Por Ana Beatriz Aquino, Cássia Fernandes de Lima, Davi Reis Procari Gonçalves, Gustavo Mendes de Almeida, Ingrid Meirelles de Souza, Júlia Lurizotto Nóbrega, Luiza Gouvêa e Rios Cobra, Nicole Lima, Rafael Osório Reis Sales e Gilberto Maringoni
O Brasil está se isolando de seus vizinhos na América Latina, ao mesmo tempo em que consolida sua posição de pária internacional. O ponto sensível do momento pode ser denominado de “diplomacia sanitária”. O negacionismo e a aberta sabotagem do presidente Jair Bolsonaro e de membros de seu governo – com destaque para o bizarro general Eduardo Pazuello – às políticas de contenção do vírus não encontram paralelo na região. Nem mesmo no Paraguai, onde a população tem protagonizado diversas manifestações de protesto, a irresponsabilidade chega perto da postura tida como genocida, num país em que o número de mortes se aproxima de 300 mil.
A manifestação mais clara desse isolamento veio por parte do governo venezuelano, que oficialmente denunciou à ONU, no último 6 de março, “a negligência criminosa do chefe de Estado Jair Bolsonaro”, que se converteu no “principal obstáculo para salvar vidas”, ao se negar a estabelecer “políticas de coordenação sanitária” tanto no plano interno “como com as autoridades dos países vizinhos”. Na carta – firmada por Samuel Moncada, embaixador do país na ONU – é solicitada a interferência da Secretaria Geral para impedir a disseminação do vírus a partir do Brasil.
Nas próximas páginas há um pequeno panorama das iniciativas tomadas pelos governos de Brasil, Argentina, México, Chile, Paraguai, Colômbia e Cuba no combate à doença. São relatadas também informações sobre as grandes produtoras mundiais de vacinas.
Imunização precária
Apesar de representar quase 27% das mortes no mundo, a América Latina responde por apenas 7,2% das doses de vacina administradas. A demora no processo de imunização envolve fatores como a alta demanda no restante do mundo e dificuldades na logística de importação, entrega e administração. Além disso, os países mais ricos foram favorecidos na corrida pela aquisição dos imunizantes, fechando acordos com as farmacêuticas antes das nações periféricas.
No caso da periferia, alguns estabeleceram acordos com farmacêuticas, receberam doações e, especialmente, dependem de uma iniciativa da OMS.
O consórcio Covax
Tendo em vista a desigualdade na distribuição de vacinas pelo mundo, com os países ricos se lançando à frente e adquirindo das farmacêuticas a maioria das doses disponíveis, o consórcio Covax – uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Aliança para a Vacinação (Gavi) e da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi) – se coloca como uma alternativa para garantir o acesso do imunizante para todos os países, e de quebra acelerar o seu desenvolvimento e manufatura.
Na América Latina, 19 países participam da iniciativa. O único a ficar de fora é Cuba, que planeja vacinar sua população com imunizantes desenvolvidos e produzidos domesticamente. Dos participantes, cinco países – Bolívia, El Salvador, Haiti, Honduras e Nicarágua – não pagarão pelas doses e as receberão através de fundos de um programa da Aliança para Vacinação (Gavi).
A Colômbia foi o primeiro país latino-americano a receber doses da Covax no dia 1º de março. Nos próximos dias, Peru, El Salvador e Bolívia também devem receber produtos do consórcio. Já o Brasil deve contar até maio com cerca de 10 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca, e, no total, 42 milhões de unidades, o suficiente para vacinar cerca de 10% da população. A diretoria da Anvisa dispensou o registro e autorização temporária para as vacinas ofertadas pela coalizão.
Falta de dados
Cuba, junto à Nicarágua e ao Haiti, compõem a lista de países latino-americanos sobre os quais ainda não há dados do processo de imunização. Na região, já foram administradas 23,2 milhões de doses, com destaque para o Brasil, Chile e México, na estimativa absoluta. O grande sucesso regional é o Chile, que ocupa o quinto lugar na porcentagem vacinação no mundo, com 4,5% de sua população já imunizada¹, atrás apenas de Israel, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos e Sérvia.
Com 19 milhões de habitantes, o Chile providenciou a compra de 35,7 milhões de doses até agora, o que lhe dará a capacidade de medicar mais de 90% de sua população. Logo no início da pandemia, Sebastián Piñera, presidente chileno, ordenou ao subsecretário de Relações Econômicas Internacionais, Rodrigo Yáñez, que se dedicasse exclusivamente a fechar acordos com os laboratórios.
Por outro lado, Honduras tem enfrentado dificuldades. Depois de uma breve redução no final do ano passado, a contaminação voltou a crescer no país, com hospitais beirando o colapso. Com quase 10 milhões de habitantes, o país acumula cerca de 167 mil casos e mais de 4 mil mortes. Houve problemas na obtenção de vacinas, mas como mantêm relações estreitas com Israel, recebeu uma doação de 5 mil doses.
Protestos no Paraguai
Grandes manifestações populares contra a gestão da pandemia pelo governo de Abdo Benítez marcaram o final da primeira semana de março na capital do Paraguai, com relatos de ao menos um morto e diversos feridos após confrontos entre manifestantes e as forças policiais. Em meio ao cenário de aceleração de contágios e internações, somada à falta de perspectiva da vacinação, a população foi às ruas demandar a renúncia de membros do governo, em especial do presidente Abdo Benítez. Logo no primeiro dia dos protestos, o ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, renunciou ao cargo e, no dia seguinte, o próprio presidente confirmou outras três baixas em seu governo. Até o primeiro dia de protestos, o Paraguai conseguiu aplicar apenas 1.775 doses em uma população de cerca de 7 milhões.
Detentor de um dos sistemas de saúde mais precários da América do Sul, o governo local decidiu fechar as fronteiras no início da pandemia, o que lhe garantiu uma boa avaliação por parte de setores da sociedade paraguaia. Mas a situação mudou diante de escândalos de corrupção e do relaxamento de medidas restritivas. Nos últimos dias, o país viu crescer violentamente o número de notificações e de internações, chegando a 1,5 mil casos por dia e passando a vivenciar um dos momentos mais dramáticos desde o início da pandemia.
A via do impeachment ainda não se mostra possível, visto que são necessários 53 votos do Congresso para a aprovação do processo. A oposição detém apenas 29 deles e o setor mais amplo do Partido Colorado, ligado ao atual presidente, parece não apoiar seu julgamento político . Mesmo assim, a situação tende a se desdobrar nos próximos dias, com previsão de colapso no sistema de saúde, o que pode desgastar ainda mais a atual administração.
Argentina e México: diplomacia sanitária
A visita oficial do presidente argentino Alberto Fernández ao México na última semana de fevereiro – embora ofuscada pelo escândalo da “vacinação VIP”, na qual integrantes do governo furaram a fila da imunização – teve como pano de fundo as tratativas da parceria firmada entre os dois países e a farmacêutica AstraZeneca, em agosto de 2020. O contrato estabelece a produção de 150 a 250 milhões de doses em colaboração com a Universidade de Oxford. A comercialização seria feita a preços mais acessíveis a países da América Latina, com exceção do Brasil que possui fabricação própria.
Na Argentina estão sendo produzidas as substâncias ativas da vacina, através do laboratório mAbxience do Grupo Insud, e no México o produto será envasado pelo laboratório Liomont.
Há uma dificuldade: a crise de oferta de produtos elementares para o acondicionamento das vacinas, como soluções salinas, vidrinhos e seringas, prejudica o desenvolvimento da produção e coloca o calendário em risco.
Empresas fornecedoras
Na corrida contra o covid-19 diversos laboratórios puseram-se a serviço das vacinas.. Segundo a OMS, existem mais de 250 medicamentos em desenvolvimento. Dessas, apenas 7 tiveram eficácia comprovada e receberam autorização para serem produzidas e distribuídas.
A Sputnik V foi a primeira a ser aprovada pela OMS, em agosto de 2020, e foi desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Gamaleya e pelo Ministério da Saúde da Federação Russa. A Moderna, norte americana, foi aprovada para uso em dezembro de 2020. O laboratório pretende prover até 1 bilhão de doses em 2021 e possui encomendas dos EUA, da União Europeia e do Canadá, entre outros países do hemisfério norte. A BioNTech-Pfizer, desenvolvida na Alemanha pela biotecnologia Biontech e a farmacêutica americana Pfizer, foi a primeira a ser aprovada para uso na UE e em outros 19 países. Essas empresas em parceria pretendem produzir 1,3 bilhão de doses para distribuir globalmente.
Também já foi produzida a vacina Covexin pela Bharat Biotech International Limited, aprovada em caráter emergencial para uso na Índia, antes mesmo de os testes da fase 3, o que tem gerado polêmica no país. Por sua vez, a Sinopharm foi produzida pela empresa de mesmo nome em Pequim, na China, e tem sido utilizada para imunização local.
Por fim, as duas últimas vacinas já em circulação são também as aplicadas no Brasil: A Coronavac, desenvolvida também na China, e a Oxford/AstraZeneca, produzida em parceria entre a Universidade de Oxford e a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca.
Pesquisas em Cuba
Cuba é o país latino-americano mais próximo de concluir o desenvolvimento de uma vacina 100% própria, e aposta todas as suas fichas nisso.
Dos quatro imunizantes lá desenvolvidos, dois deles – as vacinas Soberana 2 e a Abdala (nome em homenagem a um poema de José Martí) – estão em estágio mais avançado, já na terceira fase de testes. Além das vacinas mencionadas, Cuba vem desenvolvendo, também por meio do Instituto Finlay e do CIGB, a vacina Soberana 1, que está na segunda fase de testes, e o spray nasal Mambisa (nome de uma heroína cubana da luta pela independência).
O plano do governo Díaz-Canel é vacinar sua população de cerca de 11,3 milhões de habitantes até o fim de 2021.
É importante salientar que a aquisição de insumos e a distribuição são afetados pelo embargo estadunidense imposto desde 1962. Ainda no começo do ano de 2021, a Ilha foi recolocada na lista dos EUA como patrocinadora de grupos terroristas. O diretor do Ministério da Saúde, Néstor Marimón, afirma: “É muito difícil comprar equipamentos, insumos e medicamentos. Somos obrigados a adquiri-los em mercados muito distantes, onde os custos dobram, triplicam, e muitas vezes chegam com atraso”. Jack Ma, o fundador do grupo chinês Alibaba, doou para o governo cubano uma remessa de máscaras, kits de testes e respiradores. A empresa americana que realizou o transporte não chegou a Cuba, pois temia sofrer sanções.
O Movimento Brasileiro de Solidariedade com Cuba lançou no dia 1º de março a Campanha Mais Vacinas Soberana para que o Brasil possa adquirir a vacina cubana e busca também pressionar o Congresso Nacional pela derrubada imediata do veto presidencial ao projeto de lei que permite aos estados e municípios comprarem as vacinas.
Pesquisas no Brasil
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está envolvida na produção da vacina de Oxford, em parceria com a biofarmacêutica Astrazeneca, enquanto o Instituto Butantan é responsável pela produção da Coronavac, parceria chinesa com o estado de São Paulo. Fabricadas no país, ambas necessitam do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), importado da China. O envio sofreu atrasos recorrentes, em boa parte devido às hostilidades do governo Bolsonaro contra o país asiático. O cenário se alterou com as compras feitas pelo governador de São Paulo, João Dória.
Em entrevista ao Deutsche Welle, Dimas Covas, diretor do Butantan, reiterou a irresponsabilidade do governo federal no combate à pandemia, que atrasa a compra da Coronavac e atrapalha a distribuição das doses. O movimento popular negacionista também seria de responsabilidade do governo federal, que, segundo o diretor, utilizou-se de uma campanha subterrânea de fake news. O agravamento da doença levou o governo brasileiro a buscar vacinas prontas em outros países, como a Índia. Mesmo sendo o país com a maior produção mundial, a Índia também está enfrentando problemas na imunização de sua população, o que atrasará o envio de mais doses ao Brasil.
O descaso do governo federal em relação às vacinas e à pandemia como um todo já nos custou a vida de mais de 270 mil brasileiros. Na última terça-feira, 9 de março, o presidente da Câmara Federal Arthur Lira escreveu ao embaixador chinês, pedindo um “olhar solidário” para o Brasil. Lira afirma que o governo brasileiro não é formado apenas pelo Executivo, incapaz de manter relações diplomáticas com tão importante país do mundo.