Os limites do Brasil no BRICS



Ano V, nº 88, 07 de novembro de 2024


Por Audrey Andrade Gomes, Bruno das Chagas Ramos e Ester Gonzalez de Souza (Imagem: Sergey Bobylev / brics-russia2024.ru host photo agency.)


Entre os dias 22 e 24 de outubro aconteceu a 16ª Cúpula do BRICS. Realizado em Kazan, na Rússia, sem a presença do presidente Lula, o tema do encontro era “Fortalecendo o multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais justos”. Na reunião, ficaram claras as dificuldades do Brasil em administrar a expansão do grupo. A Venezuela, país da América do Sul que gostaria de ingressar no BRICS, teve sua entrada barrada por influência do Brasil.

 

As principais discussões da Cúpula em 2024

 

A cúpula realizada no mês de outubro foi a primeira com o formato estendido (incluindo Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita que ingressaram no grupo neste ano) e contou com o maior número de líderes de todas as edições. O destaque do encontro foi a participação de novos países membros e a criação da categoria de países “parceiros”, que seriam aspirantes a novos integrantes do grupo.

 

Argélia, Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Indonésia, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã são os países que foram convidados a participar do grupo, mas que atualmente são enquadrados como “Estados Parceiros” , que “[…] dá direito à participação nos fóruns multilaterais, mas em caso de divergências, a palavra final será dos integrantes plenos”. Espera-se que, apesar da heterogeneidade cada vez maior do BRICS, o grupo possa elevar o protagonismo desses Estados, possibilitando um sistema multipolar.


Em 2020, o BRICS era responsável pelo fornecimento de energia para 40% da população mundial e pelo consumo de 37% da energia global. Aumentou para 55% o fornecimento global de petróleo com a entrada do Irã, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. Com a Venezuela, esses números seriam ainda maiores e o BRICS poderia contar com países ainda mais influentes no mercado de energia. Além disso, é no subcontinente sul-americano que está a maior reserva de lítio – o “petróleo do século XXI” – do planeta. A produção e o fornecimento de combustíveis e a transição energética são pautas fundamentais para o desenvolvimento local e para a mediação dos conflitos que estão ocorrendo em alguns lugares do mundo. 


“Notamos o surgimento de novos centros de poder, de tomada de decisões políticas e de crescimento econômico que podem pavimentar o caminho para uma ordem mundial multipolar mais equitativa, justa, democrática e equilibrada.” é o que diz o sexto item da Declaração de Kazan. A busca por uma nova ordem global multipolar que possa reorganizar as trocas econômicas entre os países, remanejar a distribuição de riqueza e promover desenvolvimento são alguns dos objetivos do BRICS expostos na declaração. 


Para o Brasil, o fortalecimento do grupo pode trazer alguns ganhos, o país se beneficia de participar de um grupo que busca pautar reformas no sistema financeiro e monetário e que abriga uma oferta abundante de recursos, fundamentais para preparar-se para as crises ambiental e climática que já causam impactos significativos em todo o mundo.


Após o início da guerra entre Ucrânia e Rússia, este país euro-asiático se tornou o com maior número de sanções impostas pelos EUA e pela UE, mas não teve as perdas que o bloqueio esperava, em parte porque China e Índia se recusaram a interromper seus intercâmbios com a Rússia – parte das exigências das potências ocidentais.


A Declaração de Kazan, assinada na 16ª cúpula dos BRICS, abordou questões de segurança global, destacando o papel central da ONU e a importância de uma abordagem multilateral para a resolução de conflitos. O documento propõe que haja algum tipo de reforma do Conselho de Segurança da ONU, para que ele possa se tornar mais representativo e eficiente na promoção da paz, o que, para o BRICS, seria fundamental para o equilíbrio de poder. Entretanto, não fica claro o que seria reformado e como funcionaria a entidade depois disso.


Outro ponto crucial na declaração diz respeito à segurança, com o BRICS expressando preocupação com conflitos em várias regiões, incluindo o Oriente Médio e a Ucrânia. A declaração menciona o cessar-fogo e a proteção de civis, defendendo uma solução de dois estados conforme o direito internacional, no caso do conflito israelense-palestino.


A atuação do Brasil no BRICS e os olhares internacionais


A adesão de novos membros ao BRICS, desde o ano passado, têm colocado o Brasil em uma situação desconfortável. Primeiro, sabe-se que não era interesse do Brasil que os BRICS fossem expandidos, pois isso significaria uma diluição de poder para o país, entretanto, as posições de China e Rússia prevaleceram quanto à expansão em 2023. Depois, o país que o Brasil tinha mais interesse que fizesse parte do grupo expandido – visando manter algum equilíbrio regional – era a Argentina, o que foi inviabilizado pela eleição de Javier Milei. Ademais, após a entrada do Irã no grupo, em um contexto no qual já é crescente a contraposição entre China e Rússia com os EUA e seus aliados, cresceram as preocupações de que o grupo pudesse se tornar anti-ocidental, devido ao posicionamento dos países que compõem o grupo sobre os conflitos internacionais. Enquanto o Brasil tem como direção de sua política externa a promoção de um mundo multipolar, para o qual o BRICS pode contribuir, não é de interesse do país que sua participação no grupo seja lida como um alinhamento a forças anti-ocidentais. A identidade da atuação internacional brasileira tem tido como fundamento a boa relação com países de matizes distintas e níveis distintos de desenvolvimento, da periferia e do centro, o que viabiliza ao país se manter como um possível mediador internacional de conflitos e sua agenda “universalista e plural”, como destacou  o presidente Lula diante do seu discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) neste ano.


O apoio majoritário dos países do BRICS por uma reforma nos organismos internacionais, de serem a favor de reformular o sistema financeiro e monetário  internacional, além de tomarem posições contrárias a sanções – o Brasil, por exemplo, ainda possui acordos comerciais e diplomáticos tanto com a Rússia como com a Ucrânia -, leva ao BRICS a ser visto pela Europa e pelos Estados Unidos como um agente anti-ocidental e que desafia a ordem vigente, haja vista que o grupo tem se tornado cada vez mais um espaço para discussões geopolíticas. 


Outra questão que se tornou um desafio para o Brasil foi administrar a entrada de novos membros de sua própria região de origem, em especial, a Venezuela. Durante a Cúpula havia a expectativa de que a Venezuela pudesse ser um novo país “parceiro”, mas o Brasil vetou a sua entrada. De um lado, a ação de veto é coerente com a política externa brasileira que tem sido dispensada à Venezuela. O Brasil não reconheceu a re-eleição de Maduro devido à insuficiência de documentos comprobatórios, o que provocou uma deterioração das relações venezuelo-brasileiras ao longo dos últimos meses, a ponto de serem trocadas ofensas públicas entre os países. Por outro lado, o veto a um país vizinho, do Sul Global, que tem sido  – desde antes o imbróglio eleitoral – impactado por tentativas externas de intervenção e com o qual até poucos meses havia relações de amizade, tem sido criticado por alguns analistas como uma intransigência do governo Lula.

 

Desdolarização

Em seu discurso para a 16ª Cúpula do BRICS em Kazan, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reafirmou o surgimento de uma ordem multipolar no sistema internacional e destacou algo que vem sendo levantado entre os países-membros: a necessidade de um sistema de pagamentos alternativo. Em visita ao Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) em Xangai no ano passado (2023), o presidente colocou: “Toda noite, me pergunto por que é que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar. Por que é que nós não podemos fazer o nosso comércio lastreado na nossa moeda? Por que é que nós não temos o compromisso de inovar?” 

         Ao tratar sobre este assunto em videoconferência para a Cúpula, o presidente foi mais afirmativo:“É chegada a hora de avançar na criação de meio de pagamento alternativo para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas, mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional”. Na visão de Lula, a ordem multipolar também pode aparecer no sistema financeiro internacional através de um novo sistema de pagamentos alternativo.

         A atual ordem monetária e financeira mundial pode ser brevemente resumida no uso do dólar como arma geopolítica pelos EUA, isto é, os EUA utilizam a hegemonia do dólar como ferramenta para alcançar seus próprios interesses e como uma “arma” para “punir” aqueles que se opõem aos objetivos ou dificultam seu caminho – como por exemplo a imposição de sanções financeiras. Além disso, a diversificação monetária pode diminuir a sujeição a volatilidade do dólar DING (2024).

Somado o contexto acima com a nova posição do Sul-Global, “que deixou de ser objeto de disputa política e passou a ser um sujeito político e econômico que exige sua posição no mercado mundial.” (LAZZARATO, 2023), temos o surgimento e intensificação de discussões sobre arranjos alternativos ao dólar e ao sistema de pagamento ocidental dentro do BRICS, o qual tem como novos objetivos a formação de um novo sistema de pagamentos internacionais, a diminuição da dependência da moeda norte-americana e a elaboração de uma moeda paralela (ainda que não se saiba muito sobre como fazer isso) que possa ser utilizada nas transações internacionais. É importante colocarmos que não se trata de uma ruptura completa com o sistema financeiro atual, mas sim de um caminho alternativo, ou seja, um outro meio de transação financeira. 

Essa tarefa de implementação de um sistema financeiro alternativo não será uma tarefa fácil para o BRICS. Desafios políticos e técnicos (relacionados à organização) estão presentes nesta formulação de arranjos alternativos. Além disso, é uma tarefa também relacionada à presidência do NDB, cujo cargo atual é ocupado por Dilma Rousseff. A atual presidente também posiciona-se contra a hegemonia do dólar e seu uso como “arma” pelos EUA, assim como reiterou em seu discurso na Cúpula: “A complexa situação geopolítica é acrescida, ademais, pelo uso do dólar como uma arma propriamente de alteração das condições de vida das populações e que afetam também a base do sistema financeiro internacional, que é a confiança e a integridade”. Importante destacarmos que Dilma reuniu-se com Vladimir Putin no dia 22 de outubro (2024) para discussão de alternativas ao atual sistema financeiro e que o presidente da Rússia indicou Dilma Rousseff para estender seu mandato como presidente do NDB.

 

Referências 

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