A cúpula do BRICS e as brigas com a China

Por Gabriel Carneiro, Vitor Hugo dos Santos e Ana Terza Marra

Em meio às incertezas na política externa brasileira, provocadas pela derrota de Trump nos EUA, a ala do governo brasileiro crítica às relações Brasil-China ainda tenta perturbar as relações bilaterais, enquanto se aprofundam divergências no seio do BRICS. Apesar disso, o bloco parece manter os prospectos de continuidade para os próximos anos.

O bloco no primeiro ano de Bolsonaro

Pautada em um discurso de alinhamento ao governo de Donald Trump, a política externa de Jair Bolsonaro já apresentou em diferentes momentos posições ríspidas em seu discurso diante de organismos multilaterais, como no caso da OMS e com parcerias estratégicas estabelecidas ao longo da trajetória diplomática brasileira recente. Exemplo disso é o comportamento diante da China, na qual se adota uma estratégia ideologicamente alinhada com a extrema-direita. No entanto, em seu primeiro ano de governo, a política externa de Bolsonaro aprofundou a postura economicista e pragmática adotada por Michel Temer com o BRICS.

Durante o encontro informal dos líderes do grupo em Osaka, em meio à 14º Cúpula do G20, em junho de 2019, dentre algumas pautas defendidas pelos membros estavam o i) compromisso ao multilateralismo, ii) reformas na OMC, iii) combate ao terrorismo, iv) importância da energia limpa e v) comprometimento com o Acordo de Paris. Além de se manifestar apoio no fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS (NDB).  

Durante a 11º Cúpula do BRICS em 2019, organizada em Brasília, Bolsonaro mostrou uma postura cautelosa, na sessão plenária da cúpula. Em seu discurso apontou que sua política externa “tem olhos para o mundo, mas em primeiro lugar para no Brasil”. Entretanto destacou que a relevância econômica do grupo é “inquestionável e seguirá crescendo nas próximas décadas”, indicando o interesse brasileiro em sua manutenção. Além disso, durante o evento, foi divulgado pelos Estados integrantes a Declaração de Brasília da 11º Cúpula do BRICS, em que destacava a intenção de seu fortalecimento e a defesa de interesses em comum no cenário internacional e cooperação econômica.

A 12º Cúpula do BRICS

O evento anual da cúpula do BRICS proporciona um grande momento de projeção internacional para os governos participantes, garantindo, mesmo aos líderes mais isolados no cenário internacional, um palanque de destaque. Isso ocorreu na época de isolamento de Putin em decorrência da anexação russa da Crimeia em 2014 e acontece hoje, em menor grau, com o presidente Jair Bolsonaro.

Ao abrir seu pronunciamento, com uma fala inicial que pareceu, em certos momentos, improvisada, o presidente brasileiro, em interlocução com a fala anterior do presidente chinês Xi Jinping, afirmou que o Brasil está desenvolvendo uma vacina própria, da qual não deu grandes detalhes. Em seguida, em alusão às pressões internacionais sobre a política ambiental do governo, o presidente assinalou que divulgaria uma lista das nações que compram madeira ilegal da Amazônia e, consequentemente, teriam também responsabilidade na destruição da Floresta. 

Seguindo no discurso, Bolsonaro teceu críticas aos organismos e organizações internacionais das Nações Unidas, clamando por reformas da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, declarando que é a coordenação entre os Estados nacionais soberanos, e não as organizações internacionais, que vem logrando maior sucesso no enfrentamento dos impactos da pandemia. Somando críticas ao multilateralismo, o presidente brasileiro também afirmou o seu compromisso com a construção, no mundo pós-pandêmico, de um sistema internacional baseado nos preceitos da liberdade, da segurança e da transparência, visando ao respeito das soberanias nacionais.

Além disso, Bolsonaro também reafirmou algumas de suas posições já públicas, como a crítica à “politização” do vírus e ao suposto monopólio do conhecimento da OMS, a rejeição à reprovação internacional com relação à atuação do governo brasileiro na proteção da Amazônia, e a necessidade de, no contexto da pandemia, tratar a saúde e a economia ao mesmo tempo, protegendo-se os “sinais vitais da economia”. 

Sinais de uma nova postura chinesa 

A fala do presidente brasileiro marcou um grande contraste com a do presidente chinês Xi Jinping, que enfatizou a defesa do multilateralismo e do sistema internacional centrado nas Organizações das Nações Unidas. Foi destacada a importância do sistema multilateral de comércio fundamentado na OMC e ressaltou-se o sucesso da liderança da OMS no combate à pandemia de Covid-19. O líder chinês, ademais, se comprometeu a providenciar vacinas a todos os membros do BRICS e a assumir responsabilidades internacionais com relação às mudanças climáticas, posições estas que motivaram o improviso inicial de Bolsonaro.

Apesar das divergências de discurso, contudo, em linhas gerais a Declaração de Moscou da XII Cúpula do BRICS, que resultou do encontro, manteve a mesma orientação das negociadas nos anos anteriores, destacando-se, contudo, uma mudança de impacto para a PEB: na declaração, o apoio público dado as pretensões do Brasil (e de Índia e África do Sul) para assumir uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas, não consta mais, o que alguns analistas classificaram como represália chinesa aos atritos com Brasil e Índia.

A família presidencial

Considerando-se o contexto de frequentes atritos entre membros da família Bolsonaro e as autoridades da embaixada chinesa, decorrentes dos reiterados posicionamentos sinofóbicos dos primeiros – em particular, o mais recente atrito promovido por postagens em redes sociais de Eduardo Bolsonaro -, as relações Brasil-China atravessam um período de elevada tensão diplomática. Enquanto a China se projeta no cenário internacional como uma potência defensora do multilateralismo e ciente do peso global e geopolítico de sua economia, o Brasil insiste em um alinhamento ideológico e simbólico com o trumpismo norte-americano decadente, que cada vez mais isola a nação brasileira no cenário internacional.

Este último atrito contrapôs ainda mais a ala mais pragmática do governo, que defende as relações Brasil-China, à ala mais crítica a essas relações. 

Do lado pragmático, o vice-presidente Mourão – em evento que marcou o lançamento de um estudo que coloca bases de longo prazo para as relações bilaterais – minimizou as falas de Eduardo Bolsonaro, destacando não representarem o governo, enquanto paralelamente deputados começaram a pressionar pela destituição do filho do presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. 

Do lado crítico à China, destaca-se a gestão realizada pelo Itamaraty sobre a questão: em vez de repreender ou negar as afirmações que Eduardo Bolsonaro havia feito contra o país, o MRE optou por acusar a China de responder ao deputado de forma ofensiva e desrespeitosa, colocando-se na situação de vítima.

A resposta da embaixada chinesa à qual o Itamaraty manifestou sua insatisfação foi realizada através da mesma rede social. Em tom duro, a embaixada dirigiu-se mais a sociedade brasileira do que as autoridades governamentais – as quais afirmava já ter pedido uma gestão formal – e instou a uma mudança de posição dessas “personalidades” que seguem a retórica anti-China, “Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”. 

Se, de um lado positivo, essa deterioração das relações diplomáticas bilaterais não tem se refletido na prática das relações econômicas, de outro, a cada novo atrito aumenta-se o sinal de alerta e as incertezas nas relações. A nota chinesa indica um tom mais duro no tratamento as críticas que recebe frente ao novo cenário em que Bolsonaro perdeu seu maior aliado ideológico no plano internacional, o presidente estadunidense Donald Trump. 

Bodas de seda 

A cúpula que marcou os 12 anos de existência do BRICS expôs, mais do que nunca, as brigas internas do agrupamento, colocando frente a frente, em uma mesma chamada de vídeo, os líderes de China e Brasil, que atravessam uma crise diplomática, e de China e Índia, que vivem uma escalada de tensões geopolíticas em suas fronteiras na região do Himalaia, e  denunciando um cenário de crescente esvaziamento político do agrupamento.

Para alguns analistas, as divergências internas e o recente esvaziamento político apontam para a incongruência e a incompatibilidade do grupo, indicando que o divórcio do BRICS estaria próximo. Entretanto, o próprio sucesso da realização da cúpula em um contexto de elevadas tensões entre os países membros demonstra que há o interesse de cada um dos países de superar conflitos particulares e conjunturais da relação para mante um espaço de atuação política que confere maior visibilidade e autonomia aos seus membros, expandindo o leque de alianças políticas e de fontes de financiamento do desenvolvimento, como no caso do Novo Banco do Desenvolvimento. Desta forma, é melhor que o BRICS preparem desde já as comemorações dos próximos aniversários de casamento, pois parece que este relacionamento veio para ficar.

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