24 de agosto de 2021
Por Rafael Almeida Ferreira Abrão, Vanessa Cristina Pitondo Rodrigues, Vitor Gabriel da Silva e Vitor Hugo dos Santos
(Foto: Agência Senado)
A incapacidade de conduzir uma política externa coerente com os interesses nacionais, provocou reações de diferentes atores políticos, que passaram a buscar ativamente criar uma política de redução de danos, contrariando posturas e declarações de membros do governo federal, e na maioria dos casos, do Presidente da República. Além disso, tentaram dar curso às iniciativas de cooperação em temas prioritários, particularmente aos relacionados à crise sanitária, que diante da gravidade do cenário pandêmico no Brasil teve a situação agravada pelo negacionismo científico e pela xenofobia ao lidar com a China
O governo de Jair Bolsonaro indicou como seria o papel do Itamaraty antes mesmo de sua eleição. Em seu Plano de Governo, a seção ‘O novo Itamaraty’ destacou que o Brasil deixaria de “louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália” e, em outro trecho, que “países que buscaram se aproximar, mas foram preteridos por razões ideológicas, têm muito a oferecer ao Brasil […]”. Tornou-se evidente que havia grandes chances de que o Itamaraty passasse a se alinhar com as políticas e pretensões estadunidenses, o que de fato aconteceu. Além disso, todos os eixos abordados no documento contam com elementos conservadores, especialmente religiosos e de extrema-direita, norteando as propostas.
Antes de se tornar Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo defendia as posições do presidente dos EUA, Donald Trump (2017-2020), principalmente as relacionadas aos ‘símbolos ocidentais’, o papel da religião judaica-cristã e a negação do ‘globalismo’, que podem ser encontradas em seu texto Trump e o Ocidente. Não foi nenhuma surpresa que, ao assumir o cargo, Araújo adotou um papel de subordinação explícita aos EUA, o que foi acentuado em questões relacionadas à pandemia de Covid-19.
Além de incentivar a ingestão de medicamentos ineficazes contra a doença, desprezar o distanciamento social e o uso de máscara, o Presidente Bolsonaro, o Ministro de Relações Exteriores e outros membros do governo federal, adotaram uma retórica de constante ataque à China, que acabou por criar atritos nas relações entre os dois países. A flagrante ineficiência na condução da pandemia, na compra de vacinas (dos mais variados laboratórios) e de materiais hospitalares, fez surgir soluções de atores de esferas subnacionais.
Atores subnacionais ampliam seu papel nas relações Brasil-China
Em abril de 2021, Carlos França foi conduzido ao cargo de Ministro das Relações Exteriores, mostrando uma postura mais neutra e afirmando que não haveria preferências diplomáticas na política externa brasileira. França ensaiou a adoção de uma política mais pragmática, defendendo a ampliação do diálogo e da cooperação entre os dois países. Apesar das retóricas anti-China promovidas pelo governo Bolsonaro, as relações bilaterais entre os dois países prosseguiram se expandindo, tanto no âmbito econômico, por meio de fluxos de comércio e investimentos, como também por meio de outras formas de cooperação internacional.
Fortaleceu-se a cooperação com a China em questões sanitárias, como a importação de insumos e produção de vacinas contra a Covid-19, além de suprimentos e equipamentos hospitalares em geral, e tecnológicas, em que se avançou em discussões sobre economia digital e na implementação da tecnologia 5G.
Neste contexto, observa-se uma maior autonomia de atores subnacionais, como contraponto ao discurso negacionista e xenofóbico promovido por Bolsonaro, como o Consórcio do Nordeste, que se reuniu com o Embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, para buscar uma solução ao atraso no envio dos insumos necessários para a produção das vacinas. Com propósito semelhante, os prefeitos que integram o Consórcio Nacional de Vacinas das Cidades Brasileiras (Conectar) se reuniram com Yang Wanming para solicitar apoio na importação de 6 milhões de doses de vacinas da Sinopharm, buscando abrir um canal de diálogo entre os Executivos municipais e os laboratórios chineses, suprindo o vazio deixado pelo Itamaraty nas negociações e coordenações para atender a demanda interna.
Repetindo o destaque que teve ao longo de 2020, o Estado de São Paulo continuou com certo protagonismo e concentrou a maior parte das iniciativas de cooperação com a China durante a pandemia. A parceria entre o Instituto Butantã e o laboratório Sinovac Biotech para desenvolvimento do imunizante CoronaVac, um dos mais aplicados no Brasil, tornou-se o maior símbolo da cooperação Brasil-China em questões sanitárias.
Destaca-se ainda que a 6ª edição da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que tem como objetivo estratégico promover a parceria estratégica Brasil-China em suas vertentes econômico-comercial, tecnológica e de cooperação para o desenvolvimento, está prevista para ser realizada em setembro deste ano, sob comando do vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, e o vice-presidente da China, Wang Qishan. Internamente, discute-se a realização de uma reunião, para explorar novas parcerias comerciais, tratar de questões ambientais e promover parcerias na área de Ciência & Tecnologia (C&T), enfatizando temas como inteligência artificial, cidades inteligentes, setor espacial e intercâmbio de cientistas e pesquisadores.
Cresce a necessidade da diplomacia parlamentar
Além da esfera executiva, é válido apontar que o vácuo diplomático deixado pelo Itamaraty fomentou uma maior presença de membros do legislativo brasileiro. O Grupo Parlamentar Brasil-China, composto por 52 parlamentares de 15 partidos, tem como objetivo incentivar as relações bilaterais entre os legislativos de ambos os países. Entretanto, diante da crise sanitária ocasionada pela Covid-19, aliada aos desconfortos ocorridos nas relações entre ambos os países, as atividades do grupo começaram a se tornar mais amplas e com comportamentos destoantes das praticadas pelos atores do executivo.
Em janeiro de 2021, o negacionismo e a aversão de Bolsonaro em cooperar com agentes chineses, fez os parlamentares pedirem informações ao embaixador chinês sobre o envio de insumos para a produção de vacinas no Brasil, por receio de atrasos no processo de imunização do país. No mês seguinte, através de uma audiência organizada pela senadora Kátia Abreu (PP-TO), o grupo parlamentar se reuniu novamente com o embaixador para discutir a viabilidade e distribuição dos insumos no Brasil.
Em março, logo após Bolsonaro ter insinuado em uma conferência oficial que estaríamos vivendo uma guerra química/ biológica promovida pela China, o presidente do grupo parlamentar, Fausto Pinato (PP-SP) rapidamente lançou uma nota afirmando que Bolsonaro poderia estar sofrendo com uma ‘grave doença mental’ que estaria fazendo com que ele confunda ‘realidade com a ficção’.
No dia 23 de fevereiro, Kátia Abreu foi eleita presidente da Comissão das Relações Exteriores e Defesa (CRE) do Senado Federal. Em seu discurso oficial, a senadora destacou a importância das relações sino-brasileiras, apontando que o Brasil é o país ocidental com maior superávit comercial com Pequim, e que pretendia estreitar ainda mais as trocas comerciais entre ambas as nações. Sua posição, mais favorável à China, não foi deixada de lado por atores bolsonaristas. No dia 28 de março, o ex-chanceler, Ernesto Araújo, insinuou em suas redes sociais que a senadora havia pressionado para que o diplomata facilitasse a entrada de empresas chinesas no leilão do 5G em território brasileiro. Sua fala foi rebatida com duras críticas por diversos membros do Senado, que exigiram a demissão do chanceler, e pela própria senadora.
Durante o depoimento de Araújo na CPI da Covid, a senadora voltou a realizar críticas sobre o modo em que o ministro conduziu as relações Brasil-China durante sua gestão no Itamaraty. Kátia Abreu também manifestou preocupação, logo após a declaração de Bolsonaro realizada no dia 5 de março de que a China teria criado o coronavírus intencionalmente, convocando imediatamente uma audiência com Carlos França para discutir o futuro das relações exteriores do Brasil e evitar possíveis problemas futuros com a China, especialmente na entrega de imunizantes. O chanceler afirmou que não estariam ocorrendo tais problemáticas nas relações do Brasil com o país asiático.
A ocupação do vazio diplomático criado pelo novo Itamaraty
Fica claro que a postura do Itamaraty mudou a partir do governo Bolsonaro. Anteriormente, a diplomacia brasileira adotava uma posição pragmática e era conhecida por sua postura conciliatória. Buscava-se se afastar de atritos com outras nações, inclusive em situações em que permaneciam divergências ideológicas e, sobretudo, que o Brasil assumisse cada vez mais o papel de protagonista no cenário internacional. A política externa de Bolsonaro inverteu tais premissas, tornando o país um pária internacional. Nas relações Brasil-China, apesar do crescimento sustentado do ponto de vista comercial, o governo federal segue criando diversos atritos diplomáticos com a chancelaria chinesa.
A incapacidade de conduzir uma política externa coerente com os interesses nacionais, provocou reações de diferentes atores políticos, que passaram a buscar ativamente i) criar uma política de redução de danos, contrariando posturas e declarações de membros do governo federal, e na maioria dos casos, do Presidente da República; ii) dar curso às iniciativas de cooperação em temas prioritários, particularmente aos relacionados à crise sanitária, que diante da gravidade do cenário pandêmico no Brasil teve a situação agravada pelo negacionismo científico e pela xenofobia ao lidar com a China. Dessa forma, novos atores têm ganhado cada vez mais protagonismo nas relações Brasil-China em detrimento da atuação do Itamaraty, que mesmo com a troca de Ernesto Araújo por Carlos França, continua apoiado por ideias de extrema direita e submisso aos interesses dos Estados Unidos.