01 de dezembro de 2023
Por Gabrielly Provenzzano, Geovanna Mirian e Rafaela Castilho Miranda
O texto abaixo compõe o capítulo final do e-book “América Latina em ebulição: reflexões sobre um continente em busca de sentidos”. O livro será lançado agora em dezembro pelo Grupo de Trabalho em América Latina do OPEB e conta com a contribuição de 30 autores, apresentando um total de 53 artigos. São abordadas coletivamente, ao longo de 322 páginas, visões abrangentes e plurais dos desafios futuros da região. Os temas explorados incluem cultura, política, economia, comportamento, esportes e outras variáveis. Em breve, o livro estará disponível para download gratuito em nosso site.
Esta coletânea é um esforço interdisciplinar sobre temas da agenda regional, elaborada pelo GT América Latina do Observatório de Política Externa da UFABC. Representa também a resiliência e o compromisso de estudantes e professores da área de Relações Internacionais, sem nunca perder de vista as articulações de nossa diplomacia e uma leitura à brasileira das realidades latino-americanas.
Em 2023, o GT América Latina do OPEB voltou aos trabalhos no fim de março, numa jornada iniciada em 2019. Na época, o Brasil já estava de volta às relações internacionais, o que inclui nosso continente. Estávamos no marco dos cem dias do governo Lula III e o mote da política externa – “o Brasil está de volta”, proferido inúmeras vezes pelo presidente – se materializou em viagens aos vizinhos Argentina e Uruguai, retorno à Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac) e acenos positivos aos demais organismos de integração da região, como Mercosul, Unasul e Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). No geral, após os erráticos quatro anos de Jair Bolsonaro, a diplomacia brasileira parecia exuberante uma vez mais, marcada por um retorno ativo e altivo em busca de protagonismo internacional.
Para o GT, o retorno brasileiro renovou o fôlego dos pesquisadores e pesquisadoras para analisar os desafios de nossa comarca, a América Latina, sob a lupa da pesquisa. Ao fim de um ano de trabalho, o resultado é um sobrevoo por alguns dos grandes desafios que agitam o continente e várias aterrissagens nos países que os protagonizam.
Lideranças progressistas
Na vizinhança, o novo contexto político do Brasil somou-se às eleições de outras lideranças progressistas – Andrés Manuel López Obrador (AMLO), eleito no México em 2018, seguido por Alberto Fernández, na Argentina (2019), Luís Arce, na Bolívia (2020), Pedro Castillo, no Peru (2021), Xiomara Castro, em Honduras (2021), Gabriel Boric, no Chile (2022), e, especialmente, de Gustavo Petro, na Colômbia (2022). Não nos passou despercebido o significado dessas vitórias de esquerda e centro-esquerda, entendidas como o início de um novo momento político na região em reação à ofensiva conservadora dos anos anteriores e à tendência à direita e extrema-direita na Europa. Do ponto de vista privilegiado do futuro, entretanto, mais do que nunca é evidente que avanços e retrocessos de diferentes lados são disputadoseleição após eleição: no fim de 2023, é impossível ignorar as tensões entre a esquerda boliviana, a destituição de Castillo, o fracasso de Boric, os desafios enfrentados por Petro e, principalmente, a vitória do ultraliberal Javier Milei, na Argentina, em novembro. Na América Central, o conservadorismo de Nayib Bukele em El Salvador e as alegadas violações de Direitos Humanos por parte do governo nicaraguense de Daniel Ortega também soam alto.
Laços reatados
No bloco “Desafios continentais” deste livro, as mudanças na constelação de forças foram esmiuçadas do ponto de vista bilateral e regional. De sua parte, a diplomacia brasileira reatou laços, resgatou a agenda da integração e, salvo exceções, pautou o relacionamento com seus vizinhos de forma consistente com a tradição diplomática do Brasil. As exceções foram a postura do país em relação à destituição de Castillo, ainda durante a transição do governo brasileiro em 2022, e à crise política na Nicarágua de Ortega. A visita de Lula ao Paraguai no início do ano seguinte, no contexto da revisão do Tratado de Itaipu, é vista com bons olhos para a relação bilateral entre os dois países, assim como em matéria de projeto de integração bem sucedido. Na mesma linha, o empenho brasileiro em adequar os termos do controvertido acordo entre Mercosul e União Europeia aponta para uma retomada da importância da América do Sul como um todo na agenda brasileira.
Por outro lado, historicamente, os avanços da direita e da centro-direita, colocam projetos de integração regional em xeque – vide o esvaziamento da Unasul e a debilidade do Prosul nos conservadores anos anteriores, por exemplo. Na dinâmica de avanços e retrocessos que marcam a América Latina em 2023, os pesquisadores se depararam com questões de caráter social, político e econômico que acrescentam uma camada a mais de complexidade a desafios continentais já conhecidos. Por atravessarem toda a região, dois deles foram tratados nessa primeira parte do livro: a crise humanitária de migrantes das Américas do Sul e Central rumo ao falso sonho americano e o suposto fantasma do comunismo invocado pelo Foro de São Paulo. De uma forma ou de outra, ambas expressam duas das muitas faces da relação entre a América Latina e os Estados Unidos.
Ao longo do ano, a dinâmica continental entrou em foco a partir da América Central, dado que esta é, historicamente, um espaço de disputa geopolítica envolvendo principalmente os Estados Unidos. Isso se dá por conta da sua posição geográfica, que levou os países dessa região a não atuarem tanto em aliança ao Sul global. Em um momento que muitos autores veem a hegemonia estadunidense em crise e um rearranjo na ordem mundial, tornou-se importante olhar com especial zelo para esses países e compreender suas movimentações políticas em relação ao continente e em relação ao mundo. O bloco de textos “América Central” buscou passar pelo México, Guatemala, El Salvador, Cuba e Nicarágua e traçar paralelos das semelhanças e divergências em relação ao restante da América Latina frente ao sistema internacional. Além disso, buscou-se compreender a relação direta do Brasil com esses países face à mudança de posição na transição Bolsonaro-Lula em 2022.
Transformações políticas
O México sob a liderança de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), enfrentou transformações políticas significativas nas últimas décadas. A vitória de Delfina Gómez Álvarez, do Movimento de Regeneração Nacional (Morena), no Estado do México, solidificou o domínio do partido do presidente e sinalizou um declínio do Partido Revolucionário Institucional (PRI), marcando uma mudança relevante. Desde sua eleição em 2018, AMLO implementou políticas voltadas para combater a corrupção, desigualdade social e violência. Seu governo criou programas sociais, buscando desenvolvimento econômico e independência energética, ao mesmo tempo em que enfrentava desafios como a persistente violência ligada ao narcotráfico e os impactos da pandemia de Covid-19.
As relações diplomáticas entre México e Brasil passaram por altos e baixos, com uma mudança no relacionamento durante os governos de Temer e Bolsonaro, que priorizaram alianças com os Estados Unidos. A eleição de Lula em 2022 reaproximou as nações, fortalecendo as relações bilaterais. Contudo, o México enfrenta desafios significativos nas áreas de segurança pública, com altos índices de feminicídios e crescente militarização na luta contra o crime organizado. A intensificação da presença militar em áreas turísticas como Cancún e Acapulco ilustra a complexidade do desafio de segurança no país.
Além disso, há duas mulheres com chances reais nas eleições presidenciais de 2024. São elas Claudia Sheinbaum, do Morena, e Xóchitl Gálvez, do Partido de Ação Nacional (PAN), de direita. Este momento é histórico: pela primeira vez na história do México homens não lideram as intenções de voto para presidente.Trata-se de mudança significativa em um país marcado pelo machismo e pelas estruturas políticas tradicionais.
As candidatas apresentam perfis distintos: Claudia Sheinbaum, alinhada à López Obrador, enfoca questões ambientais, desenvolvimento sustentável e educação, defendendo os direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIAP+. Já Xóchitl Gálvez, representante do PAN, ressalta sua independência política, tendo origens indígenas, apoiando causas liberais e empresariais, mas também defendendo conquistas sociais recentes. O embate entre as duas candidatas é relevante não apenas pela representatividade feminina, mas também pela disputa entre as visões política e ideológica que cada uma representa. A candidatura de duas mulheres na corrida eleitoral mexicana reflete as mudanças culturais e políticas do país, como o avanço de pautas sociais, como a legalização do aborto e o casamento homoafetivo e sinalizando mudanças profundas no papel das mulheres na esfera governamental, reforçando o caminho em direção a uma maior representatividade e diversidade no cenário político mexicano.
Tensão na Guatemala
Descendo um pouco no mapa, tivemos um cenário eleitoral caótico na Guatemala, com o primeiro turno suspenso e contestado devido a possíveis irregularidades, levando à possibilidade de anulação do resultado pela Corte Constitucional. Sandra Torres, da direitista Unidade Nacional da Esperança (UNE), e Bernardo Arévalo, do progressista Movimento Semente, seguiram para o segundo turno, eliminando o atual presidente Alejandro Giammattei. A legitimidade do processo foi questionada por denúncias de fraude, embora observadores internacionais tenham atestado sua validade. O alto número de votos nulos e brancos expressa o descontentamento popular com as eleições e o sistema político. Além disso, a renovação do Congresso trouxe mudanças, com o partido Vamos de Giammattei se tornando a principal força, enquanto o UNE de Sandra Torres e o Semilla de Arévalo assumiram posições de destaque, forçando diálogos entre os candidatos. A Guatemala enfrenta desafios econômicos, com crescimento seguido de grande desigualdade e pobreza persistente. Apesar do desenvolvimento industrial e dos setores agrícolas em expansão, muitos ainda lutam para acessar serviços básicos. A relação com Washington é complexa, com estratégias conjuntas em questões migratórias e de segurança. O país tem sido historicamente um aliado importante dos EUA na América Central, influenciando também decisões na ONU e em outros fóruns internacionais. A história política do país é marcada por golpes, lutas populares e uma frágil democracia. Movimentos como a Revolução de Outubro em 1944 trouxeram mudanças, mas a intervenção dos EUA em 1954 e décadas de guerra civil impactaram a estabilidade política do país. Dessa forma, a Guatemala enfrenta um momento político turbulento há muito tempo, com desafios históricos, eleições contestadas e uma população que busca mudanças em meio a um cenário de incertezas e instabilidade política.
Extrema-direita popular
Enquanto isso, em El Salvador, o governo de Nayib Bukele também é marcado por uma série de desafios e ameaças aos princípios do Estado de Direito. Durante seu mandato, houve a construção do maior presídio das Américas e um aumento significativo no número de detidos, alcançando mais de 1% da população, a maior proporção do mundo. Apesar disso, a popularidade do presidente segue acima de 90%. A inauguração do Centro de Confinamento de Terrorismo, sem espaços adequados e respeito às normas da ONU para o tratamento de detentos, ilustra o tom autoritário do governo na abordagem às facções criminosas, após um massacre em 2022 atribuído à Mara Salvatrucha (MS-13). No entanto, a falta de clareza sobre os motivos desse massacre levanta dúvidas sobre acordos não divulgados entre o governo e as facções. Além disso, Bukele desafiou normas constitucionais, destituindo magistrados e tomando ações arbitrárias para nomear juízes alinhados a seus interesses. A redução de municípios, sob o pretexto de combater a corrupção, suscita preocupações sobre a concentração de poder e o possível favorecimento do partido governante.
A história antidemocrática da região, marcada por ditaduras no século XX, amplia as preocupações sobre a estabilidade democrática. Apesar de El Salvador ter vivenciado acordos de paz após a guerra civil, as organizações populares continuam enfrentando desafios. Bukele, ao recusar as comemorações dos Acordos de Paz e adotar estratégias autoritárias, sinaliza uma postura preocupante para a democracia e os direitos humanos. As gangues, originadas nos EUA na década de 1980 e presentes no país, continuam a representar uma ameaça à segurança pública, alimentadas pela desigualdade social e pelo tráfico de drogas e armas na região. Apesar da redução dos homicídios durante o governo Bukele, relatos de abusos e violações dos direitos humanos surgiram em meio à repressão estatal.
O presidente, conhecido por sua presença ativa nas redes sociais, utiliza uma abordagem irônica para legitimar suas ações discricionárias, o que contribui para sua popularidade. A adoção da criptomoeda como moeda oficial e suas estratégias comunicacionais impulsionam sua imagem como líder da “nova geração”. Enquanto suas políticas frente à pandemia renderam resultados ambíguos, com controle relativo da doença, houve violações de direitos humanos durante as medidas de isolamento. O conservadorismo se manifesta em questões como o feminicídio, as restrições ao aborto e a violência contra a comunidade LGBTQIAP+. Apesar das manobras inconstitucionais e retrocessos democráticos, Bukele enfrenta pouca oposição para sua reeleição em 2024, contando com alta aprovação popular, apesar das contradições em seu governo. O cenário aponta para desafios significativos na preservação da democracia e dos direitos humanos em El Salvador.
Lula em Cuba
Em meio às tensões da América Central, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou oficialmente Cuba em setembro de 2023 para participar da Cúpula do Grupo dos 77 e China (G77+), realizada em Havana. O encontro teve como foco os desafios atuais para o desenvolvimento, especialmente o papel da ciência, tecnologia e inovação. A visita também marcou a normalização das relações diplomáticas entre os dois países após o período de distanciamento, ressaltando o compromisso mútuo em áreas como segurança alimentar, energias renováveis e biofarmacêutica. As relações entre Brasil e Cuba passaram por altos e baixos, incluindo momentos de rompimento diplomático durante a ditadura militar no Brasil e mudanças na política externa da Ilhaapós o colapso do bloco soviético. Durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, houve uma intensificação na cooperação bilateral, com acordos comerciais, parcerias em saúde e educação, além do notável programa “Mais Médicos”. No entanto, as relações foram enfraquecidas durante o governo de Bolsonaro, com hostilidades por parte do presidente brasileiro, levando Cuba a retirar os médicos do programa.
A retomada das relações entre Brasil e Cuba sob o terceiro mandato de Lula mostra um interesse mútuo na reconstrução da cooperação e no estreitamento dos laços comerciais. Acordos e entendimentos foram assinados durante a visita, envolvendo setores como energia, indústria, comércio, farmacêutico e biotecnologia, reforçando o compromisso mútuo em fortalecer os laços bilaterais e buscar uma cooperação econômica e tecnológica mais ampla.
A polêmica Nicarágua
Já a Nicarágua, também alvo frequente de polêmicas geopolíticas, se tornou um ponto de tensão entre EUA e China devido ao projeto do Canal bioceânico, uma vez que sua construção representa um desafio ao poder global. A situação do país é complexa, dados os embates entre Ortega e a comunidade internacional devido a alegadas violações de Direitos Humanos. A Nicarágua, historicamente marcada pela interferência dos EUA, encontra-se no centro de uma disputa estratégica entre potências. O projeto do canal bioceânico, proposto pela China, altera a balança geopolítica da região, desafiando o domínio dos EUA sobre as rotas comerciais. A deterioração da democracia no país, sob Ortega, é acompanhada pela comunidade internacional, embora se levante a questão se as críticas aos Direitos Humanos são genuínas ou estratégicas.
A iniciativa chinesa se confronta diretamente com o domínio tradicional dos EUA na região. Enquanto Ortega enfrenta acusações de autoritarismo e perseguição, a batalha geopolítica entre as superpotências ganha destaque na narrativa, revelando a complexidade das dinâmicas de poder por trás das críticas à situação política na Nicarágua. Apesar das preocupações legítimas com os Direitos Humanos, a abordagem internacional é também vista como uma estratégia imperial para salvaguardar sua influência na região. A disputa entre essas grandes potências se estende para além das questões de direitos, refletindo um jogo complexo de interesses geopolíticos que redefine a dinâmica de poder global, enquanto a Nicarágua permanece no epicentro dessas tensões.
Nesse sentido, constatamos que a América Central enfrenta um momento de mudanças políticas significativas, assim como vemos no decorrer desse livro em toda a América Latina, refletindo desafios comuns, como corrupção, desigualdade social, violência e instabilidade política.
Dilemas ao Sul
O bloco seguinte, “América do Sul”, descreve em detalhe os desdobramentos de intrincados quadros internos na Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Argentina, Paraguai, Chile, Bolívia e Guiana Francesa.
A Venezuela, que uma vez mais foi pauta de campanha eleitoral no Brasil em 2022, foi estudada com minúcia. A dependência da exportação de uma única commodity, o petróleo, e as relações tensas com os Estados Unidos expressam duas das vulnerabilidades que muitas das economias latino-americanas guardam ainda hoje. No limite do pragmatismo, destacamos como ponto de atenção para os anos vindouros a forma com que a política externa brasileira lidará com o próximo processo eleitoral venezuelano, previsto para 2024.
Ainda sobre as esquerdas e centro-esquerdas da América do Sul, a ruptura do progresista partido boliviano Movimiento al Socialismo, o MAS, os embate travados entre Gustavo Petro, sua frente ampla de base de governo e a oposição e, por fim, os seguidos reveses do governo Boric reforçam a complexidade da conjuntura regional. Mais do que isso, exemplificam a diversidade de estratégias dentro do que usualmente chama-se de “esquerda latino-americana” e reforçam a necessidade de analisar a política de cada país à luz de sua própria história. Evo Morales é e deve continuar sendo uma personalidade essencial para a compreensão da Bolívia. Petro, pelo ineditismo de sua vitória e a expectativa sobre seu mandato de esquerda, é um caso de interesse para o futuro, especialmente após as derrotas do governo nas eleições regionais de outubro. Esse revés, no entanto, pouco se compara com a derrota da constituinte chilena – mais uma para o pato manco que se tornou o governo Boric. Juntas, a trajetória desses países é também uma variável importante para aferir os avanços e retrocessos entre o progressismo e o conservadorismo na América Latina.
Outros países que constituem variáveis relevantes para se entender a constelação de forças na região foram Paraguai, Equador e Argentina e seus respectivos processos eleitorais. No caso do Paraguai de Santiago Peña, as expectativas para o futuro envolvem a renegociação do Anexo C do já citado Tratado de Itaipu com o Brasil, estratégico para ambos os países. Em relação aos termos do acordo, as cartas devem ser dadas pelo lado brasileiro, mas é de se esperar que os diálogos sejam amistosos para contornar as assimetrias entre Paraguai e Brasil e melhor acomodar as demandas comuns dos dois.
Adiante, sobre o Equador, os pesquisadores do GT cantaram a bola sobre os dilemas de Guillermo Lasso entre o impeachment e a morte cruzada, que resultou na convocação de eleições extraordinárias. Pegou a todos de surpresa, entretanto, o assassinato de Fernando Villavicencio, candidato a presidência, em agosto. A cobertura em tempo real das conturbadas eleições do Equador terminou com a vitória de Daniel Noboa e a triste constatação da escalada da violência nos processos políticos da América Latina.
Em outra disputa violenta, dessa vez do ponto de vista das acusações, os argentinos elegeram como presidente Javier Milei, extremista de direita e negacionista da ditadura argentina, no ano em que o fim do regime militar no país completou 40 anos. Num processo eleitoral digno do realismo fantástico latino-americano, a crise política e econômica colocou, de um lado, o peronista Sergio Massa, ex-Ministro da Economia que acumulou sob sua pasta uma inflação na casa dos três dígitos, e Milei, o ultraliberal aos moldes de Jair Bolsonaro, que alega conversar com seu cachorro morto. O resultado chocou pela primeira vez nas primárias, quando Milei saiu na ponta, e novamente no segundo turno, quando ele foi eleito. Com o resultado das eleições, observamos os primeiros movimentos do futuro presidente argentino à luz das análises feitas em 2023, especialmente em relação à dolarização da economia e da possível nova dinâmica bilateral entre o país e o Brasil – o que também deve reverberar nas possibilidades de integração da região.
Visões plurais
No penúltimo bloco, “Para além do mapa”, as possibilidades do continente são vistas em sua forma mais ampla. Aqui, os textos proporcionam uma plural visão das complexidades presentes na América Latina, expressando sua diversidade social, cultural e política, para além da econômica. Os tópicos abordados refletem a interconexão de eventos dentro e para além do continente, demonstrando como as questões sociopolíticas podem convergir e impactar regionalmente, e mundialmente, de maneiras multifacetadas. Em outras palavras, a coletânea de artigos produzidos neste bloco apresentam problemáticas contemporâneas globais e recorrentes na América Latina. É possível que a abordagem de pautas progressistas possa facilitar mudanças sociais e culturais na região.
Enquanto a discussão sobre o racismo no futebol, especialmente em relação ao jogador Vini Jr., destaca desafios enfrentados por atletas negros e latino-americanos e inevitavelmente expandido para a população local, é possível ressaltar a persistência da discriminação estrutural, também delimitado no artigo, ainda presente na realidade da região.
Em par está o artigo “Nobel e América Latina: um exame das lacunas de representatividade”, que também faz recortes raciais junto aos de gênero e etnia, em diferentes cenários. A escassez de reconhecimento de latino-americanos em renomados prêmios, como o Nobel, reflete intrincadas nuances históricas e desafios contemporâneos. Embora a região seja abundante em talento e potencial, disparidades geopolíticas dificultam a competição equitativa de latino-americanos em relação a outras partes do mundo, demonstrando como esses mecanismos de dificuldades sociais colocam obstáculos, nas vivências e conquistas de dentro para fora do continente.
A partir disso, destaca-se que enfrentar o racismo estrutural, o eurocentrismo e o sexismo na América Latina requer um compromisso contínuo de reformas políticas, sociais e econômicas, bem como uma mudança cultural profunda para promover a diversidade, a equidade e a justiça social. O diálogo aberto, a conscientização e o apoio a iniciativas que buscam abordar essas questões são fundamentais para criar uma sociedade mais igualitária.
A desigualdade de gênero no contexto do futebol feminino aborda questões de empoderamento e a luta árdua dentro do campo por igualdade, refletindo dinâmicas sociais específicas e estruturais. O artigo “Barbie: de conservadora a progressista”, apresenta também uma coletânea de tópicos direcionados à luta de gênero e seus estereótipos idealizados, com um caminho de enfrentamento progressista, envolvendo dilemas geopolíticos. Nessa linha, chovem no molhado ao constatar que as desigualdades de gênero na América Latina são problemas persistentes.
Os textos encadeados neste bloco também abordamos conflitos entre Israel e Palestina, e apresentam várias posturas em relação a uma das questões mais complexas da geopolítica global. Trazendo contextos histórico e político, são analisadas as vivências e problemas dessa esfera. É possível perceber a postura ambígua do Brasil, bem como a relevância da busca de uma solução pacífica e concreta.
Enfatizando a necessidade de uma análise crítica e tratamento dos temas envolvidos, o bloco, ressalta e difunde adversidades sociais e políticas recorrentes na América Latina e evidencia a relevância internacional das reivindicações brasileiras nos diálogos mundiais. Em última análise, este livro aborda desafios prementes, materializando um convite à reflexão e ação para promover mudanças significativas na América Latina. A necessidade de superar barreiras estruturais, preconceitos arraigados e desigualdades persistentes emerge como uma mensagem central neste bloco, instigando os leitores a engajarem-se ativamente na construção de uma sociedade mais inclusiva e justa.
Somado ao sobrevoo inicial sobre o continente e as aterrissagens em país a país ao longo do ano, a diversidade de temas analisados em “Para além do mapa”, muitos deles para além das agendas tradicionais das Relações Internacionais, nos dão notável capacidade para entender o presente e imaginar futuros possíveis para o continente. O artigo que encerra esta coletânea, “A contra-reforma e a persistência da extrema direita”, coloca em foco novamente os embates entre forças conservadoras e progressistas, com a percepção crítica para reconhecer que sim, apesar das vitórias progressistas em anos recentes, os êxitos das direitas não tardam em alcançar os governos. Entre um projeto e outro, há diferentes visões e possibilidades de existir no mundo.
Ao GT América Latina, não cabe a arrogância de apontar o futuro. Nos cabe somente, como já dito, a saudável pretensão de entender o presente. Após um ano de trabalho muito produtivo, é seguro dizer que nos aproximamos de alguns de nossos problemas seculares e, mais do que isso, que chegamos ao fim de 2023 com a visão da América Latina que queremos ainda mais nítida do que anteriormente. Apesar disso, este livro, um produto feito a muitas mãos, não pretende ser o ponto final de reflexões. Para encontrar os sentidos de nosso continente em ebulição, esperamos que este material seja um, dentre tantos outros, que fomentam debates através da pesquisa.