Por Gilberto Maringoni com a colaboração de Ingrid Meirelles, Nicole Lima e João Victor Pennacchio
A irresponsabilidade do governo
brasileiro no combate ao novo coronavírus impacta fortemente a política
externa. O Brasil está se tornando o epicentro global da doença e começa a
sofrer isolamento sanitário e diplomático, mesmo entre seus vizinhos. A crise
sanitária atinge um continente que há pelo menos cinco anos sofre desaceleração
econômica
A pandemia da COVID-19 está no centro de todas as articulações entre os países da América Latina no primeiro semestre de 2020. Isso se dá não apenas no terreno sanitário, mas suas decorrências invadem as searas econômica, política, social e cultural do continente.
Embora a infecção tenha origem em esfera exterior à política, são as decisões de Estado que impactam sua difusão entre a população. É muito difícil fazer projeções gerais em um quadro de contágio em progressão exponencial. A peste moderna já fez quase meio milhão de vítimas fatais no mundo, na primeira quinzena de junho. O Brasil desponta como palco da grande tragédia sanitária global, com número de mortos que deve ultrapassar até o início de agosto a casa da centena de milhar. Bem atrás está o México, seguido pelo Peru. Todos veem seus sistemas de saúde próximos a uma situação de colapso.
Fechamento de fronteiras
Nesse quadro, países que têm obtido relativo êxito em reduzir o espalhamento da doença, como Argentina, Uruguai e Paraguai – integrantes do Mercosul – relutam em abrir as fronteiras com a maior economia da região. A opção do governo Bolsonaro – não apenas pela inação na área da saúde, bem como pela tentativa de falsificação de dados – pode relegar o Brasil a um isolamento internacional na circulação de pessoas.
A negativa em adotar medidas econômicas anticíclicas de envergadura afunda a maior economia do continente, que já vinha de cinco anos de crise. O World Economic Prospects, do Banco Mundial, divulgado em 8 de junho, prevê uma queda de 8% do PIB brasileiro em 2020, marca inédita desde 1900. A redução do crescimento da América Latina é estimada em 7,2%, a do México em 7,5% e a da Argentina em 7,3% . Em bom português, trata-se de uma depressão. O documento ainda ressalta:
A queda acentuada nos preços globais das commodities é um vento contrário à maior parte da região, em especial para os produtores de petróleo e gás, dada a queda preços globais da energia. A abrupta desaceleração dos EUA e China interromperam cadeias de suprimentos para México e Brasil e causou queda acentuada nas exportações de commodities de países como como Chile e Peru. A contração severa nos Estados Unidos no segundo trimestre afetou comércio e remessas da América Central. O turismo em regiões do Caribe e do México despencou na primeira metade do ano .
Já o World Economic Outlook, do FMI (Fundo Monetário Internacional), de abril de 2020, aponta um encolhimento do PIB da região da ordem de 5,2% neste ano e um crescimento de 3,4% em 2021. Para o Brasil, os números são respectivamente – 5,5% e 2,9%. No México, o tombo deve ser maior: -6,6% em 2020 e 2,9% ano que vem .
Problemas anteriores
O impacto do novo coronavírus acontece em economias que já apresentavam previamente sérios problemas. Em dezembro de 2019, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) lançou o documento Balanço Preliminar das Economias da América Latina e do Caribe – 2019. Antes, portanto, da crise sanitária global. Em seu resumo executivo, o documento sublinha:
Em 2019, contrastando com anos anteriores, 18 dos 20 países da América Latina, bem como 23 das 33 economias da América Latina e do Caribe, apresentam desaceleração na taxa de crescimento da atividade econômica. (…) O panorama macroeconômico recente mostra desaceleração tendencial da atividade econômica nos últimos seis anos (de 2014 a 2019), quedas do PIB per capita, do investimento, do consumo per capita e das exportações e deterioração sustentada da qualidade do emprego. Neste contexto, em 2019 as economias da América Latina e do Caribe cresceriam a uma taxa média de 0,1%. As projeções de crescimento para 2020, embora melhores do que as cifras de 2019, não são muito promissoras; o crescimento estimado dos países será de 1,3% em média.
Num quadro de retração aguda, o Mercosul foi impactado, em 24 de abril, pela decisão unilateral argentina de se retirar de suas negociações comerciais, por conta da crise potencializada pela pandemia. Num bloco que já enfrentava incertezas desde pelo menos 2015, quando os países buscavam acordos de livre comércio fora de suas fronteiras e em que o comércio Brasil-Argentina se retraia, a perspectiva é de paulatino enfraquecimento.
A materialização dessa constatação é dada pela notícia divulgada no início de junho de que, pela primeira vez em 16 anos, o Brasil deixou de ser o principal destino de exportações argentinas, cedendo a liderança à China.
Em abril, o país vizinho exportou US$ 509 milhões para os chineses principalmente em soja e carne bovina, um aumento de 50,6% ante igual mês de 2019. Para o mercado brasileiro, as exportações somaram US$ 387 milhões, queda de 57,3%. Já as importações continuaram favoráveis ao Brasil, mas os chineses encerram o mês com saldo positivo de US$ 98 milhões no comércio bilateral, e o Brasil teve déficit de US$ 132 milhões.
Embora o impacto não tenha se dado de forma significativa nas exportações brasileiras, uma luz amarela se acende. A grande vantagem com o vizinho é a qualidade da pauta comercial. O Brasil historicamente exporta produtos industrializados e semiindustrializados ao parceiro, ação beneficiada pela existência da TEC (Tarifa Externa Comum).
No que diz respeito ao acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, proposto em 2019, a imagem brasileira – em especial pelo desrespeito a acordos ambientais – tem atrapalhado as negociações. O governo francês já havia demonstrado contrariedades em 2019, devido ao não cumprimento do Acordo de Paris (2015), que visa a proteção ambiental, por parte do Brasil. O desmatamento da Amazônia aumentou consideravelmente desde o início do governo Bolsonaro. Durante esse ano, além da questão ambiental, também influenciados pelas políticas brasileiras falhas de contenção do vírus, os parlamentos da Holanda, Bélgica e Áustria têm externado críticas à ratificação do acordo.
Alinhamento automático
A política de alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos tem implicado um afastamento do Brasil das políticas de integração que marcaram a Nova República, a partir de 1985, com destaque para o período 2003-16. A alucinada diplomacia brasileira envolve agressividade para com a China, Irã, Venezuela. Mesmo assim, as tentativas de aproximação com homólogos ideológicos do presidente brasileiro ao redor do mundo se desaceleraram. O pretendido plano para a construção de uma internacional conservadora, envolvendo Donald Trump, o húngaro Viktor Orbán e o israelense Benjamin “Bibi” Netanyahu não prosperou. As políticas negacionistas, irresponsáveis e pouco civilizadas do governo Bolsonaro estão transformando o Brasil num pária global, como diversos analistas têm alertado. O presidente brasileiro não consegue sequer se aproximar dos conservadores da vizinhança, como Iván Duque (Colômbia), Sebastian Piñera (Chile) e Lacalle Pou (Uruguai).
A submissão a Washington chega ao extremo de Jair Bolsonaro ter criticado pesadamente em junho o trabalho da Organização Mundial da Saúde (OMS) na pandemia. “Os Estados Unidos saíram da OMS, e a gente estuda, no futuro, ou a OMS trabalha sem viés ideológico, ou vamos estar fora também. Não precisamos de ninguém de lá de fora para dar palpite na saúde aqui dentro”, afirmou o chefe do Executivo à imprensa. No final do mês anterior, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump já havia anunciado a saída do país da OMS, cortando repasses para o organismo.
Bolsonaro recoloca os termos da diplomacia brasileira nos marcos de um período que coincide com a Guerra Fria. O problema é que tal política não leva em conta não estarmos diante de simples relações entre dois países – Brasil e Estados Unidos -, mas sim de uma dinâmica entre um Estado periférico e um império, com lógicas globais inconciliáveis.
Num quadro de múltiplas crises, o pior caminho para qualquer país é o isolamento internacional. Não se trata de uma contingência do difícil período que atravessamos, mas parece ser uma rota deliberada escolhida pelo atual governo brasileiro. /