Ano VI, nº 96, 06 de março de 2025
Por Ismara Izepe de Souza e Bruno Fabricio Alcebino da Silva
(Imagem: Pixabay)
A ascensão da extrema-direita no Brasil, nos últimos anos, veio acompanhada de recorrentes tentativas de alterar a narrativa sobre a ditadura militar (1964-1985). Se no período imediato à redemocratização do país, na década de 1980, se evidenciou junto à sociedade brasileira a herança negativa deixada pelos militares, a partir do governo Bolsonaro, junto às constantes ameaças à democracia, se acentuaram as investidas para promover uma imagem positiva daquele período. As polêmicas que envolvem o inegável sucesso de “Ainda Estou Aqui” se constituem em um exemplo eloquente disso. O filme retrata, sob a perspectiva de Eunice Paiva, o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime autoritário. No dia 2 de março, o longa-metragem fez história ao ganhar o Oscar de melhor filme internacional, fato inédito para o Brasil. Entre efusivas comemorações do campo progressista e da direita moderada e a produção de fake news pela extrema-direita, o fato é que a memória sobre esse período continua sendo alvo de disputas.
A política externa parece ser exceção quando se trata das distintas narrativas sobre o regime autoritário, pois existe uma percepção quase generalizada sobre os seus acertos neste período. Nos 21 anos de governos militares, o perfil da inserção internacional brasileira se alterou bastante, não sendo possível falar de uma “política externa do regime militar”. Afinal, o alinhamento automático aos EUA promovido pelo governo de Castelo Branco (1964-1967) foi paulatinamente sendo substituído por uma política externa de teor desenvolvimentista, culminando no pragmatismo responsável do governo de Ernesto Geisel (1974-1979), que guarda, em seu caráter autônomo e altivo, similaridades com a política externa dos primeiros dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).
O Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty, tem características específicas junto à administração pública brasileira. O espírito de corpo que marca a sociabilidade entre os diplomatas fez com que a instituição preservasse uma memória positiva acerca de sua atuação durante os governos militares, veiculando a ideia de que o MRE esteve alheio aos aspectos mais abjetos da ditadura. A ideia veiculada e corroborada por estudiosos, diplomatas e imprensa foi a de que o Itamaraty continuou a pautar suas ações pelos interesses do desenvolvimento nacional, sem se deixar influenciar pelo que ocorria na política doméstica.
No entanto, na última década, pesquisas realizadas no âmbito acadêmico e àquelas que resultaram no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade demonstraram que o suposto distanciamento do Itamaraty da política doméstica e particularmente do aparato repressivo não existiu. Se a postura oficial foi a de alheamento ao que se passava no âmbito interno, nos bastidores o Itamaraty participou da engrenagem repressiva, auxiliando na vigilância e repressão de brasileiros exilados. Mas também existiu o outro lado da moeda, ou seja, diplomatas indesejados e perseguidos pelo regime ditatorial, seja por não apresentarem uma postura condizente com o perfil ideal do diplomata, ou por ameaçarem os esquemas de corrupção envolvendo militares e o alto escalão do governo, como denuncia o caso de José Pinheiro Jobim.
Entre a conivência e o apoio
Inspirada nas experiências do Chile e Argentina, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída no Brasil durante o governo da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) com o objetivo de investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar (1964-1985), sendo a própria ex-presidenta uma sobrevivente que foi presa e torturada durante o regime. Entre suas contribuições mais relevantes, a CNV dedicou um capítulo específico aos crimes cometidos no exterior com o apoio do Ministério das Relações Exteriores (MRE), demonstrando o envolvimento direto do Itamaraty na repressão transnacional e na perseguição de opositores políticos fora do Brasil. O relatório final, divulgado em 2014, fornece provas documentais e testemunhais fundamentais para o reconhecimento institucional dessas violações, reforçando a necessidade de preservação da memória histórica e responsabilização dos agentes envolvidos.
O Centro de Informações do Exterior (CIEX), criado em 1966, foi um dos principais mecanismos de espionagem e repressão utilizados pela ditadura militar brasileira contra opositores do regime que haviam deixado o país devido à perseguição política. Vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o CIEX foi um centro clandestino que desempenhou papel crucial no monitoramento de exilados políticos brasileiros e na cooperação repressiva com outros regimes autoritários do Cone Sul, especialmente no âmbito da Operação Condor. Pesquisadores brasileiros da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Instituto Norueguês de Relações Internacionais, realizaram pesquisas que resultaram em um banco de dados com cerca de 8 mil documentos que demonstram que o Itamaraty monitorou mais de 17 mil brasileiros no exterior. Apesar da diplomacia brasileira tradicionalmente se apresentar como neutra diante das políticas de segurança interna, esses documentos revelam que o Itamaraty estava diretamente envolvido na repressão, fornecendo informações detalhadas sobre atividades de exilados, dificultando a emissão de passaportes e concedendo dados estratégicos a outros serviços de inteligência (PENNA FILHO, 2009, p. 44-45).
O CIEX não operava de forma isolada. Ele era parte da Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores (CI/MRE), interligado a outros órgãos repressivos do Estado brasileiro, como o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 179). Esses centros trocavam dados sobre a localização, atividades e contatos de exilados brasileiros na Europa e na América Latina.
A existência do órgão de espionagem evidencia que o regime militar possuía um aparato repressivo sistemático e estruturado, com o Itamaraty como peça-chave na perseguição política dentro e fora do país. Segundo Balbino (2023, p. 11), o MRE não apenas colaborou com o regime militar, mas integrou-se ao aparato repressivo, fornecendo suporte logístico e burocrático para ações de vigilância e repressão.
Dentre os alvos do CIEX estavam figuras conhecidas, como o ex-presidente deposto João Goulart e o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O caso de Goulart é um dos mais emblemáticos. Documentos apontam que ele foi monitorado de perto pelo CIEX e por serviços de inteligência de países vizinhos, como Uruguai e Argentina. A preocupação do regime autoritário era que o ex-presidente estivesse articulando um retorno político ao Brasil, o que levou à sua constante vigilância e ao cerceamento de suas movimentações (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 192). Brizola, por sua vez, tornou-se alvo prioritário da espionagem brasileira no exterior, especialmente no Uruguai. Registros indicam que agentes brasileiros acompanharam suas atividades, enviando relatórios detalhados sobre suas reuniões políticas e discursos públicos (PENNA FILHO, 2009).
Outro aspecto relevante foi a repressão aos exilados de menor expressão pública, mas igualmente considerados “subversivos” pelo regime. Documentos do CIEX revelam que estudantes, artistas e sindicalistas também eram alvo de monitoramento constante. Muitos tiveram passaportes negados e foram impedidos de retornar ao Brasil, enquanto outros foram presos e entregues às autoridades brasileiras em operações conjuntas com os regimes militares da região (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 194).
O CIEX também desempenhou um papel fundamental na chamada Operação Condor, a rede de cooperação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), que permitia a troca de informações sobre exilados e facilitava sequestros e assassinatos (PENNA FILHO, 2009, p. 48-49). Segundo documentos analisados pela Comissão Nacional da Verdade, o Brasil participou ativamente desse esquema, fornecendo dados sobre refugiados políticos e auxiliando na captura de opositores nos países vizinhos (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 220).
Além disso, o apoio do Brasil ao golpe no Chile, em 1973, foi articulado por meio do Itamaraty e outros órgãos do aparato repressivo. O embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto desempenhou um papel crucial nesse processo, fornecendo informações estratégicas e apoio logístico aos militares brasileiros que planejavam a deposição de Salvador Allende. Segundo Roberto Simon (2021), o Brasil, sob o comando do presidente militar Emílio Garrastazu Médici, não apenas auxiliou os conspiradores chilenos nos meses que antecederam o golpe, mas também contribuiu ativamente para consolidar o regime ditatorial de Augusto Pinochet.
Assim, o CIEX representou um dos pilares da repressão política no exterior, demonstrando que a ditadura militar brasileira não limitou sua ação ao território nacional, mas expandiu sua vigilância e perseguição a nível internacional. Ao colaborar ativamente com outros regimes autoritários e ao vigiar ininterruptamente seus opositores, o CIEX contribuiu para a perpetuação de um sistema de terror que marcou a história recente do Brasil. A análise de seus arquivos e de suas atividades é essencial para compreender a extensão da repressão política no período e reforça a importância de preservar a memória histórica para evitar que tais episódios se repitam. A ditadura não é “página virada”.
Diplomatas indesejáveis
Existiu o outro lado da moeda: a repressão sofrida por muitos diplomatas que não se adequaram ao comportamento considerado ideal pela ditadura. Menor em termos quantitativos se comparada a outros ministérios, a depuração também ocorreu no MRE. Logo após o golpe militar, os ministérios foram autorizados a iniciar investigações internas para identificar suspeição ideológica e afastar os servidores críticos ao novo regime. Em 1964, o Itamaraty obteve especificidade ao poder criar uma comissão própria, sendo a Comissão de Investigação Sumária (CIS) conduzida por Vasco Leitão da Cunha, diplomata escolhido por Castelo Branco para chefiar o MRE. A CIS resultou em 97 diplomatas investigados e 20 exonerados (CARMO, 2018, p. 60).
Em 1968, no auge da repressão política interna, uma nova comissão foi formada, incidindo sobre condutas consideradas desviantes e recomendando a exoneração dos homossexuais. Segundo Gessica Carmo, houve a obrigatoriedade de exames médicos para atestar hábitos e ações íntimas, colocando esses diplomatas em condições vexatórias (2018, p. 65). Outros foram afastados por serem boêmios demais e por terem comportamentos avaliados como inadequados. O caso mais conhecido talvez seja o de Vinicius de Moraes, que foi afastado e posteriormente integrado aos quadros do Ministério da Educação e Cultura.
Cabem também algumas considerações sobre o diplomata José Pinheiro Jobim, vítima do regime militar por esboçar a intenção de registrar um esquema de corrupção relacionado à construção da Usina de Itaipu. No início da década de 1960, Jobim foi designado pelo presidente Goulart para conversar com autoridades paraguaias sobre o aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná. O projeto saiu do papel durante os governos militares, mas os valores empenhados na suntuosa obra foram absurdamente maiores do que inicialmente se previa. Em 1979, já aposentado, Jobim afirmou junto a um círculo pequeno de conhecidos que estava preparando um livro sobre as irregularidades na construção da hidrelétrica binacional. Dias depois seu corpo foi encontrado e mesmo com indícios da farsa montada, a versão oficial foi a de suicídio. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, ao reavivar o caso, reconheceu que o regime foi responsável pela tortura e a morte de Jobim. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 2018, determinou que sua certidão de óbito fosse retificada, reconhecendo a morte violenta causada pelo Estado brasileiro.
O MRE entre a política de governo e a de Estado
Servidores de carreira do MRE contribuíram com o aparato repressivo através de uma estrutura burocrática de proporções grandiosas, no entanto, muitos deles foram vítimas das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar. Os casos aqui apresentados evidenciam que as explicações polarizadas, que apontam toda a diplomacia brasileira genericamente como vítima ou como partícipe do aparato repressivo, não dão conta de uma realidade complexa e multifacetada.
Sendo assim, não se trata de demonizar ou enaltecer de forma exagerada o MRE. Como ocorre em qualquer instituição, os diplomatas são suscetíveis a assimilar interesses provenientes de espectros políticos e ideológicos distintos, havendo certamente entre eles os que ficaram satisfeitos em contribuir com a repressão e os que se indignaram e se arriscaram a combater as arbitrariedades cometidas pelos militares.
O Itamaraty é reconhecido internacionalmente por formar excelentes quadros que já demonstraram capacidade de representar com maestria os interesses brasileiros. Nesse sentido, a instituição tem seus méritos na seta do tempo, ao preservar algumas tradições, como a defesa do multilateralismo e da solução pacífica de controvérsias. Mas junto às ações próprias de uma política de Estado caminham decisões condizentes com as prioridades dos governos de plantão, o que comprova que a política externa é também uma política de governo. A ideia de que o Itamaraty é uma instituição pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável diante das evidências.
Referências
BALBINO, Camila Estefani de Andrade Simphrônio. O Itamaraty e suas conexões com o aparato repressivo durante a Ditadura Militar (1964-1985). Trabalho de Conclusão de Curso (Relações Internacionais) – Universidade Federal de São Paulo, Osasco, 2023.
CARMO, Gessica Fernanda do. Os soldados de terno? Ruptura, crise e reestruturação da diplomacia brasileira (1964-1969). Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, SP, 2018.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.
PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty nos anos de chumbo – o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no Cone Sul (1966-1979). Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 52, núm. 2, 2009, p. 43-62.
SIMON, Roberto. O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
Ismara Izepe de Souza: Doutora (2009) e mestre (2002) em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Atua como professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenadora do GT Imprensa e Política Externa do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Bruno Fabricio Alcebino da Silva: Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Ciências Econômicas e Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).