Vitória de Milei: futuro incerto para Argentina e América Latina

30 de novembro de 2023


Por Acauã Alexandre José dos Santos, Bárbara Fasolin Koboyama, Gabriel N. Silva, Ivan Cersosimo Valverde, Luiza Rodrigues, Mônica Almeida Peña e Tatiane Anju Watanabe (Imagem: Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA)


As eleições na Argentina aconteceram em um cenário de crise econômica e política. A discrepância de resultados entre as PASO, o primeiro turno e o resultado final face à maior abstenção eleitoral desde a redemocratização demonstra um descontentamento sério dos argentinos. O vencedor, Javier Milei, dificilmente ajudará o país a sair da crise em que se encontra. 


Resultado da eleição


A longa e tortuosa corrida eleitoral na Argentina teve um final surpreendente não apenas pelo resultado em si, mas por suas decorrências. Javier Milei sagrou-se presidente com 55% de votos válidos contra 44% de Sergio Massa. O ultradireitista teve uma disputa eleitoral  orientada pelos discursos anti-castas, isto é, contra as dinâmicas da política argentina.


Milei e Bullrich – a candidata do direitista Mauricio Macri – se aliaram durante toda a campanha do segundo turno, o que se mostra contraditório com o discurso de ambos nas respectivas campanhas do 1º turno, no qual tanto Bullrich quanto Milei se encontravam em posições antagonicas assim como Milei e Massa. Também vale ressaltar que Massa tentou aplicar na reta final táticas de intimidação sobre metas e discursos do adversário a respeito de seus impactos e consequências para o país como um todo, que futuramente renderam acusações de Milei a respeito de Massa estar usando uma “campanha suja” no final das eleições por basear sua campanha no medo e nos ataques. Milei, por outro lado, focou em uma campanha de suposta ruptura com o mundo político-institucional do país, e de como as soluções deveriam partir de alguém de fora desse meio, acusando à capacidade do Estado como um todo de administrar suas responsabilidades com a população assim como prover maneiras eficientes de sair da crise em que a Argentina se encontra.


Sergio Massa reconheceu imediatamente sua derrota e parabenizou o adversário. Alguns números do resultado surpreendem. Houve uma participação de 77% do eleitorado no primeiro turno e 76% no segundo.  A distribuição de votos no candidato extremista superou as expectativas. Em Córdoba, a segunda província mais populosa do país, deu a Milei 74% dos votos e em Santa Fé, a terceira maior, lhe deu quase 63%. Anteriormente, a província de Buenos Aires era uma base forte para o peronismo. Mesmo ganhando, a vitória de Massa foi apertada: 50,76% a 49,26% Na Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA) o resultado foi inverso: 50,46 para Milei contra 49,53 para Massa.


Quem é Javier Milei?


Javier Milei não era uma figura publicamente associada ao mundo da política até 2020. No ano seguinte, sua coligação La Libertad Avanza conquistou cinco lugares na Câmara dos Deputados. O novo presidente passou a usar  as redes sociais e mídias formais com séries de ataques histriônicos ao governo Fernandez. 


Milei se destacou nas ‘Paso’ – as primárias -, com os votos dos jovens, parcela do eleitorado mais atingido pela quase falência econômica que resulta em alta inflação, pobreza extrema, desvalorização da moeda, falta de investimento externo e falta de perspectivas futuras. Para os eleitores, o discurso rupturista fez com que houvesse um expressivo deslocamento de votos para a direita. A Argentina agora se depara com uma incógnita sobre o futuro.


É curioso lembrar que o ex-presidente Maurício Macri passou a apoiar o candidato que o atacou com tanta virulência quanto aquela dedicada a Sergio Massa. A Argentina está em um longo período de crises que deixaram a população sem expectativas nas saídas políticas convencionais. Milei sempre se apresentou como alguém capaz de procurar saídas fora da institucionalidade.


Perspectivas imediatas


O cenário pós-eleitoral é repleto de perguntas. Como ficarão a dolarização da economia, o fim do Banco Central, o enxugamento do Estado – a começar pela extinção de diversos ministérios (como os da Cultura, das Mulheres e da Ciência e Tecnologia) -, as privatizações e a política externa? Não há respostas prontas, é necessário ir à raiz do problema.


Vale lembrar que um presidente precisa de apoio no Congresso para colocar em prática suas promessas. Milei não tem esse apoio, mas pode conseguir ao chegar ao poder, unindo a centro-direita e a direita tradicional em sua base, apesar das dificuldades, considerando o aumento da fragmentação partidária observada nas últimas eleições. 


Não está claro se a vitória de Milei representou um apoio maciço da população às suas promessas, que envolvem  cortes profundos no investimento estatal. Tudo indica ter sido mais uma de rejeição ao peronismo do que a afirmação de alternativas consistentes. Caso não consiga melhorar a situação econômica do país, o ex-economista corre o risco de perder o apoio conquistado, com sérios problemas para a governabilidade do país.  


As relações com o principal vizinho


O resultado eleitoral representa um frio à tendência progressista observada na região a partir de 2019. Desde a posse do presidente Lula em janeiro deste ano, governos de variadas matizes progressistas estão instalados em 8 dos 12 países sul-americanos. Esse cenário sofrerá uma alteração quando Milei tomar a presidência dia 10 de dezembro, caindo para 7 lideranças mais democráticas, o que faz com que a Argentina se some ao Uruguai e Equador, que desde 2019 rumaram para a direita, enquanto nesse mesmo período cinco países sul-americanos passaram a ter líderes de orientação distinta, sendo eles Bolívia, Brasil, Chile e Colômbia.


Em 2024, cinco países latino-americanos passarão por eleições que podem mudar o cenário político da região, sendo eles México, El Salvador, Panamá, República Dominicana e Uruguai. 


A situação argentina acende um alerta para o progressismo latino-americano, e aos que defendem uma maior integração da região. Milei, a partir de suas propostas de campanha e declarações, pretende a desistência da entrada no BRICS, prevista para o início de 2024, a não negociação com Brasil e China,  seus 2 maiores parceiros comerciais –  “países comunistas”, segundo ele. Milei também pensa que os Estados não devem interferir em negociações comerciais, que ficariam a cargo da iniciativa privada.


O desprezo da extrema e ultradireita latinoamericana pelo Mercosul não é novidade, nas articulações para a montagem do governo, Milei já vem amenizando o discurso do  presidente eleito da Argentina, através de uma carta. Quanto à China, declarou que agradece o presidente Xi Jinping pelas felicitações dadas após sua eleição que me enviou através de uma carta desejando “bem-estar”.


Esse tipo de comportamento não difere do de Bolsonaro, que em diversos momentos da campanha e inclusive no poder criticava a China, em uma demonstração de maior alinhamento com os EUA, mas na prática as relações comerciais com o país asiático seguiram. O discurso de líderes ultra-direitistas, ressalta-se, é muitas vezes direcionado a sua base eleitoral, mas apresenta pouca viabilidade prática. 


40 anos da democracia argentina 


Além das propostas e medidas nas áreas econômica e social, uma das questões que levava a dúvida da vitória de Milei na Argentina são suas declarações negacionistas em relação à ditadura militar.


Em diversas ocasiões, incluindo o primeiro debate presidencial, Milei alegou que teriam sido 8.753 desaparecidos entre 1976 e 1983, número menor do que o oficialmente registrado. A Conadep (Comisión Nacional sobre la Desapareción de Personas) consta que o número de registros oficiais é de 8.971 pessoas desaparecidas, sendo um número aberto, e a estimativa é de há 30.000 desaparecidos. A questão por trás dos números não é meramente quantitativa, é um discurso de agressão contra a memória das pessoas desaparecidas e da história Argentina.


A Argentina foi o primeiro país da América Latina a julgar os militares por seus crimes ao restaurar a democracia. A Comissão da Memória, Verdade e Justiça, as Madres da Praça de Maio, a Guerra das Malvinas e o Nunca Más são fortes e presentes na história nacional.


O ano de 2023 é marcante para os argentinos pelas eleições e por completar 40 anos de democracia no país, após a última ditadura militar. É importante questionar o que levou os eleitores a decidirem pelo voto na extrema-direita e ignorar temas ainda tão presentes na vida cotidiana. A percepção vivida na Argentina pode ser estendida a todo o continente latino-americano.

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