Peru, cenas de uma instabilidade anunciada

Por Ingrid Meirelles, João Victor Pennacchio, Talita de Paula Duarte, Thauany Nazarete Ciríno e Gilberto Marignoni

Instabilidades no país andino expressam complicado jogo de poder e ambiguidades nas normas constitucionais.

O Peru vive semanas de forte instabilidade política após a renúncia do presidente interino, Manuel Merino, no domingo, 15 de novembro. Entre as causas estão uma sucessão de manifestações populares violentamente reprimidas pelas forças de segurança – que resultaram na morte de dois jovens e em mais de 100 feridos – e os pedidos de demissão de 13 de seus 18 ministros. A saída de Merino, como se sabe, é apenas a ponta final de turbulências iniciadas há pelo menos dois anos.

Merino permaneceu seis dias no cargo, após a destituição do presidente Martin Vizcarra, no dia 9 de novembro, destituído pelo Congresso, sob a alegação de “incapacidade moral”. Vizcarra, por sua vez, era vice de Pedro Pablo Kuczynski, eleito em 2016 para um mandato de cinco anos, ao qual renunciou em 23 de março de 2018.

Motivação vaga

De todos os casos, o mais intrigante é o de Vizcarra. A possibilidade de destituição presidencial por incapacidade moral aparece pela primeira vez na Constituição Política da República Peruana de 1828 no Art.83, que não atribui a nenhum órgão institucional a competência para declarar, julgar e executar a medida. O mesmo se dá nas Cartas de 1839, 1856, 1860 e 1867. Somente a Constituição para a República do Peru de 1920, através do Art. 115, estabelece que caberia ao Congresso determinar a incapacidade moral do chefe do Executivo para o cumprimento de suas funções. No entanto, não há indicações sobre qual das duas casas do Congresso – câmara ou senado – seria responsável por tal procedimento. 

A indefinição só foi resolvida pela Constituição de 1933, que implementou o regime congressual unicameral. No entanto, aquele dispositivo legal também não esclarece a situação em que os parlamentares podem ou devem declarar a incapacidade moral do presidente. O regime unicameral, apesar de possibilitar tomadas de decisões mais rápidas, não conta com um Senado que exerça um papel de freio ou contrapeso no Congresso. 

A rapidez no processo de afastamento de Vizcarra demonstra como as decisões unicamerais podem ser ágeis e eventualmente arbitrárias. Para a abertura do processo de destituição do presidente é preciso que apenas 20% dos congressistas (26 parlamentares) realizem um pedido de vacância, que 40% (52) aceitem e que 66% (87) aprovem a destituição, numa Câmara de 130 cadeiras. 

Falta de objetividade

Segundo Magno García Chavarri, professor de Direito Constitucional da Universidade de Lima, o termo ‘moral’ era entendido como ‘mental’ no século XIX. Tal conceito, em tese, daria a um processo desse tipo maior objetividade, uma vez que poderia ser aferido por profissionais da psiquiatria. No entanto, o Congresso parece interpretar que a letra constitucional lhe confere autonomia para a declaração de incapacidade permanente, bastando apenas a aprovação de dois terços dos parlamentares.

Desde 2016, foram abertos no Peru quatro processos por incapacidade moral, sendo dois deles contra o ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski (em 2017 e 2018) e dois contra Martín

Vizcarra, em 2020. O Congresso peruano parece fazer uso arbitrário de um obscuro mecanismo constitucional, colocando sob permanente suspeição o chefe de governo, apesar de 68 parlamentares também estarem sob investigação judicial.A atual Constituição do Peru foi aprovada no governo de  Alberto Fujimori, em 1993, uma gestão abertamente autoritária. A Carta parece reproduzir as inconsistências de versões anteriores ao deixar em aberto pontos cruciais na delimitação do conceito de vacância presidencial. Assim, sua interpretação e aplicação pode ser feita de forma arbitrária pelos congressistas.

Embora o chefe do Executivo possa se reeleger uma vez, essa prerrogativa não é facultada aos deputados. Assim, o congressista não precisa garantir um futuro eleitorado e os interesses pessoais se tornam prioridade para muitos deles. Esses interesses próprios são visíveis nos casos de corrupção, inclusive naqueles ligados à Lava Jato e ao caso da Odebrecht.  

Presidencialismo parlamentar?

Desde a proclamação de sua independência em 1821, o Peru é uma República presidencialista. O mandatário é assessorado por um Conselho de Ministros por ele nomeado. O presidente desse conselho atua como um chefe de gabinete, de acordo com o professor Jorge Aragón Trelles, do Instituto de Estudos Peruanos. Mesmo com uma estrutura que se aproxima do parlamentarismo, o presidente possui a centralidade do poder Executivo, atuando como chefe de governo e de Estado. Outra peculiaridade é a existência de dois vice-presidentes. 

Atualmente, o congresso peruano é composto por nove partidos. Os dois maiores são: Acción Popular (centro) e Alianza Para El Progreso (direita), com 25 e 22 cadeiras respectivamente. O terceiro e quarto partidos em representação são o Fuerza Popular e o Frepap, com 15 cadeiras cada. Ambos são partidos de direita, sendo a primeiro uma agremiação fundada por Keiko Fujimori (filha do ex-presidente Alberto Fujimori) e o segundo um partido ligado à bases evangélicas conservadoras. Vizcarra é um político sem partido, o que lhe tolhe o trânsito no mundo político-institucional.

A posição da comunidade internacional

Diante da crise, a Secretaria-Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos)  confirmou o envio de uma missão de observação eleitoral ao Peru, com o objetivo de monitorar as eleições presidenciais, marcadas para 11 de abril do ano que vem. O pleito, em tese, deve pacificar e legitimar a situação política interna.  A missão eleitoral resulta de um convite realizado pelo Júri Nacional de Eleições do Peru, e será chefiada pelo economista e diplomata Rubén Darío Ramírez Lezcano, e composta por especialistas de diferentes nacionalidades. 

A OEA não reconheceu a autoridade do presidente interino, Manuel Merino, e ressaltou que “compete ao Tribunal Constitucional do Peru decidir sobre a legalidade e legitimidade das decisões institucionais adotadas, bem como sobre as divergências que possam existir na interpretação da Constituição. Apesar da ação absolutamente parcial diante do golpe boliviano de 2019, a Organização parece tentar minorar o desgaste internacional que sofreu.

Também o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos expressou preocupação com a situação e enviou uma missão ao país para investigar possíveis violações de direitos humanos nas manifestações populares recentes. 

Paralelamente, o Ministério Público do Peru iniciou uma investigação preliminar contra Manuel Merino e outros membros de seu governo interino por possíveis crimes de abuso de autoridade e desaparecimento forçado durante os protestos. 

Os acontecimentos no Peru ainda apresentam muitos pontos obscuros. As turbulências acontecem num continente marcado por sucessivas destituições arbitrárias de quatro presidentes da República. Sofreram verdadeiros golpes parlamentares Manuel Zelaya (Honduras, 2009), Fernando Lugo (Paraguai, 2012, Dilma Rousseff (Brasil, 2016) e Evo Morales (Bolívia, 2019).

Problemas com a Justiça 

Os cinco presidentes anteriores a Martin Vizcarra, que governaram entre 1990 e 2018, tiveram sérios problemas com a Justiça. Cinco são denunciados por corrupção envolvendo o grupo brasileiro Odebrecht. Segundo o jornal O Globo (17.04.2019), a empresa “é investigada no Peru por ter pago propinas milionárias entre 2005 e 2014 para ganhar contratos de obras de infraestrutura e por ter financiado de forma ilícita campanhas eleitorais dos principais partidos políticos e candidatos à presidência”.

Uma versão semelhante à Operação Lava Jato foi instalada no país para averiguar desvios de verbas públicas. A Odebrecht já admitiu ter pago US$29 milhões de propina no Peru.

Os problemas até aqui divulgados alcançam, entre outras lideranças:

Alberto Fujimori (1990-2000) – Durante sua gestão foi aplicado um duríssimo plano de ajuste, conhecido como Fujiscock. A medida redundou em amplos favorecimentos para monopólios privados e para o setor financeiro e drásticos efeitos sociais, como aumento do desemprego, redução do mercado interno e perdas de direitos sociais e trabalhistas, mas em expressivas elevações do PIB. No final de seu governo, após uma série de denúncias, renunciou ao mandato e pediu asilo no Japão. De volta ao Peru, permaneceu preso entre 2007 e 2017.

Alejandro Toledo (2001-06) – Dez anos após concluir seu mandato, Toledo foi condenado por lavagem de dinheiro e corrupção. Teria recebido ilegalmente US$20 milhões de empresas brasileiras, incluindo a Odebrecht, enquanto estava na presidência. Em 2019 foi preso nos EUA, para onde fugira dois anos antes.

Alan García (1985-90 e 2006-11) – Foi investigado por financiamento irregular de campanha, lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Após receber notificação de prisão, em abril de 2019, por envolvimento em corrupção no caso Odebrecht, suicidou-se em sua casa.

Ollanta Humala (2011-16) – É acusado de receber US$3 milhões das empreiteiras brasileiras OAS e Odebrecht. Ficou nove meses preso.

Pedro Pablo Kuczynski (2016-18) – Sua renúncia envolve denúncias de recebimento de propinas da Odebrecht, através de sua empresa de consultoria, e de compra de votos para evitar um processo de impeachment, em 2017.

O histórico político do Peru é marcado por instabilidades, golpes e autogolpes que acarretaram novos arranjos institucionais. Todos esses processos, de alguma forma, se expressam no que vimos nas últimas semanas no país. 

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