A Presidência brasileira do G20: entre consensos e divergências

29 de agosto de 2024

 

Por Alice Maia, Gustavo Botão, Nicolas Modesto e Tuany Nascimento (Imagem: Audiovisual do G20 Brasil)

 

No decorrer da 18º cúpula do G20, realizada na Índia em novembro de 2023, foi anunciado que o Brasil assumiria a presidência do Grupo até novembro de 2024. Ao assumir a Presidência, o governo brasileiro estabeleceu como temas prioritários o combate à fome, pobreza e desigualdade, as três dimensões do desenvolvimento sustentável (econômica, social e ambiental) e a reforma da governança global. Assim, diversas reuniões, em nível técnico e ministerial, tem sido realizadas no país ao longo do ano, dispersas nas cinco regiões que o compõem, com o intuito de descentralizar as atividades, tornando o G20 mais acessível e representativo. 

 

O Brasil encerra seu período de presidência em novembro de 2024, mês em que ocorrerá a Cúpula de Líderes do G20, nos dias 18 e 19, no Rio de Janeiro, com a presença das lideranças dos países-membros, mais a União Africana e a União Europeia. A próxima presidência será da África do Sul, país que junto da Índia e do Brasil compõe o atual sistema da troika do G20. O objetivo da troika é de que os países das presidências atual, anterior e seguinte do G20 cooperem entre si na condução do grupo na preparação da Cúpula de cada ano, visando dar maior coerência e continuidade entre as presidências.

 

Breve histórico do G20

 

O Grupo dos 20 foi criado em 1999, com a participação de países desenvolvidos e emergentes (19 países membros e a União Europeia) e atuava como um fórum de ministros de finanças e presidentes de bancos centrais. A fundação do grupo ocorreu após sucessivas crises econômicas durante a década de 1990 e uma noção generalizada da necessidade de maior integração dos países emergentes na economia mundial. Contudo, as grandes economias emergentes eram consideradas instáveis e capazes de provocar danos à estabilidade econômica dos países desenvolvidos. Neste sentido, o G7 (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Japão) buscava estabelecer um diálogo com os países emergentes para ensinar-lhes “boas práticas” financeiras e macroeconômicas, uma vez que acreditava-se que as crises financeiras só poderiam ter origem nos países emergentes, por conta de falhas nas políticas implementadas.

 

Em 2008, uma grave crise financeira se originou nos países centrais e, paralelamente, o Brasil ocupava a presidência do G20 ministerial. Assim, a pedido do Departamento do Tesouro dos EUA, o Brasil organizou uma reunião de emergência com o objetivo de cooperar para superar a crise e aperfeiçoar a regulação financeira. Durante a cúpula do G20 em 2009 a confiança dos mercados continuava a deteriorar-se e em razão disso os líderes do G20 triplicaram os recursos ao FMI e a emissão de DES (Direitos Especiais de Saque). Nesse mesmo ano foi realizada a Cúpula de Pittsburgh, cuja principal decisão foi a consolidação do G-20 em nível de chefes de estado e governo, além de aprofundar as reformas das instituições de Bretton Woods.

 

Na primeira metade da década de 2010 começam a surgir discussões acerca de um “multilateralismo contestado” no âmbito do G20 entre dois blocos de países: os desenvolvidos centrados no G7 e os emergentes reunidos nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), com o segundo bloco demandando reformas na arquitetura financeira internacional. A chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos levou o G20 a um momento de estagnação em razão de sua política contrária à cooperação internacional nos organismos multilaterais, impactando negativamente também as discussões relativas ao combate à pandemia de Covid-19, a partir de 2020.

 

As expectativas acerca da retomada de protagonismo do G20 passam a crescer com o fim da presidência de Trump e com o início de um quadriênio de presidências de potências médias emergentes (2022 – Indonésia; 2023 – Índia; 2024 – Brasil; 2025 – África do Sul). Essas presidências enfrentam, no entanto, desafios geopolíticos como a guerra entre Rússia e Ucrânia, o genocídio de palestinos levado a cabo por Israel na Faixa de Gaza e a crescente rivalidade entre EUA e China.

 

Atuação da presidência brasileira 

 

A presidência brasileira do G20 em 2024 tem como imperativos a inclusão social, o combate à fome e à pobreza, a promoção das três dimensões do desenvolvimento sustentável (econômico, social e ambiental) e a reforma das instituições de governança global. Assim, para atingir os objetivos dessa gestão, o Brasil propôs duas forças tarefas e uma iniciativa: a Força Tarefa para o Lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a Força Tarefa para a Mobilização Global contra a Mudança do Clima e a Iniciativa para Bioeconomia.   

 

Ainda pensando na dimensão de inclusão social, o Governo Brasileiro organizou o G20 Social, a marca mais inovadora da Presidência brasileira no G20. Na intenção de que o grupo, que sempre recebeu críticas por ser recluso, ganhe com a ampla participação da sociedade civil no decorrer dos encontros, atores não governamentais foram convidados a participar e a contribuir com os processos decisórios. 

 

Foram organizados, assim, 13 grupos de engajamento (GE), que incluem discussões sobre ciência e tecnologia, empoderamento econômico feminino, trabalho digno, melhor diálogo com a comunidade científica, sustentabilidade marinha, entre outros. Cabe ressaltar que as discussões sobre sustentabilidade marinha, no âmbito do GE Oceans20 criado pela presidência brasileira do G20, advém de um reconhecimento histórico do papel dos oceanos no combate à crise climática. 

 

Foram realizadas mais de 50 reuniões do G20 Social e Grupos de Engajamento, e as discussões resultarão na Cúpula Social do G20 entre os dias 15 e 17 de novembro, a qual ocorrerá pouco antes da Cúpula de Chefes de Estado e Governo, nos dias 18 e 19 de novembro de 2024.

Clique aqui para saber mais sobre a pauta de reforma na governança global

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Apesar da escolha do tema de sustentabilidade e desigualdade apresentada pelo governo brasileiro, o tópico que chama mais atenção para este ano de cúpula é a reforma das instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (como o BID, por exemplo), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e Organização das Nações Unidas (ONU). Estes organismos foram claramente criados em contextos político-econômicos que não refletem a atualidade das relações entre as nações. 

 

A agenda de reformas, porém, enfrenta obstáculos frente a outros países com interesses que não vão de encontro com esta visão, sobretudo aqueles que se beneficiam da atual hierarquia nestas instituições. Dos três grandes objetivos da presidência brasileira, possivelmente este não será concluído, mas deverá indicar caminhos para avançar na direção de instituições internacionais mais representativas, legítimas e democráticas.  

 

Em comunicado da 3ª Reunião de Ministros de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais do G20, as partes afirmam a necessidade de resistir ao crescente protecionismo e de fortalecer o sistema comercial multilateral centrado na OMC. As partes também reafirmaram seu compromisso com “oferecer Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (MDBs em inglês) melhores, maiores e mais eficazes”, ampliando suas capacidades de empréstimo para países de baixa e média renda. No documento também consta o “compromisso com um FMI forte, baseado em cotas e com recursos adequados, no centro da rede de segurança financeira global”, reconhecendo “a urgência e a importância do realinhamento das cotas para refletir melhor as posições relativas dos membros na economia mundial e, ao mesmo tempo, proteger as cotas dos membros mais pobres”.  

 

Cooperação econômica em meio à guerra 

 

As discussões no G20 neste ano se inserem em um delicado contexto geopolítico, envolvendo o conflito entre Rússia e Ucrânia e o atual genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza, e a crescecnte rivalidade entre EUA e China, o que impõe grandes desafios às negociações.

 

O conflito russo-ucraniano levou a uma tentativa de expulsão da Rússia do G20 liderada pelos Estados Unidos em 2022, com seu presidente, Vladimir Putin, sendo considerado criminoso de guerra pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) e dificultando seu comparecimento à cúpula do G20 em novembro no Rio de Janeiro. A 1ª Reunião de Chanceleres do G20, ocorrida nos dias 21 e 22 de fevereiro, foi utilizada como palco para críticas a Putin após a morte de seu opositor, Alexei Navalny, em uma prisão na Sibéria. Essa mesma reunião ministerial também serviu para condenar os planos de Israel de realizar operações militares em Rafah, na Faixa de Gaza. Visando evitar que as discussões geopolíticas afetassem o andamento dos trabalhos na reunião ministerial, a presidência do Brasil no G20 buscou focar nos temas relacionados à Trilha das Finanças, especialmente a tributação dos super ricos.

 

Este complexo cenário foi refletido na Declaração da Presidência brasileira emitida na 3ª Reunião de Ministros de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais do G20, ocorrida nos dias 25 e 26 de julho, em que deixa evidente que “alguns membros e outros participantes consideraram que essas questões (Rússia-Ucrânia, Gaza e EUA-China) têm impacto sobre a economia global e deveriam ser tratadas no G20, enquanto outros não acreditam que o G20 seja um fórum para discutir essas questões”. Apesar da timidez da declaração, este documento foi fruto de um consenso conquistado pela presidência brasileira, que quebrou um jejum de anos sem comunicados dos países-membros do fórum.  

 

Tributação internacional e a taxação dos super ricos

 

Dentre os esforços da presidência brasileira, encabeçada pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad, está a iniciativa que propõe a taxação progressiva sobre grandes fortunas. Na Declaração Ministerial sobre Cooperação Tributária Internacional, de julho de 2024, os países compartilharam a visão conjunta de que a “taxação progressiva é uma das ferramentas principais para reduzir as desigualdades domésticas, fortalecer a sustentabilidade fiscal, facilitar a consolidação do orçamento, promover um crescimento forte, sustentável, balanceado e inclusivo (SSBIG, na sigla em inglês) e facilitar a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”.

 

É importante lembrar que o consenso não significa uma obrigação para os países e a criação de um imposto global não foi acordada. O consenso foi atingido porque a declaração é genérica em relação às formas de implementação das medidas defendidas no documento. No que diz respeito à taxação dos super-ricos, por exemplo, tanto os Estados Unidos e a União Europeia como a China mantêm o posicionamento de que a taxação deverá ser realizada sob o tempo e o regramento a ser estabelecido soberanamente por cada Estado. Na declaração, afirmaram que “respeitando plenamente a soberania fiscal”, os países “vão se esforçar para cooperar a fim de garantir que as pessoas super-ricas sejam efetivamente tributadas”.

 

Mesmo tendo em mente que a falta de obrigatoriedade dá às Declarações do G20 um tom majoritariamente simbólico, também não se deve descartar os avanços das discussões do Grupo, avaliando-os como simplesmente frustrados. Pelo contrário, os avanços se dão a passos lentos porém constantes e o G20 proporciona um ambiente de articulação importante nesse sentido — especialmente neste ano em que o G20 Social abre também um espaço de articulação entre os membros da sociedade civil e os negociadores nas Trilhas Financeira e de Sherpas.

 

Conclusão 

 

Como visto, as discussões do G20 sob a presidência brasileira avançaram, até o momento, em temas como participação social, reforma do Sistema Monetário e Financeiro Internacional, tributação internacional e combate à pobreza a despeito do complexo cenário geopolítico que se desenrola. Estas conquistas obtidas até a metade deste ano estavam nos planos da presidência brasileira e podem avançar até a Cúpula do G20 que ocorrerá em novembro e se devem, em grande parte, ao papel conciliador e mediador do Brasil na política internacional.

 

A crescente participação do Sul Global na economia mundial, que desde 2023 conta com a inclusão da União Africana como membro do G20, pode acentuar as divisões entre Norte e Sul Global, dando maior peso para os países emergentes. Essa maior representação do Sul Global pode colocar em risco a própria efetividade do G20 caso esse fórum não se adapte às mudanças e pode, ainda, levar a uma divisão maior entre G7 e BRICS+ (desde 2023, o BRICS passou a contar com 11 países membros). Assim, o papel conciliador do Brasil pode auxiliar no alívio da “securitização” das discussões sobre governança econômica global e no avanço das discussões de temas polêmicos, como a reforma do Sistema Monetário e Financeiro Internacional e o aprofundamento das discussões acerca da redução das desigualdades de gênero no interior das estruturas de governança global.

 

A reta final da Presidência brasileira do G20 e a Cúpula de Líderes que ocorrerá em novembro no Rio de Janeiro vão manter os holofotes sobre o Brasil e, mais do que isso, testarão a capacidade da diplomacia brasileira em forjar consensos e superar a fragmentação ao redor de temas complexos, nos quais os interesses das vinte principais economias do mundo tem divergido, mais do que convergido.

 

Referências

 

CARNEIRO, Luis Antonio Balduino. A Crise Financeira Internacional como Oportunidade para a Reforma da Arquitetura Financeira Internacional. In: Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional. O Brasil no mundo que vem aí. — (4.:2009 : Rio de Janeiro) Brasília: FUNAG, 2010.

 

G20 BRASIL 2024. gov.br, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/g20-brasil-2024#:~:text=O%20Brasil%20assumiu%20a%20presid%C3%AAncia,realizada%20em%202023%20na%20%C3%8Dndia. Acesso em: 05 de jun.de 2024

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