29 de junho de 2021
Por Bruno Castro, Gabriel Carneiro, Giorgio Romano, Hanna Campeche, Leonardo Poletto e Nicolas Modesto (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
As reservas internacionais e a situação brasileira
As reservas internacionais consistem em um estoque de moedas estrangeiras acumulado pelo Banco Central do Brasil, que varia conforme os resultados do balanço das contas externas brasileiras. Toda vez que um estrangeiro vem fazer uma compra de algum produto nacional, realizar alguma aplicação ou algum investimento no país, este chega com uma moeda estrangeira, que é guardada aqui e recebe um valor correspondente em real brasileiro. De maneira semelhante, quando se realiza uma importação ou um investimento externo, é necessário converter certo valor em real para uma moeda estrangeira. Assim, quando a balança fecha positivamente acumula-se um estoque de moeda estrangeira, denominado reservas internacionais. Tais reservas são importantes para evitar que o país passe por crises econômicas decorrentes de restrições externas – situações em que falta ao país moeda estrangeira para realizar transações internacionais e que culminam na desvalorização da moeda nacional – e também para controlar flutuações e instabilidades da taxa de câmbio, em particular aquelas provocadas por ataques especulativos.
Entretanto, atualmente o Brasil está longe de sofrer com um destes problemas, sendo que seu estoque de reservas internacionais está entre os dez maiores do mundo, com um valor equivalente a um total de US$353,44 bilhões. Estas reservas, ao contrário do que muitos imaginam, não ficam “paradas” no Brasil. O Banco Central investe a grande maioria delas em títulos do governo dos Estados Unidos, financiando assim o endividamento público da maior economia do mundo.
A manutenção dessas reservas em dólares aplicados em títulos da dívida pública dos EUA garante grande liquidez e, conforme já destacado, segurança diante de um ataque especulativo, algo importante especialmente para um país periférico como o Brasil. Alguns falam em “seguro obrigatório”. No entanto, é válido debater a respeito da necessidade de manter um volume tão grande de reservas apenas em títulos da dívida estadunidense, que apresentam rendimentos muito baixos. O que o Brasil poderia fazer com parte desses recursos?
O que o Brasil poderia fazer com parte das reservas internacionais?
Uma primeira possibilidade consistiria na reinternalização de parte desses dólares, convertendo-os em reais, e injetando na economia brasileira – tal como foi proposto em alguns programas econômicos nas eleições de 2018 – para obras de infraestrutura como saneamento, transporte, energia e moradia.
Outra opção de uso das reservas que será aprofundada aqui é transferir parte deste estoque de moedas estrangeiras para um Fundo Soberano para operar lá fora, algo já praticado por diversos outros países que possuem uma ampla quantidade de reservas internacionais. No caso particular do Brasil, seria utilizada parte das reservas internacionais para reativar o Fundo Soberano do Brasil (FSB) para realizar investimentos em dólares.
Em seguida vamos retomar a curta vida do FSB e analisar dois casos de fundos soberanos internacionais que ilustram as maneiras com quais este pode ser gerido.
O antigo Fundo Soberano do Brasil
O profícuo ciclo de exportação de commodities do começo do milênio, a entrada de volumosos fluxos financeiros e de investimentos levaram a um acúmulo crescente de reservas internacionais. O Brasil, que sofreu durante muito tempo com a dívida externa, tinha se tornado um credor em dólar. Com a chegada da crise financeira internacional de 2008, houve um risco de fuga de capitais e grande instabilidade financeira, acendendo os temores em torno da possibilidade de uma situação de grande vulnerabilidade e de crise cambial. Mas as reservas foram mais que suficientes para que o Brasil resistisse.
Tendo o acúmulo de reservas e os exemplos de sucesso internacional, o governo brasileiro, então sob o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em 24 de dezembro de 2008, inaugurou o Fundo Soberano do Brasil (FSB) por meio da Lei nº 11.887. Além das reservas adquiridas por meio de superávits primários da balança comercial, era também possível às empresas públicas brasileiras transferirem recursos para o fundo, sendo que esperava-se que, no médio e longo prazo, os ganhos econômicos da Petrobras com o pré-sal fossem transferidos para o fundo.
A concepção desse fundo público, então vinculado ao antigo Ministério da Fazenda, ambicionava mitigar os efeitos dos ciclos econômicos, promover investimentos em ativos nacionais e internacionais, formar poupanças públicas e fomentar projetos no exterior de interesses estratégicos para o Brasil. Neste sentido, à época, o Fundo Soberano do Brasil era uma novidade ao pretender não apenas aumentar os rendimentos das reservas e garantir maior estabilidade da balança de pagamentos brasileira, mas também utilizar seus rendimentos como instrumento fiscal anticíclico e financiador de projetos de investimento de longo prazo.
Em sua concepção legislativa, o projeto pretendia consolidar-se, até 2023, como um instrumento eficaz de gestão de riqueza soberana. Contudo, foi encerrado em 2018, no governo de Michel Temer, por meio de uma Medida Provisória (MP), tendo os seus recursos transferidos para o pagamento de juros da dívida pública.
Os defensores da necessidade de se reativar o FSB apontam para a experiência positiva de outros fundos soberanos, em particular aqueles financiados amplamente por rendas decorrentes da exploração de petróleo (exemplo do fundo norueguês), e também aqueles geridos por outras nações que acumularam volumosas reservas internacionais, como o fundo soberano chinês.
Os fundos soberanos mundo afora: os exemplos dos fundos norueguês e chinês
Muitos países exportadores de petróleo costumam criar fundos soberanos para destinarem as reservas acumuladas dos superávits de exportação, sendo o fundo soberano da Noruega – o maior do mundo – o principal exemplo. O fundo surgiu com o objetivo de garantir que os benefícios relacionados à exploração do petróleo retornassem à população norueguesa, seja financiando programas sociais – principalmente a previdência norueguesa – e políticas públicas para quando este recurso natural se esgotar. O fundo possui, atualmente, uma riqueza que corresponde a cerca de 240 mil dólares por norueguês, sendo a maior parte dos investimentos alocados em ações, seguidos por propriedades e ativos de renda fixa. O fundo opera sob rígidas regras, que provavelmente garantiram o sucesso do fundo. Um exemplo é que não é permitido gastar centavo algum do capital, apenas de seus rendimentos.
A China, por sua vez, também possui o segundo maior fundo soberano (China Investment Corporation, CIC) financiado pelos seus superávits na balança comercial, criado em 2007. O objetivo do fundo é maximizar seus rendimentos e retorná-los ao governo chinês para que este os aloque para as finalidades determinadas pelos planos de desenvolvimento do país.
Os exemplos norueguês e chinês ilustram dois modelos distintos de Fundos Soberanos na sua forma de atuação. Enquanto o modelo norueguês possui finalidades fixas e opera sob regras estritas que visam unicamente a rentabilidade do fundo, o chinês é utilizado de forma mais proativa pelo governo chinês ligado a sua expansão internacional, sem descuidar da rentabilidade.
Neste sentido, enfatiza-se que há várias formas de se operar um fundo soberano, tanto no que diz respeito a estratégia de investimento, quanto ao destino dos rendimentos. Por exemplo, um fundo soberano pode operar com ações em bolsas de valores ou por meio da realização de financiamento de projetos no exterior que são de interesse estratégico para a inserção internacional do país ou para oferecer crédito a empresas nacionais que almejam se internacionalizar.
Recriando o Fundo Soberano brasileiro: atuação estratégica internacional e retornos sociais para os brasileiros
Essas experiências podem alimentar uma reflexão no Brasil no intuito de mobilizar uma parte das reservas internacionais de forma mais produtiva. Isto é, realizar investimentos no exterior com o Fundo Soberano no intuito de aproveitar melhor desta riqueza, sem descuidar da necessidade de ter ´munição´ suficiente e disponível para resistir a turbulências financeiras.
Tendo-se em vista a condição periférica do Brasil, consideramos que a reativação do FSB poderia atuar de forma estratégica, não pensando apenas nos retornos financeiros dos rendimentos, mas realizando investimentos visando a uma inserção em prol do desenvolvimento nacional e a integração regional, atuando de forma estratégica em outros países e contribuindo para a internacionalização das empresas brasileiras e, ainda assim, trazer maior rentabilidade financeira que os títulos da dívida pública dos EUA.
Um primeiro exemplo possível de atuação do FSB seria a renacionalização de empresas estratégicas brasileiras privatizadas ou parcialmente privatizadas via mecanismos de mercado. Isto é, a compra, por parte do fundo, de ações dessas empresas cotadas nas bolsas de valores estrangeiras, particularmente a de Nova Iorque. Um exemplo seria a da própria Petrobras, o que possibilitaria ao Estado brasileiro maior controle sobre as rendas do Pré-Sal, sobre a cadeia de refino e comercialização de derivados no mercado brasileiro, e maior soberania energética, além de ser uma empresa com alta capacidade de dinamização da economia nacional.
Seguindo a atuação de alguns fundos estrangeiros que têm atuado no Brasil nos últimos anos comprando ativos, participações de empresas brasileiras e realizando outros tipos de investimentos – como a compra da Refinaria Landulpho Alves (RLAM) da Petrobras pelo Fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos -, o Brasil também poderia utilizar o seu fundo soberano para adquirir ativos e participações em setores estratégicos no exterior. Outra forma de contribuir para a internacionalização de empresas brasileiras seria por meio da criação de uma linha de financiamento em dólares, como já existiu pelo BNDES, visando melhorar a capacidade exportadora e a posição nas cadeias globais de valor. É o que os EUA e a China fazem por meio do seu Eximbank. Ainda nesta linha de atuação, o fundo poderia promover o financiamento de projetos de infraestrutura na América do Sul, participando da retomada dos projetos da Cosiplan-IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana), que reforçariam simultaneamente a economia brasileira e a integração regional sul-americana.
Os rendimentos do Fundo Soberano Brasileiro obtidos com os investimentos em dólares no exterior – e reforçamos que os investimentos propostos resultariam todos em retornos financeiros maiores que os juros dos títulos da dívida pública dos EUA – poderiam ser então reinternalizados na economia brasileira em gastos não correntes. Isso significa que esses recursos, convertidos em reais, seriam destinados a programas, políticas e projetos específicos de desenvolvimento social para os brasileiros.
Os programas estruturais de combate à pobreza seriam um primeiro exemplo de uso dos rendimentos do fundo soberano no âmbito nacional, com impacto de forma imediata na qualidade de vida da população brasileira. Os rendimentos poderiam ser destinados para projetos de infraestrutura em áreas como habitação, educação e saúde, ou ainda, utilizados para a transição da economia brasileira para uma matriz mais verde e sustentável.
Foram levantados aqui apenas alguns exemplos de atuação estratégica que uma reativação do Fundo Soberano do Brasil poderia ter e como os seus rendimentos poderiam ser utilizados para contribuir com o desenvolvimento econômico e social, promover uma inserção econômica brasileira mais soberana e, paralelamente, trazer retornos sociais para os brasileiros com os rendimentos financeiros destes investimentos. A questão principal é que é possível combinar um uso muito mais estratégico e proativo de parte das reservas internacionais com a recriação do Fundo Soberano do Brasil.
Reconhecemos que este é um assunto complexo, mas necessário, que precisa ser discutido publicamente pela sociedade brasileira.
Publicado originalmente em 25 de junho de 2021 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.