Por Flávio Rocha de Oliveira, Juana Lorne e Tarcizio Rodrigo de Santana Melo
Continua o desconforto das forças armadas com o presidente Bolsonaro, numa conjuntura de crise social e econômica. Chefes militares têm vindo a público explicitar divergências.
Em 24 de outubro de 2020, o Estado de S. Paulo traz uma matéria que chama a atenção para a opinião dos militares sobre a aliança entre o presidente Bolsonaro e o chamado Centrão. Segundo o jornal, as Forças Armadas não estão contestando, oficialmente ou pelas redes sociais de seus membros mais destacados – e isso vale para os generais que estão na reserva -, a aproximação do presidente com o tão criticado Centrão, ala do congresso rotulada como fisiológica.
Ao mesmo tempo, a matéria também diz que a presença do elemento fardado não resultou na tutela do comportamento presidencial. Ocorreu o contrário, e Bolsonaro não perde a oportunidade de constranger os generais e mostrar, através de atitudes públicas e espalhafatosas, que ele não pode ser controlado. Um dos exemplos foi o tratamento dado ao General Pazuello, ministro da Saúde. O presidente desautorizou publicamente o anúncio de que a pasta da Saúde iria comprar a Coronavac, a vacina chinesa que será fabricada em conjunto com o Instituto Butantã, ligado ao governo de São Paulo.
Prejuízo em imagem
Na matéria, chama atenção as declarações opostas dadas pelo General Etchegoyen e pelo ex-ministro da Defesa, Raul Jugman, sobre a aliança do governo com o setor visto como o mais fisiológico do parlamento. O primeiro disse ver com normalidade a necessidade de alianças para manter a governabilidade de um país complexo como o Brasil, e isso incluiria o Centrão. Já o segundo advertiu que as Forças Armadas teriam um prejuízo à sua imagem se passassem a ser associados a um governo específico, no caso o do presidente Bolsonaro, e não à totalidade da Nação. Ambos foram participantes de destaque no processo que marcou o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e o posterior governo do então presidente Michel Temer. Atualmente, eles tem liderado e participado de discussões acerca da Defesa Nacional em um think tank criado por ambos e são figuras frequentes em webinars do Instituto FHC, ligado ao PSDB.
Em 26 de outubro, o site Mongabay traz uma entrevista com o pesquisador João Roberto Martins Filho, feita por Peter Speetjens. Nela, Martins Filho discute a mentalidade do estamento militar em relação a região amazônica. São abordadas as visões com que as Forças Armadas, e em especial o exército, tem cultivado. Entre elas destaca-se a mentalidade de cerco que tem sido uma constante na maneira que eles tratam a região desde, pelo menos, o fim do regime autoritário. Segundo o acadêmico, compreender essa mentalidade é chave para entender as políticas do atual governo para a Amazônia.
Para Martins Filho, a nomeação do vice-presidente, o general Mourão, foi uma jogada do presidente Bolsonaro que leva em consideração justamente essa concepção das Forças Armadas. A indicação de Mourão foi feita num momento em que há uma crítica global à atuação do governo – ou, melhor dizendo, à falta de atuação do governo – no tocante as queimadas na floresta. Um dos resultados foi a ameaça de investidores internacionais de retirar capitais do Brasil e repreensões públicas de governantes europeus.
Nomeando Mourão, Bolsonaro procura trazer para seu lado a proteção das Forças Armadas contra a pressão da comunidade internacional, justamente num momento em que esta pode aumentar por conta da eleição de Joe Biden como presidente dos EUA. Durante um dos debates eleitorais, Biden confrontou o presidente Trump, até o momento o principal aliado internacional do governo brasileiro, na questão ambiental e trouxe como exemplo de suas preocupações justamente as queimadas na região amazônica, chegando a firmar que iria articular uma pressão internacional para que o Brasil mudasse de atitude.
Reforma nas FFAA
Ainda em outubro, o site The Intercept traz um artigo dos pesquisadores Alexandre Fuccille e Lucas Rezende. Nele, ambos defendem a necessidade de uma reforma profunda na estrutura das Forças Armadas, de modo a colocar fim ao seu espírito golpista. No texto, é apontado que a maioria das democracias liberais repensou a atuação e as funções dos seus dispositivos militares após a Guerra Fria, com a exceção do Brasil.
Eles fazem uma ampla análise institucional da caserna, e em especial no período que se abre após os anos 1990, e propõem um conjunto de nove propostas de reforma para debate. São elas: a efetivação de um ministério da Defesa dirigido por civis, fortalecimento da participação do Congresso no debate e definição de políticas de defesa, a promoção da igualdade racial, revisão da educação nas academias militares, abrir espaço para a promoção da diversidade de gênero, fim do serviço militar obrigatório, fim da Justiça Militar nos moldes atuais, redução dos efetivos e modernização dos meios de defesa e tornar transparente a gestão e o financiamento dos recursos de defesa, incluído nesse último ponto uma revisão do atual sistema previdenciário militar.
Em 5 de novembro, o UOL trouxe uma matéria que abordava a postura dos generais brasileiros nas eleições presidenciais norte-americanas. Nela, o jornalista Tales Faria publicou a informação de que oficiais-generais brasileiros estavam com boas perspectivas em relação a possível eleição de Joe Biden. Tomavam, porém o cuidado de dizer que eles não desejavam o confronto com os bolsonaristas da chamada “ala ideológica”. No texto, era enfatizado que os militares esperavam uma mudança mais pragmática na política externa e na política doméstica do governo Bolsonaro. Isso envolveria uma postura menos ideologizada no tratamento da questão ambiental e no relacionamento com a China.
Uma demissão por mês
A Folha de S. Paulo, em 8 de Novembro, divulgou um levantamento feito pelo próprio jornal onde afirma que o governo Bolsonaro teve uma demissão por mês, em média, de um militar de alta patente alocado em algum posto estratégico da administração federal.
Ainda segundo o jornal, a curta permanência desses generais, brigadeiros e almirantes evidenciaria o tamanho do desgaste da relação entre Bolsonaro e os fardados. Recentemente, diversos órgãos fizeram menção à fala de Bolsonaro em discurso realizado durante cerimônia no Palácio do Planalto, em referência a Joe Biden, presidente eleito dos EUA. Ali, o chefe do governo afirmou que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora” ao se referir à Amazônia. Essa manifestação do chefe do executivo foi também caracterizada como outro fator de incômodo para as Forças Armadas. Isso colaborou com o já mencionado desgaste por causa do constrangimento gerado para os militares, que foram alvo de piadas e memes após a fala do presidente.
Em cima da declaração desastrada de Bolsonaro, vale a pena citar uma live que o comandante do exército, o general Edson Leal Pujol, fez para o IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. Nela, feita justamente após as palavras destemperadas do presidente, Pujol afirma que os militares não querem fazer parte da política e nem que ela entre nos quartéis. Na mesma entrevista, o general ainda afirma que as Forças Armadas estão aquém do que o Brasil precisa em termos de efetivos para realizar a defesa do seu território. Quanto a essa segunda declaração, sempre é bom termos em mente que os militares têm um horizonte de conseguir uma fatia de 2% do PIB nacional e enfatizar as fraquezas e insuficiências do setor, independentemente delas de fato existirem. A demanda faz parte do jogo político que exército, marinha e aeronáutica têm feito no sentido de defender seus interesses às custas das prioridades de outros ministérios.
Críticas a Bolsonaro
O ex-porta voz da presidência da república, general Rêgo Barros concedeu uma entrevista ao programa “Conversa com Bial”, da Rede Globo. O militar fez críticas às declarações diárias que o presidente Bolsonaro realiza, no que se convencionou chamar de “cercadinho”, uma vez que tais declarações minaram o papel de Barros como a “voz” da presidência. O general também escreveu um texto para o Correio Braziliense, comentando as eleições americanas. Em dado momento do texto, escreve “se você não governa para todos, não governa para ninguém!”, o que foi visto como indireta a Bolsonaro.
A recente crise política em torno da paralisação dos testes da vacina Coronavac decretada pela Anvisa, teve participação decisiva de um militar. Trata-se do contra-almirante (da reserva) Antônio Barra Torres, atual presidente da agência, visto como forte aliado do presidente, tendo participado dos atos pró-governo em janeiro de 2020. Torres decretou a suspensão dos testes da vacina, oficialmente em virtude do falecimento de um dos voluntários da fase de testes. Muitos enxergaram a paralisação como motivada não por razões técnicas, e sim pela disputa política entre Bolsonaro e o Governador de São Paulo: João Dória.
As forças armadas foram mobilizadas para mitigar os efeitos do colapso do fornecimento de energia no Estado do Amapá. Meios das três forças foram acionados para prestar apoio a população, e ao processo de restabelecimento de energia. Estão sendo levados alimentos, remédios, combustíveis e geradores. Chama atenção a dificuldade do governo federal em restabelecer a energia no estado, que inclusive faz fronteira com a Guiana Francesa. Trata-se de um departamento ultramarino da França, estado já cogitado como potencial agressor militar por um documento vazado em fevereiro de 2020. Fica claro que em um cenário real de guerra seria relativamente “simples” para os franceses cortarem o fornecimento de energia elétrica de toda população amapaense. O próprio governo francês, à época, classificou essa hipótese como “delirante”.
Defesa e Relações Internacionais
A cooperação entre as forças armadas brasileiras e suas contrapartes americanas segue forte, apesar do futuro incerto das relações entre os dois países com a chegada de Biden a Casa Branca a partir de janeiro de 2021. A Marinha do Brasil (MB) e a US Navy (USN) protagonizaram dois eventos importantes recentemente. O Navio-Escola Brasil (U-27) visitou a Estação Naval de Mayport na Flórida, uma das bases mais importantes da USN, também realizando no Mar do Caribe um exercício conjunto com o destróier USS William P. Lawrence (DDG 110). A Força de Submarinos da MB e sua análoga americana realizaram reuniões na cidade de Norfolk na Virgínia. Foram assinados acordos de cooperação entre as duas partes, mas não foram dados maiores detalhes sobre os mesmos.
Outra relação de futuro incerto envolve Bolsonaro e o presidente argentino Alberto Fernández. Na contramão dos presidentes, as forças armadas de ambos os países têm mantido forte cooperação. O ministro da defesa argentino Agustín Rossi (um civil, diga-se de passagem), visitou a fábrica da Iveco em Sete Lagoas-MG, onde são produzidos os blindados Guarani, que despertam o interesse do exército platino, que tem dificuldades orçamentárias ainda mais graves que as nossas. A visita foi acompanhada pela contra-parte brasileira, o general Fernando Azevedo e Silva. Ambos os ministros enfatizaram o caráter estratégico da cooperação bilateral. Também está agendado para acontecer entre os dias 14 e 20 de Novembro um exercício conjunto entre os exércitos brasileiro e argentino em Rosário do Sul (RS), batizado de Operação Arandu. Será a mais importante manobra conjunta entre as duas forças no ano 2020.
Voltando aos veículos Guarani, surpreendeu a notícia da encomenda de 28 desses blindados pera o exército das Filipinas. Porém há pouco mérito da diplomacia brasileira na venda. O grande vencedor diplomático dessa história é na verdade Israel. O exército filipino realizou uma concorrência internacional visando compra de diversos tipos de blindados, entre eles transportes de tropas, de reconhecimento e também, tanques médios. A empresa israelense Elbit Systems, vencedora da concorrência, entrou na disputa com produtos de “outras nacionalidades”, mas com componentes israelenses. E entre esses produtos está justamente o Guarani. Tal venda, ainda que sem a participação do governo brasileiro, pode favorecer futuras exportações do vetor desse veículo.