Por Ana Paula Fonseca Teixeira
Discurso presidencial na ONU é marcado por subserviência, mentiras e baixo nível. Consequências são desastrosas para a imagem do país.
Seguindo a tradição, o discurso do chefe de Estado brasileiro abre os debates da ONU desde 1948. A prática não se alterou na terça-feira, dia 22 de Setembro, na 75º Assembleia Geral da ONU, pela primeira vez ocorrendo em ambiente virtual. O Presidente Jair Bolsonaro iniciou seu discurso lamentando as mortes decorrentes da pandemia e afirmando que o coronavírus e o desemprego devem ser tratados com a mesma responsabilidade. Marcado por controvérsias e fake news, o discurso pautou principalmente a defesa de críticas referentes à abordagem brasileira no combate à pandemia e também à suposta “liderança na conservação de florestas tropicais”, além de abordar pontos importantes para a manutenção de sua base de eleitoral como o “combate à cristofobia” e a defesa das liberdades individuais.
Apesar de o termo cristofobia poder ser utilizado de forma legítima em consideração da perseguição religiosa aos adeptos do cristianismo em países na Ásia e no Oriente Médio, onde cristãos são minoria, esse tipo de segregação é uma das poucas que não pode ser observada no Brasil. Não há no país um sistema de perseguição estruturado, nem institucionalizado, aos cristãos, ou mais especificamente, aos evangélicos. Há porém no Brasil, um histórico, ainda crescente, de perseguição religiosa à principalmente religiões de matriz africana como o umbanda e o candomblé, como demonstra o balanço geral do Disque 100 de 2019, elaborado pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Vocação agrária
Bolsonaro afirmou que mesmo com a pandemia, a produção rural no Brasil não se paralisou e continuou “provendo para o mundo”, reforçando a vocação agrária e a relação do governo com o agronegócio. O país, que segundo o presidente é líder na conservação ambiental, estaria sendo vítima “de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal” com movimentações de instituições de “interesses escusos”. No que tange ao Pantanal, o presidente indicou que seus trágicos incêndios ocorreram de forma inevitável devido às condições de temperatura e de concentração de massa orgânica na área, mesmo que a investigação atual indique que as queimadas sejam originárias de quatro fazendas, com indícios das queimadas acontecendo a partir de intenção criminosa de acordo com imagens de satélite.
Discorrendo sobre a Amazônia, supostamente celebrando sua riqueza e os esforços do governo para sua conservação, Bolsonaro afirma que as queimadas na floresta ocorrem em áreas já desmatadas, nos mesmos lugares de forma recorrente, “onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência” além de afirmar que fomos um dos países com maior índice de conservação nos últimos tempos. O descaso e encobrimento da realidade apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro são alarmantes e, enquanto o presidente celebra, o país arde. De acordo com o levantamento do Inpe, no ano de 2020, no que concerne ao desmatamento da floresta amazônica, houve um aumento de 86% em referência ao ano 2018. O desmatamento é em maior parte ilegal e não é realizado pelos povos originários mas sim com intenção de aproveitamento da área para produção agrícola.
Acusações infundadas
O Brasil é, de acordo com o levantamento da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, o país com maior perda de floresta primária (mata intocada) no ano de 2019. A conservação que o presidente tanto endossa, não ocorre de fato.
Ainda sobre a pauta ambiental, destaca-se o ponto no qual é referenciado o desastre ambiental do derramamento de petróleo na costa brasileira em julho de 2019, afirmando que o país foi “vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano”. Um ano após o ocorrido, a origem do petróleo ainda é desconhecida, a investigação segue pela Marinha do Brasil e pela Polícia Federal, mas sem apontamentos de responsabilização oficiais. A classificação de “ato criminoso” e da suposta culpabilização venezuelana do caso, são, portanto, somente afirmações não sustentadas por evidências.
Para além do meio ambiente, Bolsonaro também afirmou que o Brasil é referência no que tange o acolhimento de refugiados, especialmente exemplificado no apoio prestado aos venezuelanos, em função da Operação Acolhida, encabeçada pelo Ministério da Defesa, que recebeu quase 400 mil venezuelanos deslocados devido à crise do país. De acordo com a página oficial do programa, somente 264 mil venezuelanos entraram e permaneceram no Brasil, não 400 mil como afirmado pelo presidente. Para mais, segundo informações recebidas pelo Ministério Público Federal, a operação teria somente 25% do orçamento disponível para 2021, e tendo previsão de encerramento ao final do próximo ano.
Já em relação aos Estados Unidos, o aceno se mostrou de forma direta no discurso somente na celebração da abordagem de Donald Trump ao conflito Israel-Palestina. Segundo o presidente, com o auxílio do presidente estadunidense, o conflito está, após 7 décadas, retomando um caminho promissor para uma solução. Embora o sinal direto tenha ocorrido em limitados momentos, o alinhamento aos EUA se faz presente continuamente ao longo do discurso através da exaltação de diversas pautas compartilhadas.
Eleições nos EUA
Considerando as eleições estadunidenses na margem do horizonte, a depender do resultado, tal relação “amigável” pode sofrer uma intensa guinada. Um exemplo disso foi a citação direta do Brasil, no primeiro debate entre presidenciáveis dos Estados Unidos, por Joe Biden em resposta à Donald Trump. Biden aponta que tomaria decisões mais firmes sobre a destruição ambiental da floresta amazônica, sugerindo até mesmo possíveis consequências econômicas Brasil caso não haja suspensão da contínua devastação se colocado à posto.
Dada a declaração de Ernesto Araújo, na Comissão de Relações Exteriores no Senado, de que os Estados Unidos podem fazer do Brasil um país melhor, percebe-se que a falta de menções ao multilateralismo no discurso de Bolsonaro, não é mero acaso, mas um sintoma da política externa subordinada aos Estados Unidos. A meta de ingresso na OCDE(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) se faz presente através da indicação da realização, ou pelo menos intenção, de reformas políticas domésticas (previdenciária, tributária e administrativa) que condizem, segundo o presidente “às práticas mundiais mais elevadas em todas as áreas”. A pretensão através dessa afirmação é também a atração de investimentos direitos, ou seja, a busca pelo suporte do capital externo, que detém posição privilegiada no cerne do bloco no poder.
Por fim, conclui-se que Jair Bolsonaro triunfa na manutenção de suas três bases de apoio ao referenciar três narrativas inventivas que condizem com os interesses de classe que o governo representa: as queimadas na Amazônia e no Pantanal, o suposto derramamento venezuelano de óleo na costa brasileira e a cristofobia.
O discurso, dado seu tom, seria cabível,numa coluna de opinião, mas não em uma representação de Estado fatídica em um momento que urge por uma resposta global. As consequências das falas de Bolsonaro à imagem internacional do Brasil, é sem dúvida, maior do que podemos pagar. Em cenário de crise mundial, o presidente não cumpre sequer seu compromisso com a verdade.
Parabéns pelo belo texto! Muito bem escrito e que retrata a postura vergonhosa, do nosso representante maior.
Amei seu texto! 😍