19 de outubro de 2021
Por Mikael Servilha e Ricardo Alves
(Foto: BrasilNovo)
A discussão sobre a proibição da cobrança de tarifas sobre transmissões eletrônicas segue ocorrendo no âmbito da OMC, onde se debate, também, a possibilidade de torná-la permanente. Sobre isso, cabe destacar que o Brasil é um dos países que aderiram a essas negociações, tomando um caminho oposto ao tomado pela maioria dos países em desenvolvimento
Imagine um mundo em que os países fossem impedidos de cobrar impostos sobre a importação de produtos com alto valor agregado e produzidos com o emprego de tecnologia de ponta. Nesse cenário, os países que não são os principais detentores dessas tecnologias perderiam uma importante possibilidade de arrecadação. Isso se dá atualmente em relação a transmissões eletrônicas por efeito de uma moratória na Organização Mundial do Comércio (OMC) e já se torna permanente por meio de novos Acordos Regionais de Comércio.
Apesar de não haver com clareza uma classificação, os instrumentos internacionais que dão base à moratória se referem a transmissões eletrônicas como, por exemplo, a “entrega”, de um país para outro, de produtos que não possuem presença física, também chamados de produtos digitais ou digitalizados. Por conta das transmissões eletrônicas muitos produtos que antes eram comercializados na forma física – como filmes, jogos e músicas, que já não são mais vendidos em CDs e DVDs – atualmente circulam digitalmente pela internet. Outra gama de produtos diz respeito às transmissões eletrônicas de softwares, por exemplo. Não limitado a isso, atualmente esses instrumentos internacionais abrangem também as transmissões eletrônicas de ativos de manufatura remota e desenhos computacionais ligados a impressão 3D que, em comunicação com a maquinaria apropriada, podem fabricar produtos complexos e de alto valor de mercado, como motores, maquinário eletrônico e produtos médicos. Desse modo, a partir da transmissão eletrônica desses ativos o produto é acabado pela máquina 3D já dentro do país importador e, no atual contexto, não recebe nenhuma taxação alfandegária.
Em 1998, o Conselho Geral da OMC adotou a declaração “Programa de Trabalho sobre Comércio Eletrônico” na qual discutiram-se normas sobre o comércio eletrônico internacional. Entre as medidas tomadas por essa resolução, encontra-se a moratória da cobrança de direitos alfandegários sobre transmissões eletrônicas – definida para ser renovada de dois em dois anos, a cada Conferência Ministerial da organização -, que proíbe os países de taxarem as importações transmitidas eletronicamente. Desde então, tal medida foi renovada seguidas vezes, sendo a última acordada em 2019 e com vigência até a 12ª Conferência Ministerial, marcada para o final de novembro próximo. Além da possibilidade de nova renovação da moratória, a ser negociada já no próximo mês, há paralelamente uma negociação em curso sobre a possibilidade de torná-la permanente.
Os debates sobre a renovação da moratória e sua importância
Os debates em torno da renovação da moratória ganharam importância nos últimos anos em um contexto no qual o volume do comércio digital aumenta a taxas vultuosas. Segundo pesquisas da UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – o volume de importações por transmissões digitais tem crescido ano após ano, tendo, somente em 2019, atingido valores aproximados de US $255 bilhões. Enquanto o comércio de produtos físicos caiu durante a pandemia, a tendência é que a crise sanitária eleve ainda mais o volume de transmissões digitais no futuro próximo. Nesse cenário de crescimento das transmissões eletrônicas, discutir esse tema, bem como as implicações para um país em desenvolvimento como o Brasil, é fundamental.
Sobre isso, relatórios da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e do ECIPE (Centro Europeu de Economia Política Internacional) defenderam que o fim da moratória teria efeitos negativos para o regime internacional de comércio, o que impactaria também os países em desenvolvimento. Nesse sentido, a publicação do ECIPE, por exemplo, argumenta, entre outros pontos, que a taxação sobre transmissões eletrônicas se traduziria na perda da eficiência do livre mercado e teria reflexos negativos sobre outros setores da economia.
Outras perspectivas, porém, sublinham que suposições como essa não dão conta das assimetrias e das questões relacionadas ao desenvolvimento da maior parte dos países que não são competitivos no comércio digital, e que, com a moratória, se vêem em um quadro não menos que desfavorável, com limitação do espaço político e perda de receitas alfandegárias. Com isso em mente, então, cabe destacar que o fluxo global de transmissões eletrônicas é dominado sobretudo pelos países desenvolvidos, que são também os maiores produtores de produtos digitais e, por conta disso, figuram como principais destinos dos lucros desse mercado.
Publicações recentes da UNCTAD lançam luz justamente para os impactos negativos da moratória sobre os países em desenvolvimento. Nesse sentido, segundo o relatório da Conferência intitulado “Rising Product Digitalisation And Losing Trade Competitiveness”, entre os principais exportadores de transmissões eletrônicas, o único país não desenvolvido é a China. Dessa forma, estima-se que os quinze principais produtores de produtos digitais detenham 82% das exportações globais por transmissões eletrônicas, enquanto os países em desenvolvimento (PED) reunidos concentraram apenas 6,3% dessa categoria de exportações – dados de 2015.
O relatório da UNCTAD aponta que, em razão da crescente digitalização da economia, e se mantida a moratória, a perda de arrecadação dos PED deve se agravar, com impactos sobre os seus processos de desenvolvimento. Sobre isso, dados do relatório estimam que, considerando somente as importações por transmissões eletrônicas do ano de 2015, o Brasil perdeu mais de 17 milhões de dólares de arrecadação. Assim, por efeito da moratória, na prática, ao invés de montantes de milhões de dólares como esse irem para os cofres públicos de países em desenvolvimento, eles foram diretamente para empresas como Netflix, Youtube, Apple, Amazon e outras gigantes da tecnologia, conforme pontua Deborah James.
Os principais interessados na manutenção da moratória e os Acordos de Comércio
Posto isso, cabe sublinhar que, como um dos principais interessados pela manutenção desse regime e por sediar as mais poderosas gigantes digitais, os Estados Unidos é justamente o país que mais advoga pela proibição da tributação sobre o comércio digital internacional. O país se notabiliza pelas recentes mobilizações para definição e expansão do modelo regulatório para liberalização do comércio digital internacional.
Quanto ao referido modelo regulatório, especialistas apontam que a política estadunidense de comércio digital, sintetizada nos objetivos “Digital 2 Dozen”, foi consolidada pelo texto do capítulo sobre comércio eletrônico do acordo TPP (Acordo de Associação Transpacífico). Como tal, esse acordo foi o responsável por definir e consolidar grande parte do modelo estadunidense de regulação para liberalização da economia digitalizada, o que inclui a proibição, por meio do acordo, da taxação sobre as transmissões eletrônicas.
Nessa perspectiva, observa-se que a partir do modelo TPP alguns outros acordos comerciais começaram a introduzir cláusulas equivalentes sobre comércio eletrônico, o que pode indicar que está em curso um novo processo de expansão do modelo de regulação estadunidense sobre o regime internacional de comércio. Esse processo se dá através da formação de redes de países que assinaram, recentemente, acordos comerciais que compartilham “entre si” aspectos-chave consolidados no TPP. Como exemplos desses acordos, pode-se citar o USMCA (Acordo entre Estados Unidos, Canadá e México), o CPTPP (com alguns países da região pacífico) e, do lado brasileiro, o Acordo de Comércio Eletrônico do Mercosul e o Acordo Brasil-Chile, os quais impõem, entre outros aspectos, a proibição permanente da cobrança de direitos alfandegários sobre as transmissões eletrônicas.
A posição do Brasil
A discussão sobre a proibição da cobrança de tarifas sobre transmissões eletrônicas segue ocorrendo no âmbito da OMC, onde se debate, também, a possibilidade de torná-la permanente. Sobre isso, cabe destacar que o Brasil é um dos países que aderiram a essas negociações, seguindo um caminho oposto ao tomado pela maioria dos países em desenvolvimento, os quais declararam que primeiramente irão construir suas capacidades regulatórias nacionais para buscar alcançar os objetivos de desenvolvimento nesta área.
Entende-se com isso, e com a recente assinatura dos dois acordos que seguem o modelo TPP para liberalização das transmissões eletrônicas, que o Brasil se alinha aos interesses dos países desenvolvidos sobre o tema. Ao mesmo tempo, então, o país lança mão de debater os impactos negativos da moratória sobre a sua arrecadação de receitas, bem como deixa de discutir sobre os desenhos impostos pelos países desenvolvidos para economia digital, a qual caminha para ser a própria economia já em um futuro não muito distante.