Por Gilberto M. A. Rodrigues com a colaboração de Isabela Montilha da Silva e Mirella Sabião.
A pauta de direitos humanos, atacada pesadamente por Jair Bolsonaro, torna-se letra morta em tempos de crise sanitária. Apesar de contar com uma eficiente rede de saúde pública – o SUS -, a irresponsabilidade oficial deixa a população a mercê da contaminação. A omissão diante da catástrofe gera descrédito e indignação e isola o país na cena global
Os direitos humanos são a vítima preferencial do governo de Jair Bolsonaro e da atual política externa brasileira (PEB) de ultradireita. Percebidos como parte do chamado “marxismo cultural” que o bolsonarismo elegeu como inimigo permanente, os direitos humanos são diariamente achacados pelo governo federal, dentro e fora do Brasil. Princípios tradicionais da PEB, incluindo os constitucionais pelos quais o Brasil deveria reger-se nas suas relações internacionais, integrantes da lista do artigo 4º da Constituição Federal, têm sido violados, retorcidos e negados. A cláusula constitucional da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais tornou-se “letra morta”, para usar um conhecido jargão jurídico. Vale lembrar que a desconstrução da PEB dos direitos humanos começou bem no início do mandato de Bolsonaro.
Com uma pauta vasta e multidimensional, o tema dos direitos humanos ganhou centralidade na PEB com a problemática da pandemia de covid-19, a partir de março de 2020. Mantida a coerência de uma PEB regressiva, vinculada a interesses ideológicos de ultradireita, e a posições subservientes ao trumpismo, a escalada negacionista e a gestão temerária do combate à pandemia da Covid-19 por parte do governo Bolsonaro alçaram o Brasil a patamar ainda mais elevado ao descrédito e à indignação internacional. Editoriais e artigos publicados no Financial Times, Guardian, New York Times, Washington Post e El País, entre outros, vêm denunciando os desmandos do governo Bolsonaro em tempos da Covid-19.
A ameaça presidencial
A prestigiosa revista britânica The Lancet, em editorial, afirmou que a maior ameaça ao Brasil no combate à pandêmica de Covid-19 é o seu presidente. A demissão de dois ministros da Saúde em pleno crescimento da epidemia convergiu com a posição assumida pelo país como novo epicentro da epidemia no mundo e o converteu numa possível ameaça à saúde global. O mais paradoxal é que o Brasil dispõe de um sistema universal de saúde – o SUS – bem estruturado e com larga experiência no combate a epidemias, com condições de enfrentar a crise sanitária, desde que não tivesse como principal obstáculo o próprio presidente da República.
Os países vizinhos da América do Sul mantêm suas fronteiras fechadas. O governo do Paraguai – visto por Bolsonaro como “amigo” – foi instado pelo governo brasileiro a restabelecer o fluxo fronteiriço, mas se recusa a fazê-lo com justificado receio de colocar em risco de contaminação e morte sua população.
Nesse cenário, toda a população brasileira encontra-se em risco real e iminente pela má-gestão da saúde (gestão temerária e criminosa) do governo Bolsonaro. Porém, há parcelas da mais vulneráveis à catástrofe sanitária em curso. Entre elas, as populações pobres e negras das periferias das cidades e as populações indígenas. Em ambos os casos, especialistas, ativistas e organizações internacionais receiam que um genocídio social e étnico esteja em curso.
Enquanto a PEB de Bolsonaro decidiu eliminar de seu léxico diplomático a palavra “gênero” (uma vez que ela se enquadra no dispositivo do ‘marxismo cultural’), em todo o mundo, há uma crescente preocupação com os impactos que a covid-19 gera para as mulheres, sendo o recorte de gênero um dos fundamentais aspectos da análise e implementação de políticas públicas na lida com a pandemia.
Recebendo um criminoso
Em meio a um turbilhão de problemas gerados pela pandemia, agravados pelas confusões e omissões presidenciais, num ambiente de emergência humanitária que pede total dedicação aos governantes, Bolsonaro encontrou espaço na sua agenda (extraoficialmente) para receber um dos maiores criminosos da ditadura, o major Sebastião Curió, tratado como “herói” pelo presidente. É particularmente grave esse encontro, tendo em vista que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por manter uma lei de anistia que confere imunidade a quem praticou crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis. O Brasil é o único país do Sistema Interamericano a manter esse tipo de lei que impede a punição de criminosos da ditadura.
Dessa forma, no campo dos direitos humanos, em período da covid-19, o cenário é devastador. Ele só não tem sido totalmente e irreversivelmente catastrófico pela ação federativa e internacional de governadores e prefeitos que se recusam a seguir os descaminhos bolsonarianos. O Supremo Tribunal Federal em decisão histórica, em abril de 2020, reconheceu a competência concorrente dos entes federativos para lidar com a pandemia, e decidir sobre medidas de isolamento social, abertura de comércio e serviços e imposição de lockdowns. Essa decisão legitima, inclusive, ações de cooperação internacional subnacional e compras de equipamentos e teses de covid-19 feitos pelos próprios governos estaduais.[2]
Ataque à OMS
Como corolário do despropósito da PEB (anti) direitos humanos, Bolsonaro ameaçou retirar o Brasil da Organização Mundial da Saúde (e por extensão da Organização Pan-americana da Saúde – OPAS). Trata-se de mera cópia de ameaça feita pelo Presidente Donald Trump, em sua sanha de deslocar a culpa pelo desastre da gestão da pandemia de covid-19 nos EUA (mais de 110 mil mortos na primeira quinzena de junho) para a OMS e, sobretudo, para a China.
Mas como já afirmou Deisy Ventura, professora titular de Ética da Faculdade de Saúde da USP e Presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais-ABRI, a grande diferença – e non sense – desse caso reside em que os EUA são um dos maiores financiadores da OMS, enquanto o Brasil é recebedor de recursos.