O Brasil e as eleições na Venezuela: visões da imprensa e da esquerda brasileira

26 de setembro de 2024 

 

Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Giulia Monfredini, Ismara Izepe de Souza, Joyce Cipriano Victurino, Lucca León Franco, Luiza Rodrigues Oliveira e Maria Eduarda Brito (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)

 

Nos últimos anos, a situação política na Venezuela tem sido marcada por uma profunda crise institucional, econômica e social. Desde a ascensão de Nicolás Maduro ao poder em 2013, após a morte de Hugo Chávez, o país vive um cenário de crescente polarização política, com contestação interna e externa à legitimidade de seu governo. As eleições presidenciais de 2018, amplamente questionadas por observadores internacionais e pela oposição, intensificaram o conflito político, resultando na autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino em 2019, com o apoio de diversos países, incluindo os Estados Unidos. Esse período foi caracterizado por tentativas de diálogo fracassadas, sanções internacionais e uma crise humanitária agravada, que levou milhões de venezuelanos a emigrar. A situação se mantém tensa, com um regime que busca se manter no poder enquanto enfrenta pressões internas e externas por mudanças democráticas. O pleito presidencial realizado em 28 de julho de 2024 reacendeu as discussões, afinal, o regime venezuelano é uma democracia ou uma ditadura? 

 

O resultado das eleições e a sua ruidosa contestação

 

Em outubro de 2023, houve uma série de diálogos entre o governo da Venezuela e a oposição, com apoio de outros países como parte dos esforços para resolver a crise política venezuelana. Esses diálogos começaram em Oslo, Noruega, e foram transferidos posteriormente para Barbados, culminando no acordo que leva o nome do país caribenho. O acordo que intencionou criar condições para a realização de eleições presidenciais competitivas em 2024, teve como um dos seus principais pontos a aceitação da presença de missões de observação internacionais, incluindo a União Europeia e a Organização das Nações Unidas (ONU), além das implementações de reformas eleitorais que supostamente iriam garantir um pleito mais transparente e justo.


Como parte do Acordo de Barbados, o governo venezuelano se comprometeu a libertar presos políticos e os Estados Unidos anunciaram um alívio temporário para algumas sanções, especialmente no setor petrolífero, desde que garantido, por parte do governo de Maduro, o cumprimento das cláusulas acordadas. Contudo, a União Europeia estendeu as sanções impostas à Venezuela em resposta à suposta deterioração da democracia, ao desrespeito pelos direitos humanos e ao agravamento da crise política e humanitária no país. A União Européia juntamente com outros países e organismos internacionais buscam pressionar o governo venezuelano para uma restauração de direitos civis e democráticos no país, e em resposta a esses acontecimentos, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela cancelou o convite à União Europeia para observar o pleito político das eleições presidenciais que ocorreram em 28 de julho de 2024. O anúncio foi feito pelo presidente do órgão, Elvis Amoroso, que alega que as sanções impostas pela União Europeia desrespeitam as leis do país.

 

Grande parte da comunidade internacional reconhece os danos incalculáveis que as sanções têm causado ao povo venezuelano. Tais sanções impedem o acesso a medicamentos e alimentos, afetando crianças e idosos, e restringem empresários de adquirirem matéria-prima e insumos necessários à indústria nacional, impondo diversos limites ao país e à liberdade econômica.     

A presença da União Europeia como observadora nas eleições venezuelanas era um critério estabelecido no Acordo de Barbados, e o convite foi formalizado em maio de 2024, em uma coletiva de imprensa, na qual o Conselho Nacional Eleitoral convidou a comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), Comunidade do Caribe (CARICON), União Africana, União Europeia, BRICS e o Centro Carter dos Estados Unidos para observar as eleições venezuelanas. Todavia,  ao receber novas sanções, o governo venezuelano revogou o convite à União Europeia.  

 

O Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela declarou Nicolás Maduro vencedor das eleições presidenciais, entretanto, várias nações questionam a legitimidade da vitória e cobram transparência no pleito político. Contudo, Maduro segue vencedor e com apoiadores que mencionam a reeleição como um momento histórico. A declaração de Maduro logo após o fim das eleições foi permeada pela ênfase na democracia: “Eu sou Nicolás Maduro Morissette, o presidente reeleito da República Bolivariana da Venezuela. Irei defender a nossa democracia, a nossa lei e o nosso povo.” O resultado das eleições foi divulgado com 6 horas de atraso, e de acordo com apuração do Conselho Eleitoral, Maduro venceu com 51,21% dos votos válidos contra a oposição, que somou 44,2%  dos votos contabilizados nas urnas. 

 

A oposição venezuelana se manteve unida para eleger González Urrutia,  porém, o resultado do pleito representou um golpe para a esperança e a tentativa da direita em voltar ao poder. Maria Corina Machado, que é líder da oposição venezuelana, declarou que González ganhou em todos os estados venezuelanos com cerca de 70% dos votos, e que ele deveria ser considerado o presidente eleito do país. 

 

A reeleição de Nicolas Maduro gerou repercussões significativas no cenário internacional. Estados Unidos, União Europeia, e alguns países latino-americanos cobraram a  lisura no processo eleitoral e expressaram dúvidas sobre a sua legitimidade devido às alegações de fraude e manipulação. Líderes europeus e da América Latina não reconhecem Nicolás Maduro como presidente reeleito, e passaram a exigir a  verificação dos votos. Em contrapartida, aliados de Maduro celebraram a sua reeleição, e países como Cuba, Bolívia, Colômbia, China e Nicarágua felicitaram e reforçaram o apoio ao presidente reeleito.

 

A inflexão do Brasil em sua política externa para a Venezuela

 

A política externa do Brasil tem passado por notáveis inflexões em relação à Venezuela, desde que Lula assumiu seu terceiro mandato. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), o Brasil adotou uma postura crítica e de confronto ao governo Maduro, culminando no rompimento das relações diplomáticas entre os dois países. No decorrer desse período, o Brasil alinhou-se a outros países do Grupo de Lima, que condenavam o regime chavista por violações de direitos humanos, repressão política e crise humanitária, e aos EUA, reconhecendo, inclusive, o líder opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela.

 

No entanto, com o retorno de Lula à presidência em 2023, o Brasil buscou a reaproximação com o governo venezuelano, num claro contraste à postura imposta pelo seu antecessor. Lula voltou a priorizar o diálogo e a cooperação regional, uma marca dos seus governos anteriores, reconheceu Maduro como o presidente legítimo da Venezuela, restabeleceu laços diplomáticos plenos com Caracas  e  recebeu Nicolás Maduro oficialmente em Brasília, em maio de 2023, para a Cúpula de Chefes de Estado da América do Sul, chamada também de Consenso de Brasília. Esse encontro foi significativo, pois simbolizou a reintegração da Venezuela na agenda diplomática regional e a disposição do Brasil em restaurar pontes de diálogo com o regime chavista, ainda que isso implicasse desafiar um cenário internacional polarizado. Estabelecendo relações amistosas com a Venezuela, o governo Lula deu visibilidade a um tema internamente muito polêmico, dadas as antipatias de setores da direita ao regime venezuelano.

 

Essa mudança refletiu a retomada da abordagem pragmática da diplomacia brasileira, que, sob Lula, buscou a reintegração da Venezuela nas discussões regionais, acreditando que o isolamento do país não contribui para a estabilidade da América do Sul. A avaliação do governo brasileiro foi a de que as sanções internacionais impostas à Venezuela não trouxeram os resultados esperados, agravando a situação humanitária no país. Esse movimento faz parte de uma estratégia mais ampla do governo brasileiro, que visa fortalecer o papel do Brasil como liderança diplomática na América Latina, atuando como mediador em processos de negociação entre o governo de Maduro, os países ocidentais e a oposição venezuelana.

 

Apesar dos esforços do Brasil em reconduzir a Venezuela ao sistema internacional e aos blocos regionais, a atmosfera de conciliação foi abalada após o impedimento do registro da candidatura de Maria Corina Machado Yoris, principal nome da oposição a Nicolás Maduro, sem qualquer explicação oficial. O ocorrido gerou apreensão internacional e em nota à imprensa, o Itamaraty demonstrou sua preocupação com o processo eleitoral na Venezuela, mas ressaltou que “O Brasil reitera seu repúdio a quaisquer tipos de sanção que, além de ilegais, apenas contribuem para isolar a Venezuela e aumentar o sofrimento do seu povo”. O comunicado não foi bem recebido por Nicolás Maduro, que em resposta, emitiu um comunicado através do Ministério do Poder Popular para as Relações Exteriores da República Bolivariana da Venezuela, no qual repudiou a nota, classificando-a como cinzenta, intrometida e carregada “de profunda ingerência e ignorância sobre a realidade política na Venezuela”, afirmando  ainda, que a nota brasileira parecia ter sido “ditada pelos EUA” e guiada por suas pretensões imperialistas. O Itamaraty, por seu turno, preferiu não responder.

 

A declaração realizada pelo Itamaraty representou uma inflexão da política externa no que se refere ao regime venezuelano. Após esse episódio, as tensões entre os países se intensificaram, com declarações cada vez mais exaltadas, sendo feitas de parte a parte, com Nicolás Maduro chegando a falar em “banho de sangue” e gerando a consequente reação de Lula, que se disse assustado com as declarações. As provocações continuaram com Maduro pedindo que quem estivesse nervoso “tomasse um chá de camomila”, em clara resposta às falas de Lula, porém sem citá-lo. Maduro esclareceu posteriormente que a expressão “banho de sangue” foi uma referência aos possíveis atos da oposição, caso essa viesse a ganhar as eleições.

 

Apesar do estremecimento das relações entre os países, o Brasil guiou seu comportamento de forma a apaziguar os ânimos às vésperas da eleição, evitando responder às declarações, a fim de garantir que o pleito pudesse ocorrer de forma pacífica e ser validado pelos órgãos internacionais. 

       

A visão da grande imprensa brasileira sobre as eleições na Venezuela

 

Quando analisamos as posições tomadas pela imprensa de direita ou, ainda, da extrema-direita em relação aos acontecimentos na Venezuela, é possível observar uma insistência na afirmação sobre o  caráter fraudulento das eleições. Essa posição, aliás, não é novidade para os leitores destes veículos, já que a mesma é compartilhada todas as vezes em que ocorrem pleitos na Venezuela.  Nesse contexto, os grandes veículos midiáticos da direita, em especial o jornal O Estado de S. Paulo, têm adotado uma clara posição quando este tema é abordado, inclusive, utilizando-se de sua linha editorial para reunir acusações contra o regime de Maduro. No editorial “A hora da verdade para o Brasil na Venezuela”, o Estadão criticou Lula, afirmando  que “os pretextos de Lula para sustentar sua ambiguidade estão se evaporando”, em uma referência à posição cautelosa que o governo brasileiro adotou ao cobrar  a apresentação das atas das eleições, sem acusar o regime de fraude e, claro, sem reconhecer a vitória do opositor ao regime de Maduro, Edmundo González Urrutia. Em outro editorial, denominado de “A covardia do Brasil na Venezuela”, o mesmo jornal enfatizou  a “truculência do chavismo”, culpando o presidente brasileiro ao dizer que “Lula segue incapaz de condenar a ditadura do companheiro Maduro”.

 

As reportagens do Estadão buscaram seguir a mesma linha dada pelo editorial, com um enfoque no caráter supostamente antidemocrático do governo da Venezuela e na posição de ambiguidade adotada pelo Brasil. No dia 17 de setembro de 2024, por exemplo, a reportagem “Missão da ONU denuncia a ditadura de Nicolás Maduro por ‘crimes contra humanidade” abordou as apurações da Organização das Nações Unidas (ONU) acerca de um possível “exercício arbitrário do poder” no país. Na reportagem “Edmundo González diz que foi coagido a reconhecer reeleição de Maduro para poder deixar Venezuela”  foi enfatizado que o opositor foi coagido a assinar um documento para “acatar a decisão judicial que validou a reeleição do governo chavista no país”, com o objetivo de permitir sua partida para o exílio na Espanha. Outras reportagens são ainda mais enfáticas nas  críticas, como em “Países latinos condenam ordem de prisão contra Edmundo González na Venezuela; Brasil mantém silêncio”, matéria que contextualiza  a posição de diversos países desde o início da problemática e ressalta que o governo brasileiro persiste em um papel ambíguo e deslocado dos outros países latinos, apesar de citar um incômodo de Lula com a escalada autoritária. Em suas colunas de opinião, o Estadão dá vazão a posições ainda mais incisivas. Marcelo Godoy, por  exemplo, em “Como o governo Lula transforma responsabilidade em desculpa para a cumplicidade com Maduro”, associa a posição brasileira a uma certa cumplicidade de Lula com o líder venezuelano. São muitos os exemplos de reportagens do referido veículo jornalístico que enfatizam  a existência de um regime ditatorial, que adultera eleições e pune qualquer opositor político.

 

Enquanto a imprensa de direita mais tradicional, como O Estado de S. Paulo, mantém uma linha editorial que critica o governo Maduro e a hesitação de Lula em condená-lo abertamente, os veículos da extrema-direita, como a Revista Oeste, intensificam o tom das críticas, frequentemente acusando o presidente brasileiro de cumplicidade com os supostos crimes praticados pelo regime chavista. O levantamento das reportagens da referida Revista sobre a Venezuela são auto-explicativas: “Para Lula, Venezuela não é uma ditadura”, “Lula decidiu ser cúmplice de crime cometido por Maduro na Venezuela” e “Governo Lula não assina comunicado contra vitória de Maduro na Venezuela por discordar do texto”. Os títulos já elucidam que as críticas contém um teor acusatório dirigido, na maioria das vezes,  diretamente à Lula.

 

A análise das posições adotadas pela imprensa de direita e extrema-direita em relação à Venezuela revela um padrão consistente de desconfiança e crítica ao regime de Nicolás Maduro, com foco nas acusações de fraudes eleitorais e na repressão a opositores. Esses veículos aproveitam para instrumentalizar a questão venezuelana e as medidas da política externa brasileira frente ao país vizinho para atacar internamente o governo Lula. Tais veículos não inovam nos argumentos que sempre se voltam ao caráter supostamente condescendente de Lula com a “ditadura bolivariana”. Assim, tanto a direita quanto a extrema-direita utilizam suas plataformas para reforçar a narrativa de que há uma crise democrática na Venezuela, enquanto criticam enfaticamente o posicionamento do Brasil no cenário internacional. 

 

A visão da imprensa progressista e não hegemônica no Brasil e na América Latina  

 

De país amigo, o Brasil transformou-se em inimigo do governo bolivariano” é a legenda que encontra-se em uma foto que ilustra reportagem do portal Brasil 247 e que, de certa forma, sintetiza a avaliação que parte da imprensa de esquerda faz  do relacionamento entre Brasil e Venezuela após as eleições bolivarianas. Os argumentos giram em torno da ideia de que o governo Lula teria jogado no lixo anos de construção diplomática envolvendo não só os presidentes atuais, mas figuras como Hugo Chávez e Dilma Rousseff. A postura do governo brasileiro, principalmente do presidente Lula e de Celso Amorim, seu assessor para assuntos internacionais, foi criticada por pessoas pertencentes ao campo da esquerda  que, historicamente, sempre defenderam a aproximação entre os dois países. Por vezes a postura brasileira é também definida como “arrogante”, sob a alegação de que o Brasil está interferindo nos assuntos internos do país vizinho.


O Ministério das Relações Exteriores (MRE) emitiu nota oficial sobre as eleições, destacando a importância da publicação dos dados eleitorais venezuelanos pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), em defesa da transparência e legitimidade do resultado das eleições, condição para reconhecer de maneira explícita a vitória de Maduro. De acordo com o presidente Lula, a saída seria  realizar nova eleição, ou criar uma coalizão em prol da democracia. Como o governo de Maduro não apresentou as atas, o  governo brasileiro preferiu agir com cautela, não reconhecendo a vitória do líder chavista nas eleições de julho, mas também não endossando a vitória auto-proclamada pela oposição.

 

No dia 12 de setembro, Maduro anunciou parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). O portal anunciou com otimismo a parceria, que prevê o uso de dez mil hectares para produção de alimentos. O projeto foi enaltecido por Maduro, bem como a atuação bem sucedida do MST no Brasil. Por outro lado, o ex-vice-presidente da Venezuela, Jorge Arreaza, usou do momento para criticar as atitudes recentes do governo brasileiro em relação às eleições venezuelanas, bem como o afastamento do presidente Lula em relação a Maduro. O Partido dos Trabalhadores (PT) tem defendido uma postura distinta daquela desenvolvida pelo governo brasileiro frente à situação da Venezuela, especialmente após as eleições presidenciais.

 

Para entender a postura da esquerda brasileira, avaliamos algumas reportagens do portal Brasil 247 que, em linhas gerais, defendem a postura venezuelana e acusam o Brasil de ser o responsável pela tensão diplomática. O portal tem entrevistado analistas que  apontam para o erro em não reconhecer as eleições no país vizinho. A linha editorial deste portal, por vezes acusado pela direita de ser um braço do governo petista, avalia que o erro  se intensifica ainda mais quando uma nação como o Brasil declara à comunidade internacional que possui desconfianças em relação à integridade do processo eleitoral de um vizinho soberano. A maioria das reportagens que o Brasil 247 emitiu sobre o tema avalia que a  postura da Venezuela perante ao Brasil é compreensível, visto que a soberania de seu sistema eleitoral está em jogo.

 

Parte da mídia brasileira posicionada à esquerda avalia que o Brasil está agindo de forma incoerente na política externa, alegando que o Lula de hoje não estaria “conversando” com o de ontem. Assim, a questão levantada por alguns portais de veículos de imprensa identificados com a  esquerda, como o Brasil 247 – é: por que o país rompeu a tradição brasileira de diplomacia  amistosa com a Venezuela?

 

No entanto, cabe observar que esta visão crítica da postura oficial brasileira por parte da esquerda não é unânime e nem sempre vem acompanhada pelos mesmos argumentos. A visão da esquerda tradicional sobre a Venezuela, não só no Brasil mas em outros países da América Latina, tem evoluído ao longo dos anos, refletindo as diferentes etapas do governo bolivariano e a complexidade da crise no país. 

 

Nos primeiros anos do governo de Hugo Chávez (1999-2013), a esquerda tradicional latino-americana e internacional enxergava o chavismo como um modelo de resistência ao imperialismo e ao neoliberalismo. As políticas implementadas por Chávez faziam parte de um projeto chamado de “Revolução Bolivariana”, que buscava um caminho alternativo ao modelo econômico dominante, favorecendo a intervenção do Estado e o fortalecimento de mecanismos de integração e cooperação latino-americana, como a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América) que fez frente à ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), pois diferente da proposta norte-americana, o bloco latino-americano representava uma tentativa de integração econômica regional que não se baseava essencialmente na liberalização comercial, mas em uma visão de bem-estar social e de mútuo auxílio econômico, trazendo para o âmbito multilateral, países historicamente excluídos do sistema internacional como Cuba e Nicarágua, contando também com Antígua e Barbuda, Dominica, São Vicente e Granadinas e Bolívia como membros.  

 

Outras ações do socialismo do século XXI, representado pelo bolivarianismo venezuelano, incluíram a implementação de políticas de redistribuição de riqueza, programas sociais voltados para a redução da pobreza e a inclusão social, e a nacionalização de setores estratégicos da economia, principalmente no setor petrolífero, num esforço para aumentar o controle estatal sobre os recursos naturais do país.

 

Esses elementos, tornaram o apoio ao chavismo forte entre partidos e movimentos de esquerda, que viam a Venezuela como um símbolo da luta contra o imperialismo, em especial as influências dos EUA na América Latina nesse período. Governos de esquerda na região, como os de Lula no Brasil, Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, e Evo Morales na Bolívia, mantiveram relações próximas com Chávez, reconhecendo seu papel como um líder popular e progressista.

 

Após a morte de Chávez em 2013, e a ascensão de Nicolás Maduro ao poder, o chavismo começou a enfrentar uma série de desafios mais graves, como o colapso econômico, a queda dos preços do petróleo (base da economia venezuelana) e uma crescente instabilidade política. À medida que o governo Maduro passou a concentrar poder, reprimindo a oposição e desmantelando parte do sistema democrático, algumas figuras e movimentos da esquerda tradicional começaram a manifestar preocupações, embora muitos setores da esquerda continuassem apoiando o governo Maduro por sua retórica anti-imperialista e pelo fato de que o país enfrentava a hostilidade dos EUA e de outros governos. Porém, a crescente crise humanitária e o êxodo massivo de venezuelanos tornaram o apoio menos uniforme, levando alguns movimentos de esquerda a questionar as violações de direitos humanos, a repressão contra opositores e a corrupção generalizada no governo Maduro.

 

Nos últimos anos, especialmente diante da intensificação da crise, uma divisão mais clara emergiu dentro da esquerda tradicional em relação à Venezuela, com parte dela ainda defendendo o governo de Maduro, sob o argumento de que a crise venezuelana é fruto de uma guerra econômica conduzida por sanções internacionais e pela tentativa de desestabilização externa, liderada pelos EUA. Para esse grupo, apoiar o chavismo é uma forma de manter a solidariedade com um governo que resiste à dominação estrangeira e às políticas neoliberais. No entanto, outro setor da esquerda, tanto na América Latina quanto fora dela, tem criticado abertamente o regime de Maduro, destacando o autoritarismo, a má gestão econômica e as graves violações de direitos humanos. Intelectuais e ativistas de esquerda, como o uruguaio Pepe Mujica e figuras ligadas a movimentos progressistas, passaram a reconhecer os problemas estruturais do governo venezuelano, embora também critiquem as sanções externas como um fator agravante da crise.

 

Após o pleito de julho deste ano, a esquerda tradicional está ainda mais dividida em relação à Venezuela. De um lado, há os que veem o chavismo como uma resistência necessária ao imperialismo e à intervenção estrangeira,  mantendo, portanto, o apoio ao governo Maduro. De outro, há uma crescente parcela que reconhece a deterioração democrática e os abusos contra os direitos humanos, sendo mais crítica e até mesmo se distanciando do regime. Nesse último campo pode se enquadrar a postura do governo de Gabriel Boric, no Chile, que afirmou ter havido fraude nas eleições venezuelanas. Essa divisão reflete a complexidade da situação da Venezuela  e a dificuldade de conciliá-la com os ideais históricos da esquerda.

 

Dissidências na esquerda brasileira e visões críticas 

 

As dissidências na esquerda brasileira emergem de visões distintas sobre temas cruciais como a democracia, o papel do Estado e as políticas internacionais, particularmente em relação à América Latina. Para aprofundar essa discussão, entrevistamos os professores da Universidade Federal do ABC (UFABC)  Gilberto Maringoni e Igor Fuser, dois especialistas em política venezuelana. Ambos são intelectuais respeitados no campo das relações internacionais, que  apresentam perspectivas divergentes sobre a condução do regime venezuelano e suas implicações para a esquerda brasileira. Explanaremos a seguir algumas considerações centrais que os dois professores realizaram, mas para melhor entendimento dos argumentos, recomendamos enfaticamente a leitura das entrevistas na íntegra, que também publicamos no OPEB. O link se encontra aqui anexado.

 

Gilberto Maringoni, doutor em História Social, reconhece as complexidades do regime de Nicolás Maduro e enfatiza as contradições internas, tanto do governo venezuelano quanto das respostas da esquerda brasileira, especialmente do governo Lula. Para Maringoni, há evidências suficientes para questionar a transparência do processo eleitoral na Venezuela, mas ele também aponta o contexto de cerco econômico e sanções internacionais, lideradas pelos Estados Unidos, que exacerbaram a crise política e econômica. Maringoni sugere que o debate na esquerda brasileira não deve ignorar essas influências externas, embora reconheça que o comportamento do governo Maduro se distancia dos princípios democráticos que deveriam guiar a esquerda.

 

Por outro lado, Igor Fuser, doutor em Ciência Política, apresenta uma crítica ainda mais contundente ao governo venezuelano, argumentando que o regime de Maduro se consolidou como uma ditadura civil-militar. Fuser é categórico ao afirmar que a fraude eleitoral é inegável e que o governo venezuelano se mantém no poder por meios autoritários. Para ele, o apoio de setores da esquerda brasileira (como os dirigentes do PT) a Maduro compromete sua credibilidade, tanto no cenário nacional quanto internacional, ao endossar práticas antidemocráticas que contradizem os valores históricos dos governos de esquerda ou centro-esquerda, que se pautavam na “vigência das práticas democráticas”, especialmente na vigência do voto popular.

 

Ambos os entrevistados concordam que as divisões na esquerda brasileira em relação à Venezuela têm implicações profundas para a política externa do Brasil. Para Maringoni, a posição errática do governo brasileiro em relação à Venezuela enfraquece sua diplomacia e gera desconfiança em suas relações regionais, pois “de uma diplomacia presidencial, vista em mandatos anteriores do presidente Lula, passamos a uma diplomacia declaratória, na qual muitas vezes as palavras não correspondem aos atos”. Fuser, por sua vez, acredita  que a ‘“apressada decisão dos dirigentes do PT de endossar as eleições venezuelanas como legítimas só contribui para fragilizar a posição de Lula nos cenários nacional, regional e global”, especialmente ao considerar o papel que o Brasil tenta desempenhar como mediador de conflitos regionais.

 

Essas dissidências na esquerda brasileira refletem um debate mais amplo sobre os rumos da esquerda global, que se vê dividida entre a defesa da soberania nacional e o compromisso com princípios democráticos. Maringoni e Fuser, apesar de suas divergências, convergem na crítica à condução da política externa brasileira, argumentando que ela deveria ser mais coerente com os valores históricos da esquerda, ou seja, guiada pelos princípios da autodeterminação dos povos, da não intervenção em assuntos externos e da democracia. Para Maringoni, a intervenção de potências estrangeiras é um dilema central: “Gostaria que o Brasil se contrapusesse de forma mais clara a esse tipo de política, especialmente em um momento de avanço da extrema-direita no continente. Caso contrário, nossa diplomacia seguirá rumo à decadência”. 

 

A pluralidade de opiniões dentro da esquerda, representada por esses dois intelectuais, revela o desafio de alinhar visões progressistas em um cenário internacional cada vez mais polarizado e marcado por crises políticas como a da Venezuela.

 

Considerações Finais 

 

A partir das considerações feitas ao longo do artigo, é possível observar que a política externa  do terceiro governo de Lula para a  Venezuela  teve  considerável inflexão, se comparada àquela realizada pelos governos petistas anteriormente. O Brasil tem defendido uma aproximação baseada no diálogo respeitoso, que contrasta com a abordagem adotada durante o governo de Jair Bolsonaro. O restabelecimento das relações diplomáticas marca um esforço do Brasil para reintegrar o país vizinho na agenda regional, enfatizando a importância da cooperação e da estabilidade na América do Sul. Entretanto, os recentes desafios abrangendo a situação  política na Venezuela, desde  o impedimento da candidatura de Corina Yoris para as eleições presidenciais, até a não apresentação das atas que comprovariam a vitória de Maduro nas eleições, impuseram desafios às  relações bilaterais. O relacionamento amistoso entre Brasil e Venezuela foi alterado pela nova avaliação que a diplomacia brasileira faz da situação política venezuelana, o que levou à reação do governo de Maduro. Assim, diversas críticas foram feitas ao Brasil, incidindo especialmente na alegação de sua “arrogância” em interferir nos assuntos internos da Venezuela, revelando a defesa enfática que o país vizinho faz   da legitimidade do processo eleitoral e da soberania nacional. Cada vez mais é possível notar a insatisfação das mídias de esquerda em relação às atitudes do presidente Lula, entendidas como incoerentes, trazendo à tona debates sobre a efetividade da estratégia adotada pela política externa brasileira. 

 

Talvez, com um distanciamento cronológico maior, seja possível promover uma análise precisa sobre as motivações da inflexão promovida pelo governo brasileiro. Eleito a partir de uma frente ampla composta por forças políticas heterogêneas, Lula, no terceiro mandato, pode ter avaliado conjuntamente com seus assessores que a defesa do conceito de democracia, no Brasil ou fora dele, é mais importante do que a preservação das relações amistosas com o regime bolivariano na Venezuela. Não nos parece que a preocupação central seja agradar o campo da direita liberal que, receoso da vitória da extrema-direita, embarcou no apoio a Lula, em 2022. Afinal, mesmo jornais representativos da direita liberal, como O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo continuam a manter, em suas linhas editoriais, ressalvas quanto às ações brasileiras, sendo impossível por parte do governo externar um comportamento que fosse defendido por esses veículos. Para isso, o país precisaria tomar medidas incompatíveis com os preceitos constitucionais que regem a política externa brasileira.  A motivação do governo Lula para alterar a sua postura pode estar centrada nas alterações de rumos do próprio regime bolivariano, que tem dado vazão às alegações de falta de compromisso com a democracia. 

 

A inflexão do governo brasileiro e o não reconhecimento da legalidade das eleições venezuelanas não serviram para amenizar as críticas que o campo da direita faz da atuação internacional do Brasil. A direita e a extrema-direita continuam a instrumentalizar a discussão sobre o país vizinho para atacar o governo, e particularmente o presidente Lula. 

 

Por fim, o que fica evidente é que as divergências na esquerda brasileira sobre a Venezuela refletem não apenas tensões internas, mas também um dilema mais amplo que envolve a definição de valores democráticos e a atuação do Estado no contexto internacional. As entrevistas realizadas com Gilberto Maringoni e Igor Fuser destacaram as nuances das discussões sobre a legitimidade do regime de Maduro e a posição do Brasil como mediador regional. Ambas as entrevistas, que trazem visões de professores que entendem profundamente a gênese da crise venezuelana, contribuem para a reflexão acerca da complexidade da situação, auxiliando na compreensão acerca da influência de fatores externos para o desencadeamento dos fatos. Dessa forma, podemos concluir que no contexto de crescente polarização e ascensão da extrema-direita, valorizar princípios constitucionais sempre defendidos pela  esquerda como a autodeterminação dos povos e  a democracia, é fundamental para enfrentar os desafios políticos do continente. 

 

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