão aumentando em vários estados brasileiros. Ao final, o governo do Quênia aceitou liderar a missão. 

 

Cabe ressaltar  que há uma avaliação negativa, em vários setores da sociedade brasileira, sobre a liderança do exército brasileiro na MINUSTAH.. Na busca do líder pelo líder de gangues,  Dread Wilme, a ação dos soldados brasileiros teria sido excessiva, resultando em combates que teriam deixado dezenas de civis mortos no fogo cruzado. Essa missão, realizada na favela de Cité Soleil, foi liderada pelo general Augusto Heleno em 2005. No Brasil, durante o governo Bolsonaro, o então presidente escolheu Augusto Heleno para o cargo de ministro do Gabinete de Segurança Institucional e orientou que o general da reserva e outros militares que atuaram no Haiti agissem de modo a combater a violência no Brasil com métodos similares aos que utilizaram  no Haiti. Nas palavras do presidente (…)  “Estamos em guerra. O Haiti também estava em guerra”

 

Assim como Augusto Heleno, diversos outros cargos no governo Bolsonaro também foram ocupados por militares que direta ou indiretamente participaram da operação no Haiti. Foi o caso do Ministro da Defesa, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva, que serviu como chefe de operações subordinado a Heleno, ou também do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, que foi engenheiro militar sênior da ONU no Haiti, ou ainda do general de reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz que foi nomeado como ministro da Secretaria do Governo. Santos Cruz foi trocado no primeiro ano de governo devido a desavenças com a família Bolsonaro e terminou sendo substituído  pelo general Luiz Eduardo Ramos, que também comandou tropas no Haiti.

 

A ocupação de cargos de poder no governo por parte de militares participantes da missão levanta o questionamento da motivação em  intervir no Brasil, mais precisamente por meio de intervenções no Rio de Janeiro, da mesma maneira que fizeram no caribe. Atualmente, com o presidente Lula à frente do Brasil, esses militares foram em sua maioria removidos de seus cargos.

 

O Quênia se ofereceu para liderar a missão de paz a ser desenvolvida no Haiti, procurando repetir o que havia feito na Somália, durante a intervenção da União Africana em 2007 para combater grupos armados, também autorizada pela ONU. Suas motivações estão muito ligadas às oportunidades que a missão pode proporcionar ao Quênia, como a melhoria da capacidade das forças quenianas à longo prazo, devido aos treinamentos e equipamentos especializados que receberão antes de serem enviados para o Haiti, além dos incentivos financeiros. Dimas Mokua, analista baseado em Nairóbi, disse à Al Jazeera que: “No cenário global, enviar suas forças para o Haiti dá ao Quênia um capital político muito sério. Aos olhos do mundo, o Quênia se torna um aliado confiável que está disposto a ajudar outros países”.

 

Apesar do interesse queniano em liderar a missão, oferecendo enviar 1000 policiais ao Haiti, inicialmente, há controvérsias acerca da participação do país africano. As forças policiais e militares quenianas possuem vasto histórico de brutalidade, como torturas, corrupção e exploração sexual. Além disso, as disputas domésticas do país se apresentaram como barreiras para o envio de ajuda policial para o Haiti.  Parlamentares contrários à intervenção alertaram para a necessidade de aprovar as ação no Congresso Queniano, argumentando que as questões de segurança internas do país devem ser prioritárias, em detrimento de intervenções estrangeiras, visto a inexperiência das forças policiais do Quênia no combate ao crime . 

 

A execução da missão foi inicialmente bloqueada no Congresso queniano em outubro, mas aprovada em novembro, após esclarecimentos de que o financiamento e equipamentos utilizados na missão seriam custeados pelos Estados Membros da ONU. Não está claro, ainda, quando a intervenção se iniciará, e quais serão as estratégias utilizadas para impedir que os mesmos erros tomados em outras missões de paz se repitam. Destaca-se ainda que, apesar do país que liderará a intervenção fazer parte do Sul Global, é imprescindível que a população haitiana tome as rédeas de seu próprio destino, construindo, com ajuda internacional, instituições sólidas que permitam a autogerência e soberania.  

 

Por enquanto, o que também deve ser observado é a atuação quase que unilateral dos EUA em relação ao país Caribenho. Afinal, quais os interesses estadunidenses atuais em propor a intervenção no Haiti?

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