Por Flávio Rocha de Oliveira, Juana Lorne e Tarcizio Rodrigo de Santana Melo
Em um período marcado pela pandemia e pelo aprofundamento da crise econômica, as Forças Armadas aumentaram sua participação na administração federal. Os desgastes perante a opinião pública são imprevisíveis.
Militares e Política Doméstica em 2020
Em 2020, segundo ano do governo Bolsonaro, a presença das Forças Armadas em cargos de primeiro e segundo escalão superou até mesmo o contingente do regime autoritário civil-militar. Pôde-se observar a participação do estamento castrense se expandindo, ao mesmo tempo em que se viu também um crescente desgaste da imagem da instituição. Este desgaste foi marcado pelos embates entre o presidente da República e os demais poderes constitucionais ao longo do ano e pela desastrada condução da estratégia de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus.
Militares aumentaram participação em cargos no governo
A participação das Forças Armadas na administração direta do governo Bolsonaro foi algo que não passou despercebido aos observadores da política nacional em 2020. No início do governo, em janeiro de 2019, a Folha de S. Paulo chamou a atenção para o fato de que os militares estavam presentes em 21 áreas do governo federal, compreendendo empresas estatais e ministérios. Em outubro do mesmo ano, utilizando-se da Lei de Acesso à Informação (LAI), o jornal dava conta de que oito dos 22 ministros do governo eram militares, enquanto pelo menos outros 2500 estavam ocupando cargos de chefia ou de assessoria nos poderes da República.
Em 2020, essa participação foi ampliada. O que chamou a atenção foi o fato de que a crise econômica e política causada (ou amplificada) pela pandemia do coronavírus levou a um aumento da presença em órgãos estratégicos, ao mesmo tempo em que começou a se cristalizar na grande imprensa a percepção de que o estamento militar estaria abraçando as pautas bolsonaristas.
Em maio, o Globo apontava que que os militares tiveram um aumento na ocupação de postos estratégicos, com destaque para o Ministério da Saúde com a “efetivação” do general Eduardo Pazuello, um oficial oriundo da área de logística e sem nenhuma experiência no setor de saúde e ex-comandante da Operação Acolhida. Isso abriu espaço para que, na época, os protocolos em torno do uso da cloroquina, tão caros ao presidente Bolsonaro e que sofriam resistência dos dois ministros anteriores, Henrique Mandetta e Nelson Teich, fossem alterados de acordo com os desejos do chefe do Executivo.
Desgaste na imagem das Forças Armadas
A ocupação de diversos setores do governo federal por quase 3 mil militares, com destaque para o ministério da Saúde, recolocou em pauta a necessidade de uma definição do papel das três Armas (Marinha, Exército e Aeronáutica) numa sociedade democrática. Em 9 de julho, a revista Época publicou uma coluna assinada por Denis Russo Bugierman, com o título “O que vai sobrar do Exército brasileiro?”.
O texto questionava o papel daquela força na sociedade, criticando a desastrada intervenção no ministério da Saúde, com o expurgo de epidemiologistas durante a aceleração das mortes por coronavírus e o uso da famigerada Lei de Segurança Nacional contra servidores que fornecessem informações que envolvessem o gabinete do atual titular da pasta, o General Pazuello. Ainda por conta da pandemia, foi questionado o fato de que os laboratórios desperdiçaram milhões de reais do erário público fabricando o medicamento cloroquina, indo na contramão das recomendações da OMS e da própria comunidade médica brasileira.
O ministro do STF, Gilmar Mendes, fez duras críticas ao papel do Exército à frente do ministério da Saúde. Segundo ele, os militares da força estariam se associando a um genocídio durante a pandemia do coronavírus. Em 13 de julho, um dia após as declarações de Gilmar Mendes, o Ministério da Defesa soltou uma nota defendendo a atuação dos militares, dizendo que os mesmos estavam na linha de frente do combate ao vírus desde o início da pandemia, e com um “efetivo maior do que o da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Segunda Guerra Mundial”.
Existiu a preocupação entre integrantes das FFAA com o desgaste da imagem dos militares por sua associação com o governo Bolsonaro e cresceu o incômodo do Exército, em particular, quanto ao uso das Forças Armadas em atividades fora de sua natureza. Em 2020, foram feitas tentativas de separação entre o setor militar e o Poder Executivo, como se pôde verificar em entrevista do vice-presidente Hamilton Mourão à Globonews.
Em meio às críticas de militarização dos ministérios e da entrega de cargos técnicos, historicamente ocupados por civis, a membros das Forças Armadas, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o governo desejava reestruturar cargos com o objetivo de criar gratificações só para militares e também elevar a remuneração desse grupo, além de criar uma reserva de vagas para eles dentro do Poder Executivo.
Cobertura negativa e embate entre os poderes
Quando se observam as matérias escritas na imprensa sobre o governo Bolsonaro, percebe-se que houve um aumento nítido na cobertura do estamento militar. Melhor dizendo: da cobertura crítica, com um escrutínio maior sobre as ações das Forças Armadas enquanto parte da coalizão governante. Considerando-se as relações do governo Bolsonaro com os órgãos de imprensa brasileiros, que não estão alinhados a todas as pautas do governo – e isso vale tanto para a imprensa alternativa ou de esquerda, como Carta Capital, The Intercept ou TV247, como para os órgãos mainstream, como Organizações Globo, Folha de S. Paulo ou revista Veja – também observou-se um aumento da cobertura negativa no atual ciclo de notícias de jornais, revistas, TVs e sites, ainda que variando o tom de acordo com o órgão ou o meio de mídia.
Na sua edição de número 167, de agosto, a revista Piauí apresentou uma matéria de Mônica Gugliano sobre o confronto entre o presidente Bolsonaro e o STF em que o presidente decidiu dar um golpe destituindo os ministros do Supremo. Seu plano era enviar tropas militares, destituir os ministros e indicar outros “até que aquilo esteja em ordem”, segundo as palavras do presidente. De acordo com o texto, o mandatário tomou a decisão no dia 22 de maio, quando o ministro Celso de Mello, em um procedimento de rotina decorrente de uma notícia-crime apresentada por três partidos, consultou a Procuradoria Geral da República (PGR) para saber se deveria ordenar a apreensão dos celulares do presidente e de seu filho Carlos.
Na mesma edição da Piauí, o general da reserva Francisco Mamede de Brito Filho escreveu sobre “a síndrome salvacionista [das Forças Armadas], tão presente ao longo da história da instituição militar”, e que “parece estar apresentando sintomas de recidiva”. Ele criticou a anuência do Ministério da Defesa em permitir que militares da ativa assumam cargos políticos sem migrar para a reserva, e defendeu que a mesma postura exigida do ex-juiz Sérgio Moro (que abriu mão da magistratura para assumir o Ministério da Justiça de Bolsonaro) deveria se aplicar a militares como Pazuello (Saúde) e demais comandantes.
Em 11 de agosto, O Estado de S. Paulo publicou em formato podcast um debate sobre a necessidade de impor limites às nomeações de militares da ativa no governo e se essa relação entre o poder Executivo e a Forças Armadas interferia na autonomia das instituições. No programa, o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia disse ser importante separar Estado e governo, isso em referência à quantidade de militares, principalmente da ativa, no Executivo federal.
Os Militares e a Região Amazônica
Em outubro, o site Mongabay trouxe uma entrevista com o cientista político João Roberto Martins Filho, feita por Peter Speetjens. Nela, o pesquisador abordou a mentalidade do estamento militar em relação a região amazônica. Ele fez uma explicação sobre as visões que as Forças Armadas, e em especial o exército, tem cultivado. Entre elas destaca-se a mentalidade de cerco que tem sido uma constante na maneira como eles tratam a região desde, pelo menos, o fim do regime autoritário. Segundo o acadêmico, compreender essa mentalidade é fundamental para entender as políticas do atual governo para a Amazônia.
Para Martins Filho, a nomeação do vice-presidente, o general Mourão, para o Conselho Nacional da Amazônia foi uma jogada do presidente Bolsonaro que levou em consideração justamente essa mentalidade das Forças Armadas. A indicação de Mourão foi feita num momento em que cresciam as críticas globais à atuação do governo – ou, melhor dizendo, à falta de atuação do governo – no tocante as queimadas na floresta. Um dos resultados foi a ameaça de investidores internacionais de retirar capitais do Brasil e repreensões públicas por parte de governantes europeus.
Nomeando Mourão, Bolsonaro procurou trazer para seu lado o apoio das Forças Armadas contra a pressão da comunidade internacional, justamente num momento em que esta pode aumentar por conta da eleição de Joe Biden como presidente dos EUA.
Algumas divergências explícitadas
Com o aumento perceptível do desconforto das forças armadas com o presidente Bolsonaro, numa conjuntura de crise social e econômica, chefes militares vieram a público explicitar algumas divergências. Em 24 de outubro de 2020, o Estado de S. Paulo chamou a atenção para a opinião dos militares sobre a aliança entre o presidente Bolsonaro e o chamado Centrão. Segundo o jornal, as Forças Armadas não contestaram, oficialmente ou pelas redes sociais de seus membros mais destacados, a aproximação do presidente com o tão criticado Centrão, ala do congresso rotulada como fisiológica.
Ainda em outubro, o site The Intercept trouxe um artigo dos pesquisadores Alexandre Fuccille e Lucas Rezende. Nele, ambos defenderam a necessidade de uma reforma profunda na estrutura das Forças Armadas, de modo a colocar fim ao seu espírito golpista. A Folha de S. Paulo, em 8 de Novembro, divulgou um levantamento feito pelo próprio jornal onde afirmava que o governo Bolsonaro teve uma demissão por mês, em média, de um militar de alta patente alocado em algum posto estratégico da administração federal.
Ainda segundo o jornal, a curta permanência desses generais, brigadeiros e almirantes evidenciaria o tamanho do desgaste da relação entre Bolsonaro e os fardados. Recentemente, diversos órgãos fizeram menção à fala de Bolsonaro em discurso realizado durante cerimônia no Palácio do Planalto, em referência a Joe Biden, presidente eleito dos EUA. Ali, o chefe do governo afirmou que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora” ao se referir à Amazônia. Essa manifestação do chefe do executivo foi também caracterizada como outro fator de incômodo para as Forças Armadas. Isso colaborou com o já mencionado desgaste por causa do constrangimento gerado para os militares, que foram alvo de piadas e memes após a fala do presidente.
Após a declaração desastrada de Bolsonaro, houve uma live que o comandante do exército, o general Edson Leal Pujol, fez para o IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. Nela, feita imediatamente após as palavras destemperadas do presidente, Pujol afirmou que os militares não queriam fazer parte da política e nem desejavam que ela entrasse nos quartéis.
Entre novembro e dezembro, houve o “início” de uma crise política em torno da Coronavac, a vacina desenvolvida na China e que deve ser fabricada e distribuída a partir do estado de São Paulo. Houve uma paralisação e atraso dos testes da vacina a partir de um decreto da Anvisa. Para isso, houve a participação decisiva de um militar: o contra-almirante (da reserva) Antônio Barra Torres, atual presidente da agência, visto como forte aliado do presidente. Esse oficial chegou a participar de atos a favor do presidente em janeiro de 2020.
O decreto suspendendo os testes da vacina teve como justificativa oficial o falecimento de um dos voluntários da fase de testes. Ao fim e ao cabo, a paralisação não foi motivada por razões técnicas, e sim pela disputa política entre Bolsonaro e o Governador de São Paulo, João Dória, com vistas ao pleito presidencial de 2022. Ambos trafegam pelo eleitorado de direita (e extrema-direita) e buscam consolidar um apoio entre as elites econômicas do país.
Em 11 de dezembro de 2020, a revista Época publicou uma matéria sobre as vítimas do Covid entre as Forças Armadas. Segundo dados levantados pela revista, 809 militares teriam morrido por conta do vírus, sendo que a maioria, 770, era de militares reformados. O número total já seria quase o dobro dos soldados brasileiros mortos na Itália durante a II Guerra Mundial. Apesar de citar casos específicos de decepção ou críticas veladas à maneira como o presidente estava conduzindo a pandemia, os autores da matéria, Thiago Herdy e Ana Clara Costa, escreveram que a maior parte da alta cúpula das Forças Armadas não reconhecia que a conduta do governo como algo que havia contribuído para o número de pessoas mortas. Os jornalistas ainda identificavam outros fatores importantes nas entrevistas que fizeram: que havia uma convicção por parte dos oficiais-generais de que Bolsonaro havia acertado ao defender a necessidade de preservar a economia juntamente com a saúde da população e que viam como correta a decisão do chefe do executivo em tirar o ministro Henrique Mandeta da chefia da pasta da saúde.
Na mesma matéria, também foi informado que os generais criticavam a postura oportunista do governador de São Paulo, João Dória, e o STF por, segundo eles, enfraquecer o poder do Executivo no enfrentamento da pandemia. A atitude de Pazuello, Augusto Heleno e Fernando Azevedo em manter a hierarquia e seguir as ordens presidenciais eram vistas como exemplares, enquanto a crítica de dois outros generais que saíram do governo tecendo críticas a Bolsonaro, Santos Cruz e Rêgo Barros, havia contribuído para desgastar esses oficiais junto aos círculos militares.
Mesmo assim, foi observada o contraponto que o comandante do exército, Edson Pujol, fazia ao presidente da república, tanto em termos de entrevistas nas quais defendia que o EB era uma instituição de Estado e não de governo, como pelo simbólico ato de ter recebido o chefe de Estado em evento no Rio Grande do Sul e não cumprimentá-lo com a mão estendida, mas com um toque de cotovelo. Tais atitudes de Pujol teriam motivado um desejo de Bolsonaro em trocar o chefe do Exército, no que provocou, segundo a matéria, uma divisão no Alto Comando da instituição.
O corporativismo seguiu forte nas três Forças Armadas em 2020, com algumas divergências entre essas e o governo surgindo ao longo do ano. Todavia, fica a dúvida: esse corporativismo, exacerbado pelas prebendas obtidas e pelo fato delas fazerem parte direta desse governo de extrema-direita, será suficiente para manter a mesma coesão política e postura caso o presidente da república não consiga lidar com a tempestade perfeita que dá indícios de se formar em 2021 e que será composta de crises de natureza econômica, social, sanitária, política e que tem, além de tudo, a possibilidade de serem agravadas com um isolamento inédito do Brasil nas relações internacionais?
Militares e Política de Defesa em 2020
O ano de 2020 na área de defesa foi conturbado, mais uma característica de um governo repleto de contradições. Bolsonaro mostrou que é possível entrar em atrito com os principais países parceiros em defesa a troco de absolutamente nenhum ganho para o Brasil; que, mesmo sendo amplamente pró-armamento da população civil, conseguiu entrar em choque com a indústria nacional de armas leves; e que, mesmo desprezando – para ser brando – as relações sul-sul, ainda foi possível extrair delas boa parte das principais exportações em armamento no ano.
Cooperação em Defesa com os EUA
A cooperação dos militares brasileiros com os Estados Unidos no setor de defesa foi um dos destaques do ano. Tendo iniciado no governo de Dilma Rousseff, com a promulgação de um acordo com o governo dos EUA, a cooperação foi se expandindo e mudando de tom durante o governo Temer, quando o então secretário de Defesa estadunidense, James Mattis, esteve em visita ao Brasil e discutiu possibilidades de cooperação militar. Esse acordo começou a ser negociado em 2017, um ano depois do golpe de 2016. Por fim, a cooperação passou para um alinhamento totalmente subordinado sob o mandato de Bolsonaro, algo que não causou nenhum constrangimento aos militares.
Em março de 2020, o Brasil e os EUA firmaram um acordo militar. Ele foi assinado pelo chefe do Estado Maior e pelo comandante do US Southern Command, sob os olhares entusiasmados do presidente Bolsonaro. Conhecido pela sigla RDT & E, o documento facilita juridicamente as pesquisas e cooperação em tecnologias militares emergentes. O acordo prevê a negociação da adesão brasileira ao RDT & E Fund em alguns projetos que contam com financiamento estadunidense. Porém, ressalte-se que o financiamento é dirigido para empresas norte-americanas que poderiam subcontratar empresas de países que já assinaram esse tipo de acordo – no caso, poderiam, em tese, subcontratar empresas brasileiras, salvaguardando principalmente questões de propriedade intelectual ponto no qual os Estados Unidos são rigorosos.
Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso o Acordo de Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT & E). Em teoria ele facilitará às empresas brasileiras participarem como subcontratadas no desenvolvimento de produtos de defesa nos EUA. Obviamente, o acordo é sujeito a críticas. Uma delas foi publicada por Marcelo Zero, que argumento que não há nada de novo nesse tratado, mas que ele terminava colocando o Brasil a reboque dos interesses estratégicos norte-americanos.
A cooperação militar no âmbito do US Southern Command ocorreu durante todo o ano de 2020.
O general Alcides Valeriano Jr, já é membro desse comando estadunidense e outros oficiais brasileiros também foram designados para servir nele. Realizaram-se diversas visitas mútuas, bem como exercícios militares conjuntos. Chamou a atenção a divulgação mais ampla por parte dos americanos dessa cooperação. As Forças Armadas brasileiras divulgam menos, caso especialmente do Exército que curiosamente é a força mais “entusiasmada” em se alinhar aos EUA.
Quem não está feliz com os norte-americanos após a eleição de Joe Biden, foi justamente Jair Bolsonaro. Sem citar Biden nominalmente, o presidente brasileiro falou de potenciais pressões que o futuro presidente americano exercerá sobre temas relativos ao meio ambiente, e afirmou que “quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”. Ao que parece as Forças Armadas não estão interessadas em seguir o presidente em suas críticas a Biden, e mantiveram a cooperação com Washington inabalada, pelo menos por enquanto.
Cooperação com a Argentina
Apesar dos atritos entre Bolsonaro e o presidente argentino Alberto Fernández, as forças armadas de ambos os países seguiram na contramão dos presidentes e têm mantido forte cooperação. O ministro da defesa argentino, Agustín Rossi, visitou a fábrica da Iveco em Sete Lagoas-MG, onde são produzidos os blindados Guarani, que despertam o interesse do exército platino que tem dificuldades orçamentárias ainda mais graves que as nossas. A visita foi acompanhada pela contraparte brasileira, o general Fernando Azevedo e Silva. Ambos os ministros enfatizaram o caráter estratégico da cooperação bilateral. Cabe lembrar que diferente dos presidentes, os militares dos dois países têm maior proximidade de “linha de pensamento”.
Exportações para a Ásia
Apesar de tudo, o ano de 2020 pôde ser considerado satisfatório em exportações de material bélico pelo Brasil. Não houve nenhuma venda gigantesca, mas considerando a baixa inserção do Brasil no mercado internacional no que tange a equipamentos mais complexos, algumas exportações e vendas para países do sul-global chamaram a atenção.
O Brasil tem laços de cooperação militar com a Indonésia, tendo emplacado, em um passado recente, vendas de aviões Super Tucano da Embraer e dos sistemas de lançadores de mísseis e foguetes Astros II da Avibrás. Em junho, foi noticiado a entrega de mais Astros II para Jacarta. A Índia e o Brasil também têm expandido laços políticos e de cooperação militar. A partir de acordos de cooperação na área de defesa foram assinados, e um dos primeiros frutos foi a formação de uma futura joint venture entre a brasileira Taurus e uma companhia indiana para fabricação de armas leves neste país, mirando na demanda da forças armadas de Nova Délhi, que detém um dos maiores orçamentos de defesa do mundo.
Surpreendeu também a notícia da encomenda de 28 desses blindados para o exército das Filipinas, em outubro de 2020. Porém, vale ressaltar que há pouco ou nenhum mérito da diplomacia brasileira na venda. O exército filipino realizou uma concorrência internacional visando a compra de diversos tipos de blindados, entre eles transportes de tropas, de reconhecimento e, também, tanques médios. A empresa israelense Elbit Systems, vencedora da concorrência, entrou na disputa com produtos de “outras nacionalidades”, mas com componentes israelenses. E entre esses produtos estava justamente o Guarani. Tal venda tem o potencial de favorecer futuras exportações desse veículo.
Equipamentos para as Forças Armadas
A Força Aérea Brasileira (FAB) recebeu seu o 3º e 4º KC-390 ao longo do ano. Outro vetor de modernização tão aguardado pela Aeronáutica que chegou ao Brasil foi o primeiro exemplar do caça Gripen, que passará alguns anos em testes antes de entrar em operação. Um marco importante do projeto do caça é o início da sua produção na Saab Aeronáutica Montagens (SAM) e a entrega da primeira aeroestrutura fabricada no Brasil.
No dia 17 de junho, a Marinha do Brasil (MB) ativou a base de submarinos da ilha da Madeira (BSIM) no município de Itaguaí, Rio de Janeiro. A data coincidiu com o aniversário de 106 anos da criação da Força de Submarinos. Sob o lema de “abrigo do maior ativo da defesa nacional”, essa base abrigará os novos submarinos, e entre eles, futuramente, o de propulsão nuclear. No mês de dezembro foi lançado o segundo Submarino da nova Classe Riachuelo (Scorpène) o ‘Humaitá’.
Se as notícias para os submarinistas foram boas, o mesmo não pode ser dito para os meios de superfície da MB. Segundo a revista Crusoé, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou irregularidades no processo de financiamento das novas fragatas a serem construídas para a Marinha. O governo teve que mudar a forma de financiamento do projeto liberando R$89 milhões para a empresa Emgepron de forma emergencial. Espera-se que a construção das 4 Fragatas comece em 2021.
Outro setor que está tendo problemas com o TCU no âmbito da Defesa é o Exército. Em 2020, a Força verde oliva continuou avançando no recebimento dos blindados Guarani. Contudo, o programa de modernização sofre com a dotação orçamentária menor do que a planejada. Ocorre que parte desse aperto financeiro também é culpa da Força. Segundo matéria do The Intercept Brasil, oficiais do EB responsáveis pelo dimensionamento do número de blindados Guarani a serem fabricados para modernização da cavalaria não só cometeram graves erros no processo como superestimaram a quantidade de veículos necessários. As 2.044 unidades inicialmente planejadas foram reduzidas para 1.580. A fabricante, a Iveco do Brasil, aceitou reduzir a encomenda, mas não concordou em receber um valor menor do que o inicialmente acordado. Isso gerou um rombo de R$ 273 milhões ao Exército e, portanto, aos cofres da União.
Apesar do gigantesco prejuízo, o TCU pode aplicar uma multa muito baixa aos militares responsáveis pelo ocorrido. As Forças Armadas sempre reclamam, e com razão, que falta orçamento para investir, mas tem problemas sérios em discutir possíveis erros administrativos e de planejamento que elas mesmas cometem. Foi também anunciado que outros blindados do EB serão modernizados, no caso os veículos de reconhecimento Cascavel e os tanques Leopard 1-A5.
Choque com a indústria nacional
Em agosto de 2020, a Folha de São Paulo publicou que o Ministério da Justiça planejava criar um escritório em Washington para importar armamento dos EUA com o intuito de equipar a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). A notícia gerou diversas reações negativas, e entre elas uma nota de repúdio da Associação Brasileira de Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança, ABIMDE, que cobrou que Bolsonaro honrasse o lema “Brasil Acima de Tudo!”. A maior empresa brasileira do ramo, a Taurus, declarou que pretendia acelerar a sua expansão rumo ao exterior e, através do seu CEO, Salesio Nuhs, afirmou que Bolsonaro não estava bem assessorado no tema de armamentos. Até mesmo o portal conservador DefesaNet, um feroz defensor dos atos governamentais, publicou um editorial com fortes críticas à decisão do governo Bolsonaro e conclamando os comandantes das forças armadas a apoiarem a indústria nacional de facto.
O governo não se sentiu constrangido pelas críticas e zerou o imposto para importação de armas no começo de dezembro. E foi anunciada a parceria entre a Imbel e a Sig Sauer norte-americana para a produção de pistolas no Brasil, gerando mais insatisfação na ABIMDE e na Taurus.
Missões de Paz
No âmbito das missões de paz, a participação da Marinha na Unifil no Líbano se encerrou em dezembro, sendo essa a participação mais destacada do Brasil desde o fim da Minustah no Haiti. É marcante a redução do esforço brasileiro nas missões de paz em relação ao início deste século. Além da Unifil, outro fato relevante foi a nomeação para o cargo de Force Comander da Monusco, Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo, do general Costa Neves (ex-comandante da Academia Militar das Agulhas Negras).