Embates na ONU evidenciam isolamento internacional de Bolsonaro

05 de outubro de 2021

Por Aycha Raed Kardel Sleiman, Caio Vitor Spaulonci, Felipe Augusto de Freitas Morales e Gilberto M. A. Rodrigues
(Foto: CNN)

Evidências de Bachelet versus o discurso de fake news de Bolsonaro na ONU.

Uma das evidências de que com Bolsonaro o Brasil se tornou um pária internacional é a de que pelo segundo ano consecutivo a Alta Comissária da ONU, Michelle Bachelet, incluiu o Brasil na lista de países com cenários preocupantes¹. Os temores indicados pelo relatório giram em torno da diminuição da liberdade democrática no país, e da progressiva violação dos direitos dos povos indígenas.

A declaração de Bachelet aconteceu uma semana depois dos protestos de 7 de Setembro no Brasil, data em que a comunidade internacional observava atentamente uma possível ruptura da ordem democrática no país. Ainda que não tenha se concretizado, o movimento foi marcado por falas de intimidação, e críticas direcionadas ao Supremo Tribunal Federal², situação pelo qual o próprio presidente Jair Bolsonaro teve de se retratar posteriormente, temendo consequências políticas e agravamento da crise entre os Poderes.

Sobre o estado da democracia no país, Bachelet citou o Projeto de Lei de Antiterrorismo no Brasil (PL1595/19). Criado por um deputado do PSL (ex-partido de Jair Bolsonaro), o projeto foi alvo de inúmeras críticas, pois amplia a interpretação do crime de terrorismo³, o que possibilita a aplicação do texto em manobras de censura e repressão a diversas formas de manifestação.

Em relação ao contexto indígena, Bachelet manifestou preocupação com os recentes ataques contra os povos Yanomami e Munduruku, e as políticas ambientais que promovem a diminuição de direitos dos povos indígenas, destacando ainda a votação da tese do “marco temporal”.  Colocada em discussão através de um Recurso Extraordinário em tramitação no Supremo Tribunal Federal, a tese determina que os povos indígenas têm direito de reivindicar somente as terras que já ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira de 1988. 

A intervenção presidencial

Como contraponto à abalizada posição de Bachelet, o governo brasileiro quis mostrar outra perspectiva no discurso de abertura da 76ª sessão da Assembleia Geral da ONU. O presidente Jair Bolsonaro, então, ocupou o parlatório da ONU, em Nova York, com uma fala desconectada da realidade e atada à sua ideologia de ultradireita: afirmações sobre políticas de combate ao desmatamento bem estruturadas, cumprimento dos direitos humanos de povos originários, e coesão social. Bolsonaro afirmou que 14% do território nacional é reservado aos povos indígenas, que “vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades.”⁴ 

A fala de Bolsonaro foi qualificada por diplomatas estrangeiros como fake news speech (discurso de fake news), evidenciando a notória perda de credibilidade do governo nos foros multilaterais e seu crescente isolamento internacional em temas centrais como combate à pandemia e ao aquecimento global.

Concessão de visto humanitário para afegãos: discriminação religiosa no acolhimento?

A retirada desastrosa das forças estrangeiras do Afeganistão após vinte anos de ocupação militar provocou uma crise humanitária e uma consequente corrida contra o tempo para a evacuação de estrangeiros e de afegãos potencialmente visados pelo grupo islamita Talibã, que tomou o poder no país após o cerco a Cabul em 15 de agosto passado. 

Já na primeira semana de setembro, o Itamaraty divulgou nova portaria acerca dos vistos humanitários para cidadãos afegãos, no qual estabelece que “mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares”⁶ teriam prioridade na obtenção dos vistos. Não foi o que Bolsonaro apresentou em sua fala em Nova York. 

Enquanto os Estados Unidos pressionam o Brasil a receber refugiados do país centro-asiático⁷, Bolsonaro frisou em seu discurso na ONU que “cristãos, mulheres, crianças e juízes (sic) afegãos” seriam contemplados com a concessão de vistos humanitários. Tal fala indica uma possível seletividade na concessão dos vistos, de acordo com a filiação religiosa – o que alguns  indicam como “aceno aos evangélicos”⁸.

A população afegã de confissão cristã é ínfima; de acordo com o Escritório de Liberdade Religiosa Internacional, compreendem menos de 0,3% da população. Ainda que a preocupação com a segurança de minorias religiosas seja válida (e a perseguição religiosa constitua uma das motivações para concessão de asilo, de acordo com o Direito Internacional dos Refugiados), se pensarmos no histórico de intolerância religiosa do Talibã, outros grupos estariam mais ameaçados do que os cristãos – principalmente os muçulmanos xiitas, majoritariamente pertencentes à minoria étnica hazara, vítima histórica da violência do grupo islamita. Quando o grupo tomou a cidade de Mazar-i Sharif, em 1998, 8 mil pessoas pertencentes ao grupo foram sistematicamente assassinadas⁹. Apenas em 2021, antes mesmo da tomada do governo central pelos guerrilheiros do Talibã, mais de 100 hazaras, entre crianças, parturientes e recém-nascidos, foram vitimados por ataques do grupo em escolas e hospitais.

Após o pronunciamento do presidente, o Ministério das Relações Exteriores procurou amenizar a sua fala, pontuando que “o senhor Presidente da República elencou hipóteses que poderão ser enquadradas nos vistos a serem concedidos. No caso do Afeganistão, a minoria cristã constitui grupo em particular situação de risco (…)”. Tal fato indica mais exemplo da forte interferência da agenda pentecostal na política externa brasileira; ainda que permaneça no campo do discurso, a fala de Bolsonaro é reflexo de uma política que vem contribuindo para regressividade e a desconstrução dos direitos humanos no país.

NOTAS

¹ Às vésperas de viagem de Bolsonaro, ONU denuncia abusos no Brasil. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/09/13/onu-critica-governo-bolsonaro.htm

² Brazil: Bolsonaro Threatens Democratic Rule. Disponível em:
https://www.hrw.org/news/2021/09/15/brazil-bolsonaro-threatens-democratic-rule

³ Relator de lei antiterrorismo afirma que ouvirá a todos para redigir relatório.  Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/793495-relator-de-lei-antiterrorismo-afirma-que-ouvira-a-todos-para-redigir-relatorio/

⁴ Discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro, na abertura da 76° Assembleia-Geral da ONU. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2021/09/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-na-abertura-da-76deg-assembleia-geral-da-onu

⁵ Organizações indígenas e indigenistas denunciam Estado brasileiro na 48ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://cimi.org.br/2021/09/organizacoes-denunciam-brasil-48-cdh-onu/

⁶ Bolsonaro fala em visto a cristãos afegãos; portaria vale para todos. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-fala-em-visto-a-cristaos-afegaos-portaria-vale-para-todos/

⁷ EUA querem que Brasil receba migrantes haitianos e refugiados do Afeganistão. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/09/eua-querem-que-brasil-receba-migrantes-haitianos-e-refugiados-do-afeganistao.shtml 

⁸ Citação de Bolsonaro a “cristãos afegãos em fala na ONU foi aceno a evangélicos. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/09/citacao-de-bolsonaro-a-cristaos-afegaos-em-fala-na-onu-foi-aceno-a-evangelicos.shtml

⁹ The Hazaras in Afghanistan: Discrimination, Persecution, Genocide. Disponível em: https://www.mcgill.ca/law/channels/event/hazaras-afghanistan-discrimination-persecution-genocide-333506#:~:text=When%20the%20Taliban%20took%20power,for%20their%20existence%20once%20more

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