A Embraer segue voando

04 de novembro de 2021

Por Bruna Belasques, Bruno Castro, Leonardo Poletto, Thaís Padela e Renata Alencar
(Foto: Tecnodefesa)

Contrariando previsões dos entusiastas da desnacionalização, a Embraer conseguiu manter a competitividade após o cancelamento do acordo de venda para a Boeing, retomou o lucro líquido no segundo trimestre de 2021 e lidera valorização das ações na bolsa.

Os resultados da Embraer ao longo de 2021 – e mais especialmente no segundo trimestre do ano – são muito positivos e mostram que a empresa conseguiu sobreviver e recuperar-se das turbulências da pandemia de Covid-19, que afetaram de forma muito grave o setor aeronáutico ao redor do mundo. O desempenho é uma surpresa para quem acompanhou as notícias da empresa veiculadas pela grande mídia nos últimos anos, com afirmações de que a única possibilidade de sobrevivência seria sua venda para a Boeing. 

Airbus e Boeing, Embraer e Bombardier formavam até pouco tempo, respectivamente, um duplo duopólio. As duas primeiras empresas dominavam o mercado de grande porte e as segundas, os regionais. De modo simplificado, o duopólio é um conceito da economia em que a falha de mercado resulta em um tipo de oligopólio com apenas duas empresas dominando o setor. Todas as que integram esse duplo duopólio tiveram em sua criação um importante papel dos Estados.

Em 2017, a Airbus adquiriu o programa CSeries da Bombardier – responsável pela produção de aeronaves comerciais regionais. Também em 2017, iniciou-se um processo de negociação entre a Embraer e Boeing, em que a empresa norte-americana propôs adquirir, e, portanto, desnacionalizar, 80% do setor de aviação comercial da Embraer. Para muitos, esse momento marcaria o fim do duplo duopólio para a criação de um único duopólio, liderado pela Airbus e pela Boeing. Como neste cenário hipotético a concorrência ficaria ainda mais restrita, isso significaria o aumento exponencial dos lucros da Airbus-Bombardier e da Boeing-Embraer em determinado período de tempo – foi, portanto, esta lógica meramente econômica que imperou nas negociações de venda da Embraer, desconsiderando a importância estratégica para o Brasil tanto em termos geopolíticos e militares, quanto para inovação.

À época, em 2016 e 2017, argumentava-se que a crise da Embraer era irreversível. A cotação das ações da empresa chegou a despencar de cerca de R$ 29 no início de 2016 para R$ 14 em agosto do mesmo ano. Apesar disso, a companhia registrou lucro líquido nesses dois anos – é verdade também que, após 2017, a companhia passou a ter prejuízo.

É nesse cenário que, em dezembro de 2018, o acordo entre Embraer e Boeing foi concluído. Em janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), dando continuidade à política econômica de Michel Temer, aprovou a desnacionalização da empresa. No entanto, após iniciados os prazos de aquisição previstos no contrato, a Boeing perdeu o interesse no acordo e o cancelou em 2020, num evento ainda nebuloso. Segundo a Boeing, a parceira não atendeu a certos requisitos básicos, que interferiram na continuidade do acordo. O discurso esconde o contexto macroeconômico de incertezas pelo qual a economia mundial e o mercado aeronáutico passavam e uma crise interna: a empresa estadunidense estava enfrentando o pior momento da sua história. A falta de demanda resultante do agravamento da pandemia com o fechamento das fronteiras somou-se à sucessão de dois acidentes provocados pela queda de duas  aeronaves 737 Max, resultando na morte de 346 pessoas. Outro elemento pouco falado e a ser investigado, é se a parceria Airbus-Bombardier está, de fato, dando os frutos esperados, caso contrário, poderia ser outro fator que teria desestimulado a aquisição da Embraer.

Com a desistência da compra por parte da Boeing, pode haver uma multa por quebra de contrato. Especialistas alegam que a indenização pela quebra do contrato gira em torno de 500 milhões de dólares e as multas podem ser de 100 a 150 milhões de dólares. E, ao contrário do que argumentavam os entusiastas da desnacionalização, a desistência da Boeing não resultou no fim da Embraer. A terceira maior exportadora do Brasil demonstrou capacidade de se reerguer sem a necessidade de desnacionalização e venda do potencial tecnológico. No segundo trimestre de 2021, a empresa teve “backlog” – ou carteira de pedidos – de US$ 16,8 Bi, retornando ao patamar pré-pandemia.

Hoje, embora a Embraer ainda seja nacional, há um espectro rondando a empresa e a retomada de discussões sobre a desnacionalização da companhia não está fora de cogitação. Atualmente, aproximadamente 15% das ações da companhia estão nas mãos do Brandes Investment Partners, fundo de investimento estadunidense. Esta fatia é maior que a possuída pelo próprio BNDES, mesmo assim o governo brasileiro possui poder de influenciar decisões estratégicas na companhia devido ao golden share, ação que garante esse poder.

 

A empresa tem futuro?

 

Com o avanço da vacinação ao redor do mundo e o relativo controle da pandemia – sobretudo nos países desenvolvidos – o turismo e as viagens internacionais têm aumentado de forma consistente no segundo semestre deste ano. Isso porque há uma demanda reprimida das classes médias e altas para viajar. Esse é um fator determinante para a retomada do setor aeronáutico no curto prazo. Mas o setor aeronáutico é caracterizado por uma visão de longo prazo, dada a própria demora para o desenvolvimento e produção de um avião. Desse modo, embora a pandemia de Covid-19 tenha sido um duro golpe, as companhias aéreas seguem com seus planos para os próximos anos. Nas últimas décadas, o setor tem crescido de forma consistente ao redor do mundo – com ênfase no mercado do sudeste asiático. 

A despeito de toda a pressão exercida pelo mercado, o fato é que a Embraer, mesmo após não ter sido vendida para a Boeing, anunciou uma série de novos projetos, entre eles: aviões elétricos; um novo modelo de turboélice; drones militares; e os “carros voadores” (eVTOL). Tratam-se, portanto, de projetos com alta tecnologia e complexidade, que acabarão demandando integração de setores produtivos, podendo gerar empregos e spillovers tecnológicos. O eVTOL, já em fase de teste de protótipo, deve tornar-se um dos principais produtos da empresa e ser utilizado para o táxi aéreo, com um grande potencial de mercado, e os drones militares mostram também a importância geopolítica que a empresa tem para a soberania brasileira.

Além dos novos projetos da companhia, a Embraer está aumentando a entrega de pedidos. Em 2021, até o momento, foram entregues cerca de 32 aviões comerciais e 54 jatos executivos. A estimativa é que a empresa entregue até o final deste ano aproximadamente 50 aeronaves comerciais e até 95 jatos executivos. Cabe também destacar que, paralelamente, a empresa realizou políticas internas com impactos importantes sobre a operação, como a redução da mão de obra, a otimização da linha de produção e a definição de um novo plano estratégico

Não é à toa que, diante de tanto otimismo, o mercado financeiro tenha passado a precificar a alta do papel da EMBR3. A ação da empresa chegou a valer menos de R$7 em 2020, em virtude do pessimismo com a empresa e pelo cenário pandêmico. Neste ano, contudo, acumula valorização de mais de 160%

Diante de tudo isso, a percepção é de que o setor aeronáutico é volátil e que o desenvolvimento de novos projetos exige grandes investimentos, o que, por sua vez, envolve endividamento no curto e médio prazo, até que os frutos possam ser colhidos. Assim, a mesma Embraer que em 2016 e 2017 era vista, segundo os entusiastas de sua venda para a Boeing, como uma empresa que estava praticamente falida, hoje passa a ser recomendada pelo seu potencial de crescimento nos próximos anos. Além disso, ela demonstra também sua importância para o desenvolvimento de drones para o Estado brasileiro, garantindo nossa soberania; e essa tecnologia poderá ainda ser exportada, dada a importância que esses equipamentos devem ter nos próximos anos. 

A lição que fica, portanto, é que crises temporárias não são motivo para desnacionalizar uma das empresas brasileiras mais importantes, nacional e globalmente. A venda da Embraer a uma empresa estrangeira significaria entregar décadas de investimentos públicos. Por fim, para que o Brasil possa pensar em um projeto de desenvolvimento nacional, é fundamental ter empresas intensivas em tecnologia P&D e capazes de gerar empregos qualificados no país, e a Embraer é um grande exemplo disso.

 

Como surgiu a Embraer e a importância do Estado brasileiro

A Embraer foi fundada em 1968, durante o regime militar, a partir da noção da necessidade do estabelecimento de um complexo industrial para subsidiar as forças armadas, mas também de edificar a indústria aeronáutica brasileira, conforme mostra estudo de Maria Cecília Forjaz (2005). A empresa tinha também como objetivo suprimir os problemas de infraestrutura em um país continental como o Brasil, isto é, facilitar a integração entre regiões de difícil acesso via rodovias e hidrovias.  

Com o apoio ativo do Estado brasileiro tanto em investimentos no sistema de pesquisa (ITA e CTA) quanto em isenções fiscais, a empresa obteve crescente sucesso, chegando a exportar, nos meados dos anos 1980, 130 unidades do Tucano T-27 – uma aeronave leve militar – para a força aérea britânica. Durante os governos da década de 1990, marcados pelo interesse na abertura da economia e na privatização dos bens públicos, a União assumiu dívidas no montante de US$ 380 milhões (em valores reais atuais) com o intuito de tornar a sua privatização ainda mais atrativa para os compradores, transferindo o ônus para o Estado brasileiro. Assim, em 7 de dezembro de 1994, 55,4% da empresa foi adquirida por um consórcio liderado pela Bozano Simonsen, mantendo, no entanto, a golden share.

Mesmo após a privatização, o governo brasileiro continuou fomentando o desenvolvimento da empresa via empréstimos do BNDES, no investimento no parque tecnológico, na criação do LEL (Laboratório de Estruturas Leves), e na formação de pessoal qualificado. De acordo com Paulus Fonseca, a partir dos anos 2000, o Banco Nacional de Desenvolvimento Socioeconômico (BNDES) voltou a contribuir para que a Embraer se alçasse ao posto de terceira maior empresa de aviação mundial e primeira no segmento de aviação regional. Hoje, apenas 5,4% das ações da empresa são do Estado Brasileiro, via BNDESPar.

* Os autores agradecem a colaboração dos professores Giorgio Romano e Demétrio Toledo.

Artigo publicado originalmente na Carta Capital em 04 de novembro de 2011.

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