Igor Fuser: “A fraude eleitoral nas recentes eleições presidenciais na Venezuela é incontestável”

Ano V, nº 85, 25 de setembro de 2024

 

Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva (Imagem: Felipe L. Gonçalves/Brasil247)

A eleição presidencial venezuelana realizada em 28 de julho de 2024 tem gerado debates intensos sobre a legitimidade do processo eleitoral. Diversos mandatários, analistas e organizações internacionais questionam a lisura do pleito, apontando para possíveis irregularidades, como o controle governamental sobre as instituições eleitorais e a repressão à oposição. Em meio a essa turbulência, o Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB) entrevista Igor Fuser. 

Fuser é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e integra os programas de Pós-Graduação em Energia e em Economia Política Mundial da mesma universidade. Doutor em Ciência Política pela USP (2011) e mestre em Relações Internacionais pelo Programa Santiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), Fuser também possui graduação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (1982). Com experiência de mais de 20 anos como jornalista especializado em Assuntos Internacionais, foi editor em veículos como Folha de S.Paulo, Veja e Época. Entre seus principais temas de pesquisa estão Política Externa Brasileira, Geopolítica da Energia e Política na América Latina, sendo autor de obras como Bolívia – Nossa América Nuestra (2017) e Petróleo e Poder (2008). 

 

Como o senhor avalia o processo eleitoral na Venezuela, considerando as acusações de fraude e o reconhecimento de parte da esquerda brasileira?

 

Fuser: A fraude eleitoral nas recentes eleições presidenciais na Venezuela é incontestável. Não se pode conceber um processo eleitoral em que um resultado é proclamado pelas autoridades, em favor delas mesmas, sem que se apresente qualquer comprovação de que esse resultado é fruto da escolha dos eleitores. Isso é o que está acontecendo na Venezuela. O regime de Maduro mostra absoluto desprezo pela população venezuelana e pelo resto do mundo ao exigir o reconhecimento de um suposto resultado eleitoral apenas porque as autoridades judiciais de seu país – integrantes de um Poder Judiciário notoriamente controlado pelo Executivo, ao qual tem se mostrado, nas últimas duas décadas, absolutamente servil – afirmam que é verdadeiro. Ora, em qualquer lugar do mundo, a credibilidade dos resultados eleitorais está associada, primariamente, aos resultados parciais que a compõem – por Estado, por cidade, por zona eleitoral etc. É assim até mesmo nas eleições realizadas no interior da sociedade civil, em associações de todos os tipos, em sindicatos ou em entidades estudantis.

 

Os dados da eleição presidencial venezuelana, que deveriam constar em documentos específicos disponibilizados publicamente, as atas ou mapas de votação, são mantidos até hoje, passados quase dois meses, como um segredo guardado a sete chaves. Incialmente as autoridades prometeram divulgar os resultados detalhados em uma questão de horas, depois pediram que se esperasse mais alguns dias, depois o prazo limite de 30 dias estabelecidos pela lei e agora estará claro que isso nunca vai acontecer. As únicas atas conhecidas são aquelas apresentadas pelos opositores, a partir de cópias obtidas pelos seus fiscais, milhares deles, nas diferentes seções eleitorais ao término da votação, e até agora não desmentidas de forma convincente. Qualquer adolescente é capaz de perceber que se as atas originais apontassem um resultado favorável à candidatura de Maduro, teriam sido exibidas imediatamente, ao som de fanfarras, já que seria do pleno interesse do governo tornar públicas as provas do seu suposto triunfo. Se isso não acontece, a única explicação plausível é a de que Maduro foi derrotado e, de forma fraudulenta, se apresenta como vencedor.

 

Essa escandalosa fraude eleitoral, seguida de medidas repressivas para silenciar os protestos e intimidar todos os que se opõem ao regime de Maduro, colocou a Venezuela, de forma clara e incontestável, entre os países que podem ser classificados como ditaduras ou tiranias. Os governos latino-americanos de esquerda ou centro-esquerda, os chamados progressistas, sempre fundamentaram, até agora, a sua legitimidade na vigência das práticas democráticas. Sempre foi ressaltada, em especial, a legitimidade oriunda do fato de que foram escolhidos pelo voto popular, em eleições limpas. A conduta do governo venezuelano em relação às recentes eleições presidenciais contradiz essa característica fundamental. 

 

Nossa força sempre residiu no princípio da soberania popular, o que inclui, com destaque, a escolha dos governantes pelos governados. É o princípio da soberania popular que tem permitido às forças de esquerda e democráticas, na América Latina e em outras partes do mundo, denunciar como criminosos os golpes de Estado, bem-sucedidos ou não, desferidos pelas oligarquias locais, quase sempre aliadas ao imperialismo estadunidense. Foi a origem democrática dos mandatos presidenciais, mais do que tudo, o que permitiu, em diferentes momentos da história latino-americana, defender a legitimidade de governos como o de Jacobo Árbenz na Guatemala, o de Salvador Allende no Chile e os de João Goulart e de Dilma Rousseff no Brasil, contra as forças reacionárias que se insurgiram para derrubá-los. Na própria Venezuela, quando o presidente Hugo Chávez enfrentou um golpe civil-militar em 2002, seus apoiadores denunciaram o caráter antidemocrático da tentativa golpista, já que se tratava da deposição de um presidente eleito sem que houvesse qualquer base constitucional para essa ação. Agora o regime de Maduro, ao optar pela sua continuidade por meios fraudulentos e autoritários, se aparta ostensivamente dos países onde se pode considerar que estão em vigência as regras do Estado Democrático de Direito.

 

Quanto aos governos e às forças políticas, brasileiras e de outros lugares, que apesar de todas as evidências em contrário ainda assim reconhecem a suposta legitimidade da pretensão de Maduro, estão endossando práticas incompatíveis com aquelas que defendemos no nosso próprio país. No contexto brasileiro e latino-americano, isso é gravíssimo, pois põe em risco a coerência necessária para defender a democracia quando ela é ameaçada dentro dos nossos países por forças reacionárias, como ocorreu no Brasil, recentemente, com a aventura golpista dos bolsonaristas em 8 de janeiro de 2023. 

 

Quais são os principais argumentos daqueles que defendem que as eleições foram democráticas e justas?

 

Fuser: A retórica dos que alegam, contra todas as evidências, a legitimidade dos supostos resultados eleitorais na Venezuela se resume a um ponto. Esses resultados devem ser aceitos, segundo eles, simplesmente porque as autoridades da Venezuela dizem que são verdadeiros. Essa é uma linha de raciocínio frágil, que não resiste à mínima argumentação em contrário. Imagine-se, apenas por hipótese, que no Brasil de 2022, o STF e TSE estivessem sob o controle de Bolsonaro, e anunciassem, sem qualquer fundamento em resultados parciais verificáveis, só com sua própria palavra, a vitória do então presidente, candidato à reeleição, derrotando assim a candidatura de Lula. Como será que nós, os brasileiros que não votaram em Bolsonaro, iríamos reagir?

 

O que sustenta a alegação de fraude nas eleições, considerando que o resultado foi divulgado com 80% das urnas apuradas?

 

Fuser: Nunca saberemos qual era o verdadeiro quadro da apuração das urnas quando foi anunciada a vitória de Maduro. Ninguém, exceto o próprio Maduro e mais um punhado de seus seguidores, sabe efetivamente qual era o percentual apurado naquele momento, ninguém sabe de onde eles tiraram esses 80% e os números de votos anunciados oficialmente. Trata-se de um governo que já perdeu toda a credibilidade.

 

A denúncia de fraude nas eleições venezuelanas não é uma mera “alegação”. O que existe é um conjunto avassalador de evidências de que, sim, as eleições venezuelanas foram fraudadas, a começar pela mais óbvia de todas: as atas eleitorais obtidas por milhares de fiscais eleitorais opositores ao final da votação. Essas atas estão assinadas por funcionários da Comissão Nacional Eleitoral e por fiscais de diferentes candidatos, o que em muitos casos vai além dos dois principais, Maduro e Edmundo. Essas atas, que  totalizam mais de 80% da votação, apontam a vitória de Edmundo com mais de dois terços dos votos.

 

O governo nega a autenticidade dessas atas, mas nunca foi capaz de refutá-las de modo consistente, apesar de que seria fácil fazer isso. Bastaria exibir as atas originais recolhidas pela CNE logo após a votação e que, a esta altura, o público já não sabe em poder de quem estão e sequer se elas ainda existem ou se foram destruídas criminosamente pelo governo. Outra maneira pela qual o governo, se estivesse se comportando de maneira honesta e transparente, poderia desmoralizar as atas exibidas da oposição seria refutar as assinaturas, por meio de depoimento dos próprios signatários desses papéis. Mas não fez isso, pois tudo indica que essas atas são verdadeiras e é difícil mobilizar milhares de pessoas para dar falsos testemunhos sem que essa manobra seja desmascarada. Por fim, é importante assinalar que a responsabilidade por comprovar a validade de uma eleição compete às próprias autoridades eleitorais, que, na Venezuela, deixaram de cumprir essa obrigação legal. 

 

Como a divisão dentro da esquerda brasileira em relação ao pleito venezuelano pode impactar a política externa brasileira e suas relações com a Venezuela?

 

Fuser: A escandalosa fraude eleitoral e a plena instalação de uma ditadura civil-militar na Venezuela são fatos da mais alta relevância para a política externa brasileira. Para começar, o Brasil tem interesse na estabilidade política e social no país vizinho e se preocupa com o intenso fluxo de imigrantes e refugiados, que tende a se intensificar de agora em diante. Há também o envolvimento histórico dos governos do PT com assuntos políticos da Venezuela, desde o apoio eleitoral a Chávez e a Maduro até, mais recentemente, a participação de Lula como um dos chamados garantidores dos Acordos de Barbados, pelos quais Maduro aceitou realizar eleições limpas em troca da suspensão de determinadas sanções dos EUA ao petróleo venezuelano. Maduro não cumpriu o prometido no acordo, assinado com a participação do presidente brasileiro.

 

Lula recebeu Maduro com altas honras na reunião dos presidentes latino-americanos realizada em Brasília em 2023, enfrentando as críticas da mídia brasileira e dos setores liberais que haviam apoiado sua candidatura. Além disso, o governo Lula vinha defendendo o ingresso ou reingresso da Venezuela no Mercosul, uma instituição que estabelece, no Protocolo do Ushuaia, a chamada cláusula democrática, que exclui os países associados onde se instalem ditaduras.

 

Por tudo isso, a guinada autoritária e a fraude na Venezuela são motivos de constrangimento para o governo brasileiro e para a figura de Lula em particular. Esse constrangimento se agrava com as frequentes declarações de Maduro grosseiras ou até ofensivas ao presidente brasileiro, tais como mandá-lo “tomar chá de camomila”, e mais ainda com a decisão, mais tarde revogada, de cancelar o mandato brasileiro para cuidar da embaixada argentina em Caracas.

 

A apressada decisão dos dirigentes do PT de endossar as eleições venezuelanas como legítimas só contribui para fragilizar a posição de Lula nos cenários nacional, regional e global. O presidente brasileiro é alvejado ao mesmo tempo pelo PT e por outras forças importantes da esquerda brasileira, favoráveis ao alinhamento irrestrito com a ditadura de Maduro, e, por outro lado, pelo campo político e  midiático liberal, que se posicionou ao lado do PT no momento decisivo do segundo turno das eleições de 2022. Mas Lula não pode se mostrar ao mundo como alguém que  se coloca ao lado de Maduro no momento em que este se comporta em contradição com a democracia. Esse gesto causaria seu isolamento no plano da política interna brasileira e também no de sua política externa, além de ferir as convicções pessoais do presidente, que sempre cultivou valores democráticos. 

 

Há exemplos históricos recentes em que eleições em outros países geraram divisões ideológicas semelhantes dentro de partidos de esquerda no Brasil?

 

Fuser: Não sei responder.

 

Como a situação econômica e política da Venezuela afeta a percepção das eleições por parte dos países latino-americanos, incluindo o Brasil?

 

Fuser: A Venezuela costuma ser apresentada na mídia hegemônica como um exemplo de tudo o que é ruim aos olhos do mundo inteiro, tanto no que se refere à política quanto à economia. Inicialmente, essa imagem negativa foi resultado dos clássicos mecanismos de manipulação das informações pela mídia internacional, sempre a serviço dos interesses dos EUA e dos seus aliados. Essa campanha midiática tratava de ocultar as notáveis conquistas sociais obtidas durante os mandatos de Chávez e apresentava, de modo tendencioso, os elementos autoritários já existentes naquele período como provas de que a Venezuela era uma ditadura, o que não era verdade.

 

Porém no período Maduro a deriva autoritária foi se acentuando até transformar as acusações de autoritarismo, inicialmente falsas, em uma realidade incontestável. A virada de mesa ocorrida a partir das recentes eleições tem antecedentes que vinham se acumulando com o tempo, principalmente depois da ascensão de Maduro à presidência após a morte de Chávez, em 2013. Naquela época ainda não existiam sanções dos EUA que pudessem servir de justificativa para a conduta autoritária do governo. A vitória oposicionista nas eleições parlamentares de 2015 foi anulada de forma arbitrária, com a impugnação da Assembleia Nacional, de maioria anti-Maduro. A tentativa de convocação de um referendo sobre o mandato do presidente, algo previsto pela Constituição, foi bloqueada por manobras judiciais. Em seguida a Venezuela chegou ao ponto de a instituir uma Assembleia Constituinte cujo propósito não era o de elaborar uma nova Constituição, e sim o de anular um Legislativo de maioria opositora eleito legitimamente. Algo inédito na história política universal. Enquanto isso, a economia naufragava em uma brutal crise econômica que somente em parte pode ser explicada pelas sanções impostas pelos EUA. O fracasso da chamada Revolução Bolivariana, com a anulação de grande parte dos ganhos sociais dos tempos de Chávez, se deve também, e em grande medida, à inacreditável incompetência do governo de Maduro e à corrupção em altíssima escala que se faz presente em todo esse processo. 

 

Do ponto de vista da ciência política, pode-se afirmar que na Venezuela de Maduro vigorou, até recentemente, um regime político híbrido, uma mistura de democracia e ditadura na qual o governo mantinha o controle absoluto sobre todas as instituições relevantes e manipulava a legislação para garantir o seu monopólio do poder ao mesmo tempo que permitia uma relativa liberdade de expressão e organização às forças opositoras. Esse espaço democrático agora foi fechado e o que vigora no país é um regime de terror, com prisões em massa, repressão violenta a qualquer tipo de protesto e perseguição sistemática aos opositores. Pessoas comuns são abordadas na rua por policiais que olham seus celulares em busca de conteúdos contrários ao governo. Quem questiona a legitimidade da suposta reeleição de Maduro é tratado como subversivo. 

 

Quais são os desafios para a esquerda brasileira ao tentar manter uma posição unificada sobre a Venezuela, especialmente quando há divergências sobre a legitimidade das eleições?

 

Fuser: A degeneração acelerada da Revolução Bolivariana mexe com velhas questões pendentes na esquerda brasileira e internacional. Uma parte significativa dessa esquerda não foi capaz até hoje de ajustar contas com o infame passado stalinista e permanece devendo aos seus seguidores, principalmente aos mais jovens, uma análise convincente das causas da derrocada da União Soviética e do chamado “socialismo real”.

 

Quando se trata de repudiar o golpismo das classes dominantes e o intervencionismo dos EUA na periferia do capitalismo, ocasiões em que o imperialismo norte-americano recorre ao discurso pró-democracia como mero disfarce para avançar seus projetos de dominação, o campo da esquerda geralmente se unifica na defesa de valores éticos e políticos irretocáveis, de soberania popular e nacional, direitos humanos, justiça social. O problema aparece quando a tirania é exercida sob a fachada do anti-imperialismo, como ocorre na Venezuela e em outros países.

 

Esse é um assunto que diz respeito aos valores éticos que levam uma pessoa, em algum momento de sua vida, a fazer uma opção política pela esquerda, pelo socialismo, por alguma ideia de revolução. No meu ponto de vista, a democracia é um valor sagrado da esquerda, que praticamos ou deveríamos praticar nos nossos sindicatos, partidos e movimentos sociais.

 

Nossa opção ao lado da luta pela emancipação da classe trabalhadora e das maiorias desprivilegiadas traz consigo todo um conjunto de valores morais que não podem ser jogados no lixo. Nós que lutamos pelo socialismo devemos seguir uma conduta ética, sem mentir para o povo e respeitando sempre sua vontade. Todas as vezes que revolucionários ou supostos revolucionários passaram a exercer o poder contra a vontade do povo, como ocorreu nos países satélites da URSS no Leste Europeu, esses atores políticos se tornaram odiados e, ao final, os regimes que eles implantaram pela força foram depostos praticamente sem resistência, causando um grave retrocesso do ponto de vista do socialismo.

 

De que adiantou erguer o Muro de Berlim e assassinar os infelizes alemães que tentaram atravessar para o outro lado? De que adiantou a União Soviética internar dissidentes políticos em manicômios? Tudo isso resultou inútil, pois no final esses regimes vieram abaixo sem que praticamente ninguém mexesse uma palha em sua defesa. Da mesma forma, a fraude eleitoral na Venezuela é algo que só trará prejuízo à luta popular na Venezuela e em toda a América Latina. O protagonista das mudanças sociais é o povo e sua vontade deve prevalecer sempre. Isso é o significado da  soberania popular, da qual uma de suas principais expressões é o voto, que deve ser respeitado em qualquer situação.

 

Como a mídia internacional e as organizações de monitoramento eleitoral têm influenciado a opinião pública no Brasil sobre o pleito na Venezuela?

 

Fuser: Como em qualquer assunto, a visão predominante na opinião pública brasileira sobre a crise eleitoral na Venezuela tem sido formada, na sua essência, por uma mídia internacional vinculada aos interesses dos EUA. Infelizmente, neste caso específico, os enfoques que salientam a ocorrência de uma gigantesca fraude eleitoral naquele país correspondem às evidências disponíveis, de amplo conhecimento. 

 

O reconhecimento das eleições por parte de alguns governos e não de outros pode gerar consequências diplomáticas ou comerciais para a Venezuela? Tivemos a expulsão do corpo diplomático de 7 países, como isso pode ser encarado? Como defesa da soberania venezuelana ou como indício de fraude eleitoral?

 

Fuser: Claramente, Maduro e seu grupo político fizeram uma opção pela permanência no poder a qualquer custo. Sabem que uma das consequências da fraude eleitoral será um isolamento ainda maior do seu regime no plano internacional, inclusive com novas sanções econômicas. Assumem isso como um preço a pagar, uma vez que a alternativa seria reconhecer a derrota e transferir a presidência venezuelana ao verdadeiro vencedor das eleições, Edmundo González. Essa atitude nada tem a ver com soberania nacional e sim com a defesa dos interesses minoritários do pequeno grupo que exerce o poder em desrespeito à vontade do povo expressa nas urnas e ocultada pela fraude eleitoral.

 

Qual o papel de líderes políticos regionais, como Lula, em mediar ou influenciar essa divisão sobre o reconhecimento do resultado eleitoral venezuelano?

 

Fuser: Não existe nada que Lula possa fazer para alterar a determinação de Maduro e seu grupo de levar até o fim a farsa dessa reeleição anunciada sem um único elemento material capaz de comprovar sua veracidade. Foi um gesto fútil Lula falar em novas eleições. A única atitude cabível para o presidente brasileiro é se distanciar politicamente de Maduro ao máximo possível, sem chegar ao extremo do rompimento das relações diplomáticas, como fez Bolsonaro, o que prejudicaria ambas as sociedades, a brasileira e a venezuelana, e só se justificaria em caso de uma afronta aos interesses ou à dignidade do Brasil. Já não faz sentido Lula visitar Caracas ou receber Maduro em Brasília, nem fazer qualquer gestão favorável à volta da Venezuela no Mercosul, por exemplo. As relações devem ser mantidas num perfil baixo, como sinal de desaprovação pela fraude eleitoral e pela instalação de uma ditadura no país vizinho. Qualquer atitude diferente disso seria não apenas uma incoerência com as convicções democráticas expressas por Lula em toda sua trajetória, mas também um fator a mais de enfraquecimento da aliança política que sustenta o atual governo, uma aliança que não se resume à esquerda nem aos simpatizantes de Maduro.

 

Afinal, qual o papel dos EUA no meio de tudo isso?

 

Fuser: Os EUA estão tentando, desde a posse de Hugo Chávez em 1999, destruir o chavismo e reinstalar forças políticas neoliberais e pró-imperialismo estadunidense no poder em Caracas. Por isso se envolveram no golpe fracassado de 2002 e todas as intentonas golpistas posteriores. Por isso orquestraram a palhaçada do governo paralelo de Guaidó e aplicam contra a Venezuela um conjunto de sanções de extrema crueldade. Por isso apoiam, política e financeiramente, a oposição direitista venezuelana, liderada no momento por Maria Corina Machado.

 

É um engano achar que fazem isso somente ou principalmente pelo petróleo. Os EUA têm petróleo de sobra em seu território e a tendência para as próximas décadas é esse combustível perder gradualmente sua importância, na medida em que a transição energética se tornar realidade. Os EUA interferem nos assuntos da Venezuela pelo mesmo motivo que os leva a interferir na política interna de todos os demais países do mundo, para preservar sua hegemonia e impulsionar o projeto imperial que acalentam desde o início de século 20 ou até mesmo antes disso. A posição geográfica da Venezuela como país ao mesmo tempo caribenho e sul-americano aumenta ainda mais sua importância estratégica para os EUA.

 

No momento, a preocupação maior dos EUA é reverter a crescente influência da China e da Rússia na Venezuela. Uma vitória eleitoral de Edmundo González seria, evidentemente, um ganho estratégico para os EUA. Mas esse cenário precisa ser visto em perspectiva. Se os partidários de Maduro reconhecessem sua derrota e transmitissem o governo a Edmundo, ainda assim continuariam controlando as Forças Armadas, o Judiciário, o Legislativo, a maioria dos governos estaduais e municipais e várias outras instâncias de poder no país. A Constituição permaneceria em vigor, uma Constituição democrática e fortemente inclinada em favor das políticas sociais. O chavismo não desapareceria, ao contrário, permaneceria como uma corrente política de importante presença na cena nacional, tal como o peronismo na Argentina e o petismo no Brasil. 

 

Não é provável que um governo de Edmundo González viesse a tornar a Venezuela um país fascista ou uma colônia dos EUA, mesmo porque a frente oposicionista que o levou a obter a maioria dos votos é um agrupamento heterogêneo, formado por correntes políticas muito diferentes entre si e que só se uniram porque o autoritarismo vigente não lhes deixou alternativa. Seu programa é um programa democrático e os líderes da oposição já deixaram clara sua disposição a negociar com o atual governo os termos da transição política.

 

Ou seja, uma derrota de Maduro não seria o fim da História. Uma das vantagens da democracia é que o jogo não termina nunca, novos atores surgem ou se fortalecem conforme a conjuntura e os derrotados de hoje podem se tornar os vencedores de amanhã. Se o povo venezuelano votou na oposição liberal não é porque, em sua maioria, espere que a salvação venha dos EUA e sim porque não aguenta mais o regime de Maduro, com suas mentiras, suas promessas não cumpridas, sua corrupção, seus privilégios e sua incompetência, seu discurso demagógico e patrioteiro.

 

Maduro teve onze anos para convencer a população de que o principal culpado pela crise no país era o imperialismo estadunidense e fracassou, mesmo tendo em suas mãos todos os recursos de poder que se possa imaginar. Nesse período foram quase oito milhões os venezuelanos que saíram do país por conta da crise econômica, das sanções estadunidenses e do colapso do chavismo. Isso totaliza cerca de 25% da população. Não conheço as pesquisas, mas imagino que seja muito difícil encontrar simpatizantes de Maduro nessa diáspora venezuelana. Para cada pessoa que foi embora, existem seus parentes que ficaram, seus amigos, gente com poucos motivos para desejar que as coisas continuem do jeito em que estão.

 

Não é difícil entender que a população venezuelana anseia por mudança e por isso optou por votar nos opositores. Nas eleições de 28 de julho a mudança se chamava Edmundo González. Imagino agora como se sentem esses eleitores ao ver sua vontade traída por meio dessa fraude tão grosseira. O novo mandato de Maduro, caso aconteça, já vai começar sob o signo da completa ilegitimidade, tanto no plano interno ao país quanto no plano externo. Um presidente instalado no poder por meio de uma eleição roubada, uma vergonha. Dessa situação só se pode esperar isolamento, boicote, turbulência e novos fracassos.

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