Cúpula do Rio: os avanços da presidência brasileira do G20

Ano V, nº 90, 04 de dezembro de 2024

Gustavo Botão e Tuany Nascimento (Imagem: Ricardo Stuckert/ Agência Brasil) 


A Declaração da 19ª Cúpula de Líderes do G20, no Rio de Janeiro, quebrou um jejum de dois anos sem consenso entre os membros do grupo e marca uma importante vitória diplomática brasileira em meio a um contexto internacional de guerras e de disputas geopolíticas e geoeconômicas.


Encerrou-se, no dia 19 de novembro, a 19ª Cúpula do G20, presidida pelo Brasil, que conquistou avanços em temas caros para o país, como combate à fome, inclusão social, combate ao racismo, equidade de gênero, desenvolvimento sustentável e reforma da governança global. Além da Cúpula de Líderes, que chegou a um consenso após um jejum de dois anos, a presidência brasileira conseguiu realizar um evento inédito, o G20 Social, que deu voz à sociedade civil e articulou pela primeira vez os diversos grupos de engajamento existentes no G20.


Cúpula Social endossa as pautas prioritárias da Presidência Brasileira no G20


Para além da tradicional Cúpula de Líderes do G20, este ano aconteceu pela primeira vez a Cúpula do G20 Social, uma inovação da Presidência Brasileira à frente do G20 que buscou integrar a sociedade civil às discussões da Trilha de Finanças e da Trilha Sherpa — que, até então, sempre tiveram as portas fechadas para organizações sociais. Como o próprio nome diz, a Trilha Financeira diz respeito às questões que o G20 já debate desde quando era apenas um fórum ministerial e que estiveram na origem da sua elevação a fórum de chefes de Estado e Governo no contexto da crise financeira de 2008. Já a Trilha Sherpa se encarrega de todos os demais temas não financeiros, que ao longo do tempo foram sendo incorporados à agenda do G20.


Ao longo do ano foram realizadas diversas reuniões, dentre as quais se destaca a sessão inédita de 07 de julho que promoveu o encontro entre os treze Grupos de Engajamento (GE) com a Trilha de Sherpas, onde puderam entregar documentos com recomendações da sociedade civil. Os communiqués de cada Grupo de Engajamento podem ser lidos aqui. Também ao final de julho, representantes dos GEs puderam entregar aos Deputies (vice-ministros) da Trilha de Finanças e (vice-governadores) dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento demandas para um sistema financeiro mais justo, como a reforma da governança global e a taxação das grandes fortunas. Cabe ressaltar que ambos os encontros, pensados para que a sociedade civil pudesse influenciar de alguma forma o teor das declarações oficiais, eram impensáveis antes dos esforços criados dentro do G20 Social.


Os movimentos sociais e os Grupos de Engajamento trabalharam para elaborar uma Declaração Final a ser lançada durante a cerimônia de encerramento da Cúpula. Entre os dias 14 e 16 de novembro, a Cúpula Social, sediada na região central do Rio de Janeiro, contou com ampla participação popular. Cerca de cinquenta mil pessoas passaram pelo espaço do Boulevard Olímpico. Para garantir a autonomia da sociedade civil, foram realizadas 271 atividades autogestionadas pelos movimentos sociais durante a Cúpula Social e três plenárias sobre eixos principais do G20 — combate à fome, à pobreza e à desigualdade; desenvolvimento sustentável e reforma da governança global.


A Declaração Final foi entregue ao presidente Lula, para que pudesse ser lida para os líderes mundiais durante a Cúpula de Chefes de Governo e Estado nos dias 18 e 19 de novembro. No documento, o combate à fome, à pobreza e a desigualdade aparece como imperativo máximo, simbolizado pelo lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Ademais são elencadas como prioridades a necessidade de reforma da governança global, de justiça fiscal, de promoção da democracia e, também, a defesa pela centralidade do trabalho decente nos marcos da OIT. Por fim, a Cúpula Social reivindica o enfrentamento às mudanças climáticas a partir do viés norteador da transição justa “como processo de transformação socioeconômica para um modelo sustentável”. A declaração ressalta que essa transformação precisa enfrentar a exclusão social, a pobreza energética e o racismo ambiental, e garantir condições equitativas para trabalhadores e trabalhadoras, pessoas negras e comunidades vulneráveis.”


Ainda durante a Cerimônia de Encerramento, a ausência do presidente sul-africano gerou preocupação quanto ao compromisso da África do Sul em dar continuidade ao legado do G20 Social. No entanto, o ministro das Relações Exteriores Sul-Africanas, Ronald Lamola, reafirmou que a África do Sul dará continuidade à iniciativa brasileira: “Aplaudimos esta iniciativa, esta ideia inovadora da participação de grupos sociais e das sociedades civis no trabalho do G20. A África do Sul aprenderá com vocês, com sua experiência e com seus desafios”. Lamola também recomendou ao G20 que integre oficialmente o G20 Favelas às discussões principais em 2025, iniciativa que surgiu ao longo de 2024 para dar espaço às vozes das favelas no G20. 


O governo tem encarado o G20 Social como uma referência positiva a Presidência Brasileira dos BRICS e para a COP 30, que são os próximos grandes eventos multilaterais a serem realizados sob a presidência do Brasil em 2025. Não por acaso, o encerramento bem-sucedido da Cúpula Social do G20 representou um avanço  diplomático para a Presidência Brasileira, que conseguiu mobilizar a base social em defesa das principais pautas propostas pelo governo Lula aos demais líderes do G20 em 2024.


Inclusão social e combate à fome e à pobreza


O lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza foi o principal legado da Presidência brasileira para o G20 em 2024, com o objetivo de erradicar a fome no mundo. Trata-se de uma “abordagem inovadora para mobilizar financiamento e compartilhamento de conhecimento, a fim de apoiar a implementação de programas de larga escala e baseados  em evidências, liderados e de propriedade dos países, com o objetivo de reduzir a fome e a pobreza em todo o mundo”. Podem aderir à Aliança não só os países membros do G20, como quaisquer países, Organizações Internacionais, Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, centros de conhecimento e instituições filantrópicas. Ao todo, foram 148 adesões à Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, das quais 82 foram feitas por Estados. 


Javier Milei, presidente argentino conservador e aliado de Donald Trump, demonstrou resistência à adesão da Aliança, mas, ao final, acabou cedendo. A explicação da Casa Rosada para a adesão de última hora, no entanto, é a de que “a desigualdade econômica resulta das escolhas livres dos indivíduos, é tudo menos injusta” e de que o capitalismo seria “o único sistema moralmente desejável” para erradicar a pobreza. Ou seja, a Argentina de Milei aderiu à Aliança, mas completamente em desacordo com os princípios que ela propõe.


Brasil encerra a Cúpula de Líderes com um consenso diplomático histórico


Com o encerramento da Cúpula Social, teve início a Cúpula de Líderes e Chefes de Estado, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em um contexto internacional marcado por conflitos geopolíticos, guerras, desafios climáticos e pela crise do multilateralismo, agravada pela ascensão da extrema direita no mundo, a elaboração de uma Declaração Final tornou-se uma tarefa bastante difícil. Entre os chefes de Estado, Vladimir Putin foi o único a não comparecer, enviando em seu lugar Sergei Lavrov, Ministro das Relações Exteriores da Rússia. Mesmo com a presença da maioria dos líderes, na “foto de família” do G20, para ilustrar o lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, Joe Biden, Giorgia Meloni e Justin Trudeau ficaram de fora. Teriam se atrasado após uma reunião, ou muito possivelmente porque não queriam aparecer na mesma foto oficial que Lavrov, já que chegaram ao local poucos minutos depois. Desde 2021, com o início da Guerra entre Rússia e Ucrânia, não era feito um retrato do grupo reunido. 


A Declaração Final saiu após muito trabalho de negociação conduzido pelo corpo diplomático brasileiro. Javier Milei, presidente argentino, demonstrou resistência a alguns pontos que estavam sendo negociados, como os que defendiam a igualdade de gênero e a taxação dos super-ricos. Além disso, houve pressão por parte dos países europeus para que fosse reaberta a negociação do texto, mais precisamente sobre o trecho que versava sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. No entanto, o governo brasileiro resistiu à pressão pela reabertura e somente duas palavras foram acrescentadas à Declaração Final. 


O texto condena o uso da força nos conflitos e guerras em curso no mundo e reafirma o princípio da Carta da ONU de que “todos os Estados devem se abster da ameaça ou uso da força para buscar aquisição territorial contra a integridade territorial e soberania ou independência política de qualquer Estado”. Em relação à Faixa de Gaza e à escalada no Líbano, os líderes expressaram “profunda preocupação com a situação humanitária catastrófica” e reiteraram “o direito palestido à autodeterminação (…) com a visão da solução de dois Estados”. O texto pede ainda por um “cessar-fogo abrangente em Gaza”, mas não enfatiza a necessidade de que tenha fim o conflito, tampouco condena as ações desumanas perpetradas por Israel.


Quanto ao parágrafo sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, foi acrescentada, após insistência dos países do G7, a palavra “especificamente” nos momentos finais de negociação para que o parágrafo não fosse interpretado como uma crítica a Israel. O trecho afirma que “o sofrimento humano e os impactos negativos adicionais da guerra no que diz respeito à segurança alimentar e energética global, estabilidade macrofinanceira, inflação e crescimento”. O texto não pede por um cessar-fogo, mas saúda “todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiam uma paz abrangente, justa e duradoura (…)”.


Combate ao racismo e promoção da igualdade racial e da equidade de gênero


Pela primeira vez o combate ao racismo e a promoção da igualdade étnica e racial apareceu no conteúdo de uma Declaração Final da Cúpula do G20. A menção inédita demonstra uma evolução importante na compreensão das desigualdades estruturais causadas pelo racismo nos diferentes países, que têm impactos intergeracionais. Os Estados se comprometeram a combater a desigualdade étnica e racial ao “promover a inclusão e o empoderamento social, econômico e político de todos, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias, além de incentivar legislações, políticas e ações adequadas nesse sentido”. Mais à frente, a declaração também enfatiza o papel da cultura na promoção da igualdade racial, reconhecendo “o poder e o valor intrínseco da cultura no fomento à solidariedade, ao diálogo, à colaboração e à cooperação”.


Em relação à equidade de gênero, o texto da Declaração reafirma o compromisso de “desenvolver e implementar políticas abrangentes que desmantelem normas sociais e culturais discriminatórias, bem como barreiras legais para garantir a participação igual, plena e significativa das mulheres em nossas economias”. Além disso, encoraja “a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas” e promete promover “a participação e a liderança plenas, equitativas, eficazes e significativas das mulheres em todos os setores e em todos os níveis da economia, o que é crucial para o crescimento do PIB global”. Por fim, o trecho sobre equidade de gênero condena de todas as formas a violência de gênero contra mulheres e meninas, reconhecendo que é “preocupantemente alta nas esferas pública e privada”. O trecho é vitorioso ao considerarmos que há governos de alguns países membros do G20 cujas políticas em relação aos direitos das mulheres têm gerado preocupações, como por exemplo é o caso da Arábia Saudita e, mais recentemente, da Argentina.


Sustentabilidade e combate às mudanças climáticas


A Declaração de Líderes reconheceu que apenas 17% dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável  (ODS) da Agenda 2030 foram concluídos e que as desigualdades, sociais, ambientais e econômicas, entres os países agravam os problemas climáticos. Em seguida, o documento reafirma o comprometimento dos líderes com o multilateralismo em matéria climática, com os avanços da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima (UNFCCC em inglês), do Acordo de Paris e com a neutralização das emissões de gases do efeito estufa até a metade do século. A proteção às florestas também é observada pelos líderes, com a declaração reafirmando seu compromisso com o Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, que prevê a proteção de ecossistemas e o combate à degradação florestal até o ano de 2030.


Em relação às finanças sustentáveis, a Declaração encoraja a facilitação de acesso de países em desenvolvimento a fundos sustentáveis por parte de Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (BMDs) e fundos verdes. O maior acesso desses países ao crédito está inserido nas discussões sobre a reforma da arquitetura financeira global, com a Força Tarefa para Mobilização Global contra as Mudanças Climáticas, uma iniciativa apresentada pelo Brasil, sendo lançada para reforçar o financiamento climático aos países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo.


A Declaração também encoraja as discussões na COP29, que ocorreu entre os dias 11 e 22 de novembro em Baku, Azerbaijão, ao reconhecer a necessidade de “ampliar rápida e substancialmente o financiamento climático de bilhões para trilhões” visando alcançar um “resultado bem-sucedido do Novo Objetivo Quantificado Coletivo em Baku”. Esses termos deram um forte sinal para um acordo de financiamento climático mais ambicioso.


Reforma da governança global


A Declaração pede por uma reforma do Conselho de Segurança da ONU que adeque o órgão às necessidades do Século XXI e o torne mais “representativo, inclusivo, eficiente, efetivo, democrático e responsável” e que conte com a participação de países de regiões do mundo sub-representadas, como a África, Ásia-Pacífico, América-Latina e Caribe. O documento também pede o fortalecimento do Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC) por maior engajamento com instituições financeiras internacionais e fóruns para cooperação internacional. Quanto à crise que há anos permeia a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Declaração enfatiza a necessidade de assegurar um sistema comercial multilateral baseado em regras, não-discriminatório, justo, aberto, inclusivo, sustentável e transparente para permitir um ambiente favorável aos fluxos de comércio e de investimento.


Os líderes também destacaram a necessidade de tributar progressivamente os “indivíduos com patrimônio líquido ultra-alto” para diminuir desigualdades, fortalecer a sustentabilidade fiscal, promover crescimento sustentável e inclusivo e facilitar o cumprimento dos ODS. Essa tributação deve, de acordo com a declaração, respeitar a soberania dos países e ser amparada por cooperação internacional para troca de boas práticas e estabelecimento de mecanismos anti evasão fiscal.


A Declaração endossa o Roteiro do G20 para Bancos Multilaterais de Desenvolvimento Melhores, Maiores e Mais Eficazes, lançado na Cúpula de Nova Délhi de 2023, que apresenta recomendações e ações para BMDs para aprimorar suas estruturas, abordagens operacionais e capacidades financeiras para apoiar países de menor desenvolvimento relativo para o cumprimento dos ODS. O aumento da capacidade de financiamento do Banco Mundial para países em desenvolvimento e a criação de um 25º assento no conselho executivo do FMI para países da África Subsaariana são vistos positivamente no documento. 


Nesse sentido, os líderes também congratulam “o marco histórico da ambição global de 100 bilhões de dólares de contribuições voluntárias (em Direitos Especiais de Saque ou equivalente) em promessas para os países mais necessitados” e afirmam que continuarão “a convidar os países que estejam dispostos e legalmente aptos a explorar a canalização de Direitos Especiais de Saque (DES) para os BMDs, respeitando o status de ativo de reserva dos créditos denominados em DES resultantes e garantindo sua liquidez, a fim de fortalecer a capacidade financeira dos BMDs para apoiar os ODS e enfrentar os desafios globais, inclusive as metas da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza”. No que diz respeito à dívida de países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo, o documento reafirma seu apoio à Mesa Redonda sobre a Dívida Soberana para promover um entendimento comum sobre medidas de reestruturação das dívidas entre entes credores privados, multilaterais e países devedores.


O documento reconhece as oportunidades geradas pela Inteligência Artificial (IA) e seus riscos, afirmando a necessidade da criação de marcos regulatórios pró-inovação por meio de uma cooperação internacional. Os líderes reafirmaram os princípios de IA do G20 e da Recomendação da UNESCO sobre Ética para IA.


O que podemos esperar do futuro do G20


A presidência brasileira do G20 encerrou com a passagem do mandato para a África do Sul, hoje governada por Cyril Ramaphosa, que promete dar continuidade às discussões de interesse do Sul Global no Grupo. A África do Sul presidirá o G20 no ano em que o fim do Apartheid completa 30 anos e terá como eixos principais a solidariedade, a equidade e o desenvolvimento sustentável.


Ramaphosa enfatizou que prosseguirá com o G20 Social e que manterá como prioridade os temas de reforma da governança global, da taxação dos super-ricos e de alívio da dívida soberana. Também adotará o modelo de “consenso amplo” utilizado pela presidência brasileira para fechar a Declaração Final. A estratégia virá a calhar, pois as negociações do ano que vem prometem ser ainda mais complicadas com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, devido à sua conhecida aversão ao multilateralismo. 


Assim, os bons resultados vistos no G20 do Brasil podem ter sua continuidade e implementação dificultadas  pelo retorno de Trump à presidência dos EUA a partir de 20 de janeiro de 2025. Seus ataques ao multilateralismo e a países-membros importantes do G20, especialmente em relação  à China, podem frear possíveis avanços nas discussões do Grupo durante a presidência sul-africana. Além disso, o quadriênio de presidências do G20 comandado por países do Sul Global iniciado em 2022 (2022-Indonésia, 2023-Índia, 2024-Brasil, 2025-África do Sul) se encerra em 2025, com a África do Sul passando o bastão para a presidência dos Estados Unidos em 2026.


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