24 de abril de 2021
Por Gilberto Maringoni
O 8º Congresso do Partido Comunista de Cuba promove uma radical mudança geracional na cúpula da agremiação e da direção do Estado e tenta fazer frente a uma confluência de crises tão profundas quanto ao mergulho recessivo do “período especial”, nos anos 1990
A face mais visível das deliberações aprovadas pelos cerca de 300 delegados presentes ao 8º. Congresso do Partido Comunista de Cuba, realizado no Palácio de Convenções, em Havana, foi umamudança geracional no comando político da Ilha. O New York Times de segunda, 19 de abril, não vacilou em provocar, num título de primeira página: “Cuba sem um Castro; país caminha para o desconhecido”. O artigo interno exibia notícia prevista há quase três anos: saem os octogenários que protagonizaram a Revolução e entra uma geração formada politicamente entre os anos 1970-90, e que viveu o fim da União Soviética como retaguarda estratégica do socialismo cubano. A marca maior é a troca de comando entre o ex-presidente Raúl Castro, 89, e o engenheiro eletrônico Miguel Díaz-Canel, 60. Dois anos após assumir a presidência da República, ele se torna primeiro-Secretário do Partido Comunista, após uma trajetória de quase quarenta anos nas estruturas da agremiação e do Estado.
Apesar da diferença de idade, Díaz-Canel não é um novato. Em seu discurso final, Raúl Castro assinalou que o dirigente eleito não é fruto de improvisação, mas de uma escolha criteriosa: “Passou com sucesso, durante 15 anos, como primeiro-secretário do Partido nas províncias de Villa Clara e Holguín, após o que foi nomeado ministro do Ensino Superior, vice-presidente do Conselho de Ministros e primeiro vice-presidente dos Conselhos de Estado e Ministros, posições que combinou com a atenção da frente ideológica do partido”.
Canel integra “a primeira [geração], na história do país, a ter acesso maciço aos estudos superiores”, nas palavras de Leonardo Padura, o mais importante escritor cubano da atualidade, em Água por todos os lados (Boitempo, 2020). Tal feito profissionalizou a gestão do Estado, e criou também expectativas profissionais nem sempre atendidas em um país isolado pela maior potência planetária.
Três tristes crises
O regime é desafiado pela confluência de três abalos sérios. São eles a retração de quase 30% do fornecimento de petróleo em condições vantajosas por parte da Venezuela desde 2015, do cerco econômico imposto por Donald Trump e por mais de um ano de pandemia, que desestruturou a indústria do turismo. A situação só encontra paralelo no período especial, entre 1992-94, logo após o desmonte do socialismo do leste europeu. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), o PIB encolheu 8,5% em 2020. Para o Banco Mundial, a retração foi ainda maior, alcançando 11%.
A restrição no fornecimento de petróleo acarreta a redução do fornecimento de energia, num país movido a termelétricas. Tal limitação implica limitações no funcionamento de empresas, de escolas e encurtamento de horas trabalhadas, além de cortes nos sistemas de transporte. Num efeito cascata, a oferta de alimentos e gêneros de primeira necessidade também fica comprometida.
O cerco estadunidense contra Cuba, por sua vez, foi endurecido em junho de 2017, no início do governo Trump. O novo presidente regrediu várias casas na política de aproximação empreendida por Barack Obama, a partir de fevereiro de 2014. O republicano limitou a permissão para a realização de viagens entre os dois países, bem como remessas bancárias, tratados comerciais e iniciativas nas áreas de segurança e cultura. Tais iniciativas culminaram com o lançamento de 191 medidas restritivas, no final do ano passado. No final de 2020, a Ilha voltou a integrar o grupo de países “patrocinadores do terrorismo”, categoria do Departamento de Estado da qual ela havia sido retirada na gestão Obama.
O derretimento do peso
Um dos efeitos mais evidentes desses abalos é a desvalorização da moeda nacional e a aceleração da inflação. Um país escassamente industrializado e dependente da entrada de divisas não tem muitas margens de manobra. A iniciativa oficial foi abolir o sistema de moeda dupla – o peso e o peso conversível, indexado ao dólar -, adotado em 1994, quando o turismo passou a ser a mais importante fonte de ingressos no país. A nova situação traz vários problemas, ao permitir a livre circulação da moeda estadunidense, o que facilita várias atividades s, ao mesmo tempo em que acentua distorções. Quem não recebe remessas de parentes no exterior vê seu poder aquisitivo cair a cada mês.
Os anos do segundo Castro na direção do país (2008-18) foram marcados por alguma flexibilização de atividades privadas – propriedade, trabalho e comércio –, por uma maior abertura a investimentos externos e pela difusão da internet no país.
Ainda é incerta a postura de Joe Biden em relação a Havana. Em 9 de março último, a porta voz da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou que a posição de Washington deverá ser revista, “tendo por Norte a defesa dos direitos humanos e da democracia”.
Apesar do tom genérico, é possível haver algum abrandamento nas decisões dos republicanos, como escreveu Richard E. Feinberg na Foreign Affairs, em fevereiro. Para isso, “Biden e seus conselheiros terão que se libertar do medo paralisante de entrar em conflito com exilados cubano-americanos furiosos, um cálculo político que leva invariavelmente à incoerência política e à frustração diplomática”, diz ele.
Seguramente, Feinberg olha para os resultados eleitorais da Flórida, no ano passado. Trump venceu Biden por 51,2% a 47,9% e levou todos os 29 delegados locais para o colégio eleitoral. Embora a diferença seja pequena e os democratas busquem sempre fazer concessões à comunidade cubana, o estado tradicionalmente dá vitória aos republicanos, mas não garantiu a eleição de Trump. A Flórida tem dois senadores republicanos, um governador republicano e uma legislatura de maioria também republicana.
Professor de Relações Internacionais na Universidade da Califórnia e ex-assessor de Bill Clinton para assuntos de Segurança Nacional, Feinberg costuma expressar o pensamento médio dos democratas em relação à América Latina. Entusiasta das iniciativas pré-Trump, ele continua: “Quando Obama visitou a ilha em março de 2016, o exemplo de um jovem presidente negro inspirou muitos cubanos a se perguntar por que seu país não havia produzido tais líderes”.
É possível que tal percepção tenha influenciado a nova composição do birô político do Partido Comunista, integrado por 14 membros, entre os quais três mulheres e quatro negros. “É ainda insuficiente”, reconheceu Raúl Castro, no Congresso.
Cerca de 300 delegados se reuniram sob o slogan “Unidade e continuidade”, a indicar que alterações de rotas serão realizadas com o máximo de cuidado, para que a economia não seja tragada pela agressiva dinâmica do mercado global. Raúl, em seu discurso reconheceu parte dos problemas, como a necessidade de aumentar a produtividade e a eficiência tanto na indústria quanto nos setores de serviço controlados pelo Estado. No entanto, as resoluções divulgadas são pouco claras em medidas concretas.
O combate à pandemia
Apesar das imensas dificuldades, Cuba realiza um feito inigualável na periferia do mundo: desenvolve cinco vacinas contra a Covid. A vacinação em massa começa neste final de semana. Até o início desta semana, o número de mortes pela doença chegava a 531, segundo o site Our world in data. Eram 90 óbitos por milhão de habitantes, menos de um terço do indicador brasileiro, que alcança 309, e bem abaixo da Alemanha (244), Canadá (233) e Estados Unidos (203). Para um país pobre e de poucos recursos, é um feito espetacular, obtido a partir de políticas de isolamento social e manutenção de recursos nas mãos das pessoas, mesmo que em quantias mínimas.
As resoluções do Congresso possibilitarão ao país sair do precipício econômico em que se encontra? Difícil dizer. Sem indústrias de alta tecnologia e com reduzida influência na cena global, o passaporte para dias melhores não se limita apenas a boas ideias. As projeções do FMI para os países de baixa renda – entre os quais Cuba se insere – são de um recuo médio de 5,7% no PIB per capita no período compreendido entre 2020 e 2024.
Em tom realista, o novo primeiro-ministro Manuel Marrero, resumiu a situação em entrevista ao New York Times, no início do mês: “O problema é que as pessoas não comem planos”.