A legislação sobre o aborto na América Latina, entre avanços e retrocessos

Ano V, nº 84, 12 de setembro de 2024

 

Por Ana Luiza Fernandez*, Jéssica Batista**, Umaro Bassem*** (Imagem: Unsplash)

 

O tema do aborto é um dos mais controversos nos debates sociais e políticos da América Latina. A região é conhecida por ter leis restritivas sobre o aborto enquanto, simultaneamente, vem testemunhando uma onda de movimentos sociais que pressionam por mudanças legislativas. Neste artigo exploramos os desafios e as perspectivas futuras  em relação a questão do aborto na região. 

 

O movimento pela legalização do aborto tem ganhado força em diversos países latino-americanos, refletindo uma crescente conscientização sobre os direitos reprodutivos e a necessidade de proteger a saúde das mulheres. O processo não está isento de obstáculos, entretanto, uma vez que as leis e práticas ainda variam amplamente entre os países, refletindo tanto avanços quanto retrocessos no cenário político e social da região (PASSOS, 2022).

 

Os direitos humanos, conforme definidos por tratados internacionais, incluem o direito à vida, à saúde e à autonomia sobre o próprio corpo. A interrupção voluntária da gravidez, quando realizada de maneira segura e dentro de um quadro legal que respeite a autonomia da mulher, é considerada uma extensão desses direitos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a restrição ao aborto não apenas viola os direitos reprodutivos, mas também põe em risco a vida das mulheres ao forçá-las a buscar procedimentos clandestinos e inseguros.

 

A maioria dos países da América Latina e Caribe (ALC) tem leis altamente restritivas em relação ao aborto. Na região, apenas seis países permitem a interrupção voluntária da gravidez: Argentina, Cuba, Colômbia, México, Porto Rico e Uruguai — além dos não-latinos mas sulamericanos Guiana Francesa e Guiana. Quatro destes, tiveram suas leis flexibilizadas apenas nos últimos 10 anos, no que é considerado uma maré verde de legalização.

 

Dez países permitem o procedimento apenas em casos específicos, como a necessidade de evitar a mortalidade materna, ou em casos de estupro e anomalias fetais graves. São eles: Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Já a grande maioria, como El Salvador, Haiti, Honduras, Jamaica, Nicarágua e República Dominicana e Suriname, têm leis que proíbem o aborto em todas as circunstâncias, impondo penas severas para as mulheres que realizam o procedimento clandestinamente e para os profissionais de saúde envolvidos.  

 

 

Cuba foi o primeiro país da América Latina e Caribe a legalizar o aborto, ainda em meados da década de 1960. Desde então, a gestante pode interromper a gravidez até a 10ª semana. O propósito da medida seria respeitar os direitos reprodutivos das mulheres, aumentar a qualidade de vida e diminuir a taxa de mortalidade materna, postura que vai de encontro aos movimentos feministas e socialistas do país, atuantes desde antes da Revolução de 1959. O aborto em Cuba, portanto, é tido como um direito reprodutivo, sendo punido apenas quando ocorrido fora dos meios legais ou buscando fins lucrativos.

 

Em 2012 o Uruguai se tornou o segundo país da região a descriminalizar o aborto, em meio a muitos protestos e controversas. Até a 12ª semana de gravidez, a simples vontade da gestante já bastava para que pudesse acessar o aborto sem punição e até a 14ª, se a gravidez causasse risco grave a vida mulher, se houvesse malformações fetais ou se fosse fruto de estupro. 

 

Em 2020, foi a vez da Argentina legalizar o aborto voluntário através de uma nova legislação que permite a gestante realizar a interrupção de sua gravidez até a 14ª semana. Após este período, só é possível acessar o procedimento se a gravidez for decorrente de estupro ou se colocar a saúde da gestante em risco. É válido recordar que o país é destino de muitas mulheres estrangeiras (incluindo brasileiras) que procuram o país para realizar o procedimento em segurança. Desde que o político reacionário e de direita e Javier Milei assumiu a presidência do país em 2024, entretanto, o acesso ao aborto legal vem sendo ameaçado.  

 

Nos últimos anos, houve um crescimento significativo dos movimentos feministas na América Latina, que têm desempenhado um papel crucial na advocacia pelo direito reprodutivo. Esses movimentos utilizam protestos, campanhas de mídia social e ativismo jurídico para pressionar por mudanças nas leis e políticas. Na Argentina, por exemplo, o movimento “Ni Una Menos” e a “marea verde” foram fundamentais para pressionar o governo em 2020, mobilizando milhões de mulheres, jovens e aliados que levaram o debate para as ruas, forçando a sociedade e o governo a confrontarem a realidade dos direitos reprodutivos.

 

Dois anos depois do processo argentino, após demandas das mais de 90 organizações que formam o Movimento Justa Causa, a Colômbia decidiu pela descriminalização ao aborto até a 24ª semana de gestação. O país se tornou um dos mais liberais na questão, permitindo ainda que o procedimento seja realizado após esse período em três casos: estupro, malformação fetal ou gravidez que traga risco à saúde da gestante.

 

Essas mudanças refletem uma crescente conscientização sobre os direitos das mulheres e a necessidade de garantir acesso seguro aos serviços de saúde reprodutiva. Os países que recentemente decidiram flexibilizar suas leis ainda são, entretanto, a minoria na região, e o direito ao aborto na ALC segue sendo disputado entre grupos feministas e conservadores. 

 

Apesar dos avanços, a criminalização do aborto ainda sendo uma realidade em muitos países, o que coloca em risco a vida de milhares de mulheres. Em junho deste ano, por exemplo, entrou em discussão no Congresso Nacional brasileiro um Projeto de Lei que previa pena de homicídio simples em casos de interrupção da gravidez após 22 semanas. Esse tipo de retrocesso faz parte de uma agenda supranacional, impulsionada por movimentos de extrema direita que atuam globalmente. Recentemente nos EUA, por exemplo, uma Suprema Corte conservadora derrubou 50 anos de salvaguarda do direito ao aborto nacional. 

 

A autonomia reprodutiva é um aspecto central dos direitos humanos, e negar o acesso ao aborto seguro é uma forma de controle sobre o corpo feminino, perpetuando desigualdades de gênero. Na América Latina, onde 19,5% das tentativas de aborto no mundo acontecem, a prática é uma das principais causas de morte materna. Segundo a ONU Mulheres, a região é conhecida por apresentar altos índices de risco e vulnerabilidade para a vida de gestante e, nela, países com medidas restritivas realizam o procedimento mais do que países flexíveis, onde a prática é realizada com segurança, em instituições públicas de saúde.

 

A criminalização do aborto cria um ambiente onde as mulheres têm medo de buscar cuidados médicos, mesmo quando sua saúde está em risco.  Elas enfrentam estigma social, discriminação e, em alguns casos, perseguição legal. Quando recorrem a métodos não regulamentados frequentemente sofrem complicações graves, incluindo infecções, hemorragias e infertilidade permanente.  Além disso, é evidente o tratamento desigual que as mulheres pobres recebem, comparadas com aquelas que podem pagar por procedimentos clandestinos mais seguros.

 

Enquanto isso, a legalização do aborto em países como Uruguai, Cuba e, mais recentemente, Argentina e Colômbia, demonstra como políticas de saúde pública que incluem o acesso ao aborto seguro podem reduzir drasticamente as taxas de mortalidade e morbidade maternas. 

 

As diferenças na legislação refletem diferenças culturais, religiosas e políticas. Países como a Argentina e o México avançam para descriminalizar o aborto permitindo que as mulheres tenham mais acesso a serviços de saúde reprodutiva, o que representa um importante progresso na garantia de seus direitos. Enquanto outros, como El Salvador e Honduras, mantêm uma proibição total, sem exceções, colocando as mulheres em situações de extrema vulnerabilidade e forçando muitas a recorrerem a métodos clandestinos e inseguros. 

 

O cenário da discussão é profundamente marcado por desigualdades políticas, culturais e socioeconômicas, que tornam o acesso ao aborto seguro e legal extremamente variável, dependendo do local onde as mulheres residem e de fatores como a influência da religião, as dinâmicas políticas locais e a força dos movimentos feministas em cada país. Em alguns lugares, a forte influência da Igreja Católica e de grupos conservadores que lideram campanhas contra o aborto, lobby político e mobilização de seguidores para participar de protestos antiaborto dificulta a aprovação de legislações mais progressistas. Enquanto em outros, movimentos sociais robustos e bem organizados têm conseguido conquistar avanços significativos (DE LOS SANTOS, 2023). 

 

Os avanços não são, necessariamente, um sinal de virada do cenário em uma região onde predomina o conservadorismo. Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas que podem gestar estão em disputa e seguem passíveis de ameaças e o seu futuro depende da capacidade de atuação e da solidariedade entre os movimentos sociais da região. É importante frisar a importância de uma abordagem regional e internacional coordenada, e a necessidade de campanhas de educação e conscientização sexual integral  que incluam informações sobre direitos reprodutivos e planejamento familiar, cruciais para mudar percepções sociais sobre o aborto e empoderar mulheres e jovens a tomar decisões informadas sobre sua saúde e direitos.

 

Levantamento de 2021 feito pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) aponta que uma em cada sete mulheres brasileiras, aos 40 anos, já fez um aborto. (Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil) 

 

Ato contra a dificuldade de acesso ao aborto legal e seguro. (Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil) 

 

Referências 

PASSOS, Juliana. O avanço do direito ao aborto na América Latina. EPSJV/Fiocruz, 05 maio 2022, 14h20. Atualizado em 01 julho 2022, 09h40. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/o-avanco-do-direito-ao-aborto-na-america-latina. Acesso em: 19 ago. 2024.

SE HACEN SENTIR. Marea verde en Argentina: una revolución feminista con el faro del aborto legal. Disponível em: https://www.montevideo.com.uy/Salud/-Marea-verde-en-Argentina-una-revolucion-feminista-con-el-faro-del-aborto-legal-uc774130. Acesso em: 19 ago. 2024.

DE LOS SANTOS, Angelina. Latino-americanas prometem continuar luta pelo direito ao aborto em 2023. Open Democracy, 20 jan. 2023, 12h00. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/5050-1/america-latina-caribe-luta-aborto-2023. Acesso em: 19 ago. 2024.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *