O quadro pandêmico em África e as iniciativas de imunização no Sul Global

Por Flávio Francisco, Enrique Lima, Kethelyn Santos, Magaly Morais e Pedro Lagosta

Países africanos iniciaram o processo de vacinação, que, em alguns casos, não implica somente a obtenção e o armazenamento de imunizantes, mas a construção de uma infraestrutura adequada para conservar e deslocar os imunizantes. A OMS, em cooperação com os países, têm desenvolvido programas para a capacitação dos profissionais de saúde, que apresentam a responsabilidade de monitorar as demandas locais e respondê-las com a articulação de redes por meio da identificação de espaços apropriados para a vacinação.

O continente Africano tem se destacado nas ações de contenção do Covid-19 com os países que indicam sucessos no gerenciamento da proliferação antes mesmo da chegada de vacinas, ultrapassando países ricos e infra estruturados. O Lowy Institute disponibiliza online os principais índices de avanço e contenção do vírus. No ranking da análise onde constam 98 países, 20 destes são países em África que melhor tem respondido ao COVID-19, segundo dados do instituto.

Dentre os países considerados para avaliação deste ranking, somente foram selecionados aqueles que providenciaram relatórios completos e com estatísticas verificáveis, conforme aponta o The African Report no artigo “Which countries are responding best to the crisis”.

Ruanda no ranking aparece na 6ª posição, com o score de 80.8 sendo o primeiro lugar dentre os países africanos, seguido por Togo com 72.8 e Tunísia com 66.7. O instituto apresenta ainda outros países africanos com alto índice positivo de resposta ao Covid-19 acima da média. Na escala decrescente apresentam-se Moçambique, Malaui, Zâmbia, Uganda, Costa do Marfim, Senegal, Zimbábue, República Democrática do Congo, Madagascar e Gana com pontuação entre 60 e 50 no ranking acima da média. Com pontuação abaixo da média com cerca de 25.4 pontos estão Etiópia, Quênia, Nigéria, Namíbia, Marrocos e Líbia. A África do Sul aparece na 82ª posição do ranking, considerada baixa e negativa.

As posições dos países africanos no ranking são comparadas aos dos países ricos como Reino Unido em 66º com 37.5 pontos, França em 73º com 34.9, Rússia em 76º, com 32 e Estados Unidos em 94º com 17,3. O instituto afirma que países na África e no Oriente Médio tiveram robustas medidas de contenção do avanço inicial do progresso da pandemia, o que em grande parte justifica os resultados positivos no ranking.

Em relato mais recente, no início do mês de março, a Dra. Matshidiso Moti, diretora regional para África da Organização Mundial da Saúde, em entrevista, aponta oscilação no controle da pandemia indicando redução dos números positivos do ranking com países como o Togo e Zâmbia que apresentam aumento de contaminações e também indicam melhor controle por países de baixo ranking como a África do Sul. A diretora lembra ainda que África enfrenta dupla epidemia com Ebola e Covid-19.

Vacinas e os esforços para aquisição entre os africanos

Os países do continente africano, em grande parte, receberão vacinas da iniciativa Covax, liderada pela Organização Mundial da Saúde. Se por um lado, as potências econômicas, como os Estados Unidos, reservam quantidades de doses para além das suas necessidades, a maioria dos países do Sul Global parecia não ter condições de acessar as vacinas tão cedo. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, manifestou a sua preocupação com o que chamou de “nacionalismo da vacina”, clamando por ações internacionais para uma distribuição equitativa de imunizações. De acordo com a consultoria Economist Intelligence Unit (EIU), as vacinas não estariam disponíveis para os africanos até abril de 2022. O continente já encomendou cerca de 900 milhões de doses, mas as instituições africanas calculam que seriam necessárias cerca de 1,5 bilhões para cerca de 60 por cento de toda a população. O programa de fornecimento de vacinas Covax foi criado para providenciar vacinas para países pobres e de renda média, iniciando a primeira rodada com a distribuição de vacinas AstraZeneca e Pfizer-BioNTech. 

Cooperação técnica do Brasil com os países africanos

Diante da globalização e a redefinição da conjuntura internacional durante o pós-Guerra Fria, com a emergência de novos centros de poder regionais, o Brasil viu como oportuna para sua projeção no sistema internacional atribuir à sua agenda de política externa o paradigma da cooperação internacional e do multilateralismo, concebidos em diferentes conjunturas por diferentes governos. Dentre as medidas relacionadas a tais paradigmas, destaca-se a cooperação Sul-Sul em diversos âmbitos, sobretudo o da saúde, o qual obteve sua maior expressão durante o governo Lula, principalmente em conjunto com o continente africano.

O governo Lula contribuiu com o intercâmbio de logística e conhecimentos para fortalecer o combate a doenças, principalmente a malária e a AIDS, sendo válido destacar que alguns anos antes do mandato de Lula o Brasil capitaneou um bloco de países do Sul Global na OMC em favor da quebra de patentes de medicamentos antirretrovirais, bem como de uma maior flexibilização das regras acerca da propriedade intelectual para bens de saúde.

Em um projeto de cooperação voltado à Moçambique, o Brasil com ajuda da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi responsável pela estruturação técnica de uma fábrica de medicamentos antirretrovirais que foi escolhido pelo fato de doenças como o HIV e a AIDS serem um dos maiores problemas enfrentados pelo continente, e tinha como objetivo tornar o país autônomo no combate às doenças, em contraste à típica ajuda humanitária ineficaz por parte dos países do Norte que só contribui para o aprofundamento da dependência da região.

Além desse projeto, o Brasil se dedicou a outras iniciativas relacionadas à produção de medicamentos e vacinas para o continente africano e a investimentos de infraestrutura e expertise, incentivando o desenvolvimento da região e uma menor dependência das potências do Norte.

Diante dessa postura tradicional de liderar blocos de países em desenvolvimento em regimes de negociação comerciais e de propriedade intelectual no que se refere a patente de bens de saúde, bem como do engajamento em iniciativas de cooperação técnica em saúde, além da projeção de seu soft power através do seu programa de enfrentamento do HIV/AIDS, cuja eficiência foi reconhecida internacionalmente, é visto que o Brasil poderia empreender uma estratégia internacional de combate à pandemia através do multilateralismo e da articulação entre países em desenvolvimento.

Entretanto, é notório que a gestão Bolsonaro vem tomando decisões contrárias ao multilateralismo e à cooperação Sul-Sul, como quando o país se contrapôs à proposta liderada por África do Sul e Índia de suspensão das patentes de bens necessários ao combate da pandemia da COVID-19, além de um distanciamento progressivo das relações com África.

Esse retrocesso de décadas do paradigma tradicional da diplomacia brasileira é uma perda em termos de projeção internacional, pois a falta de articulação junto aos atores do Sul global promove um menor espaço de manobra e negociação quanto as suas demandas específicas, necessários às atuais negociações para o maior acesso a bens de saúde em função da pandemia.

Informações sobre a Covaxin e o projeto indiano de vacina

Por outro lado, a Índia tem utilizado sua grande capacidade de produção de vacinas para a execução de um projeto de combate à pandemia e efetivação de uma “diplomacia da vacina”. Sendo um dos maiores produtores de vacina do mundo, mesmo antes da pandemia, dados mostram que a Índia seria capaz de produzir 3.5 bilhões de vacinas contra o covid em 2021, com uma constante expansão da produção vindo das empresas produtoras. Tendo de lidar com a segunda maior população do mundo, o governo indiano iniciou uma larga campanha de vacinação no dia 16 de janeiro, visando vacinar 300 milhões de pessoas apenas neste ano, priorizando trabalhadores e idosos. 

Apesar do início mais lento, o programa já apresenta seus resultados: atualmente, 21 milhões de doses já foram administradas. Contudo, os esforços do governo indiano não estão apenas contidos em seu território. A Índia tem fornecido milhões de doses de vacina para outros países, por meio de sua iniciativa Vaccine Maitri. Com foco em realizar uma diplomacia em torno das vacinas, o governo indiano tem disponibilizado grandes quantidades de doses a outros países, seja pela venda comercial ou como “presentes”. Até agora, 65 países já receberam vacinas produzidas pela Índia, totalizando 57 milhões de doses.

Duas vacinas são produzidas pela Índia: a vacina Oxford-AstraZeneca, conhecida na Índia como Covishield, e a Covaxin, vacina própria da Índia. A Covaxin, porém, foi alvo de críticas em janeiro, após ter sido aprovada para uso emergencial na Índia sem ter finalizado os estudos em torno da eficácia e segurança da vacina. Bharat Biotech, produtor da Covaxin, defendeu a vacina, dizendo ter sido um apoio mútuo com o governo indiano para acelerar a aprovação da vacina. No dia 3 de março, Bharat Biotech disponibilizou os resultados da fase 3 das triagens da Covaxin, apontando que a vacina possui uma eficácia de 81% contra o Covid-19, após ter sido testada em um grupo de 25.800 participantes. O primeiro país africano a aprovar a vacina indiana foi Zimbabué, anunciado por uma postagem no twitter da embaixada indiana no país.

Brasil e os tratos sobre a Covaxin 

Em mais um episódio de relações diplomáticas com a Índia, o governo Bolsonaro tropeça no combate ao Covid-19. Em janeiro deste ano, ao tentar explorar a rasa relação criada com Ram Nath Kovind (atual presidente da Índia), Jair Bolsonaro se deparou com o nacionalismo indiano e impeditivos políticos para obter a vacina de Oxford através de laboratórios no país. Atualmente, o Ministério da Saúde reporta que há 8 milhões de doses prontas da vacina produzida pela AstraZeneca (laboratório britânico), bloqueadas no país asiático. Algo alarmante em um momento que o Brasil acumula recordes na média móvel de mortes diárias.

Com a tentativa de obtenção da vacina britânica estagnada, o governo brasileiro aposta em uma alternativa com a Covaxin (produzida pelo laboratório Bharat Biotech, na Índia). Dessa vez, as barreiras se dão internamente, onde a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) contrapõe-se à vontade do Estado de obter a vacina. O Ministério da Saúde já anunciou a compra de 20 milhões de doses, mesmo sem aprovação do órgão regulador. Com a chegada de 8 milhões de doses programadas para abril e mais 4 milhões em maio, também será necessária uma aceleração na aprovação de uso emergencial do imunizante. Assim como a vacina russa Sputnik V, a Covaxin enfrenta grande incerteza no cenário internacional acerca de sua eficácia e métodos de teste. Apesar do receio das equipes técnicas, a chegada desse volume de doses, no atual cenário pandêmico, traz grande alívio para os governadores que enfrentam hospitais lotados e o crescente número de mortes.

Com o programa de vacinação avançando na Índia e um projeto de diplomacia da vacina em vigor, espera-se que, apesar dos tropeços de Jair Bolsonaro, ocorra uma maior cooperação indiana a favor dos brasileiros. Para além da ajuda internacional, a Anvisa continua alertando para a importância da produção nacional das vacinas, o que reforça a insegurança técnica perante a Covaxin.

Iniciativa Covax e Covaxin em África

Dessa forma, os países africanos iniciaram o processo de vacinação, que, em alguns casos, não implica somente a obtenção e o armazenamento de imunizantes, mas a construção de uma infraestrutura adequada para conservar e deslocar os imunizantes. A Organização Mundial de Saúde (OMs), em cooperação com os países, têm desenvolvido programas para a capacitação dos profissionais de saúde, que apresentam a responsabilidade de monitorar as demandas locais e respondê-las com a articulação de redes por meio da identificação de espaços apropriados para a vacinação.  A OMC já havia coordenado a fase de testes de vacinas no continente, estabelecendo antecipadamente os termos para a cooperação com 42 países. A força tarefa, que também conta com a participação da União Africana, pretende vacinar 20 por cento da população africana com cerca de 600 milhões de doses.

Gana, Quênia, Ruanda e Lesoto foram os primeiros países a receber as vacinas financiadas pela Covax, Angola e São Tomé e Príncipe também já tinham agendado a entrega. A outra alternativa que aparece em relação a iniciativa da Covax é justamente a distribuição da indiana Covaxin. O Zimbábue, como observado anteriormente, foi o primeiro país africano a autorizar a vacina. Gana, Ruanda, Costa do Marfim, Senegal e a República Popular do Congo devem seguir o mesmo passo, segundo Anurag Shrivastava, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Índia.

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