África, a guerra na Ucrânia e o novo sistema internacional

04 de abril de 2022

Por Mohammed Nadir e Flávio Thales (Foto: Maksim Shutov)

Perante as convulsões geopolíticas provocadas pela guerra na Ucrânia, o continente africano não pode permanecer numa lógica de subordinação que o obriga a optar por um poder em detrimento de outro. Deve haver uma política externa africana que imunize o continente das consequências de um conflito com impactos globais.

Nesse sentido, a grande questão que se coloca é como o continente reagiu à invasão da Ucrânia e quais as repercussões sobre as relações da África com o Ocidente,  e com a Rússia? Tentaremos avaliar os espaços de manobra e as variáveis de uma política externa africana numa conjuntura de enfraquecimento do Estado e do retorno do militarismo no  continente.

Antes de rever as problemáticas acima colocadas, tentaremos  resumir e analisar o estado de arte de um conflito que sem dúvida irá marcar o  século XXI por décadas. Para isso é bom reler o famoso discurso do Putin de 2007,  buscando caminhos  para compreensão e  explicação da atual crise geopolítica que assola a Europa.

Tanto o discurso perante os líderes mundiais na Conferência de Política de Segurança em 2007, em Munique, como o ensaio escrito no ano passado sobre a “Unidade Histórica dos Russos e dos Ucranianos” já revelavam não apenas as intenções de Vladimir Putin, mas as forças profundas da atual crise.

Acusação aos EUA

Em 10 de fevereiro de 2007, a cidade de Munique acolhia a 43ª Conferência de Política de Segurança. O discurso de meia hora que o Presidente Vladimir Putin ali fez serviu para lançar as fundações da Rússia tal como ele pretendia que fossem doravante olhadas. A ideia nuclear rejeitava a ordem europeia que muitos naquela audiência tinham passado anos a construir. Do púlpito do Bayerischer Hof para o mundo, Putin acusou os Estados Unidos de criar um mundo unipolar “no qual só há um mestre e um soberano”, o que acaba “por ser pernicioso”, acrescentou. Mais, criticou duramente aquilo que ele considera como Double Standards nas relações internacionais.

Putin acusou os Estados Unidos de fazer “um domínio monopolizador das relações globais” e criticou o seu “quase incontido hiper uso da força nas relações internacionais”. No discurso, que ficou conhecido (principalmente na Rússia) como o Discurso de Munique, Putin declarou que o resultado da dominação americana era “ninguém se sentir seguro, porque ninguém pode sentir que a lei internacional é como uma parede sólida que os protege. E claro que tal política estimula uma corrida às armas”. Para refutar o absolutismo americano, Putin usou do próprio conceito de democracia, caro aos ocidentais, para dizer que afinal a democracia é antes de tudo o poder da maioria e não de uma entidade só. Estavam ali os sinais do descontentamento do líder russo que escondiam um forte desejo de insurgência. Para ele não havia dúvida, o modelo unipolar que os EUA queriam implantar era uma real ameaça aos fundamentos civilizacionais.

Naquele discurso, o Presidente russo aproveitou para citar outra fala o que Manfred Wörner (político e diplomata alemão, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e secretário-geral da OTAN de 1988 a 1994) fizera em 1990 para apoiar a sua própria argumentação, no qual a aliança Atlântica tomava o compromisso de prometer não expandir para novos países da Europa de Leste.

O discurso de Putin em 2007 foi recebido com choque por todos aqueles que tinham investido um esforço substancial para trabalhar com a Rússia, incluindo-a no sistema de estabilidade global do pós-Guerra Fria – e que, na altura, ainda acreditavam que isso fosse possível. Uma década e meia depois, a maciça operação militar russa em torno da Ucrânia traz de novo o debate sobre os rumos do sistema internacional, a segurança  e os limites de um mundo mais justo e ao mesmo tempo menos perigoso.

Para entender a atual crise geopolítica convém inteirar-se do pensamento estratégico putiniano. O presidente russo clama evidentemente  por uma reconfiguração da ordem internacional pós-Guerra Fria, o que resultaria em uma redução do “domínio do campo ocidental” sobre o mundo. O primeiro país visado por essa estratégia de reposicionamento é os Estados Unidos, cuja presença militar Moscou pretende disputar na Europa, principalmente no Leste.

“Os russos e os ucranianos são o mesmo povo – um só povo”

O ensaio escrito por Vladimir Putin, no último verão “Sobre a Unidade Histórica dos Russos e dos Ucranianos”, à semelhança do discurso feito na última segunda-feira, abundam em emoções como o medo, a fúria, e uma visão muito paranóica das relações internacionais.

Sobre a Ucrânia, Putin responde que “Quando me perguntaram pelas relações russo-ucranianas, eu disse que os russos e os ucranianos são um povo – um único povo. Estas palavras não se devem a considerações de curto prazo nem pelo contexto político atual”, escreveu Putin em julho de 2021. “Foi o que eu disse em numerosas ocasiões e é aquilo em que acredito firmemente”. Para Putin, russos, ucranianos e bielorrussos são todos descendentes da Antiga Rus, “que era o maior Estado na Europa”. Para Putin, o muro que emergiu nos anos recentes entre a Rússia e a Ucrânia, entre as partes do que é essencialmente o mesmo espaço histórico e espiritual, é a maior desgraça e tragédia.

Segundo ele, estas são, antes de mais, as consequências dos erros de períodos anteriores, mas são também o resultado de esforços deliberados por forças estranhas que procuraram minar a sua unidade aplicando a fórmula já conhecida de todos os tempos: dividir para reinar. Para Putin, tudo isso é um déjà vu, daí as tentativas de jogar com a ‘questão nacional’ e semear a discórdia sendo o objetivo primeiro dividir e depois virar as partes e as pessoas umas contra as outras”. Havendo esses fortes laços entre os dois povos, o russo e o ucraniano, o que mudou então para ele invadir e arrasar o país?

Putin e a sombra Hobbesiana

 “A invasão da Ucrânia era a única solução”. Foi assim que Vladimir Putin resumiu a sua invasão à vizinha Ucrânia. Os riscos de segurança criados eram tais que era “impossível reagir de outra forma”, explicou Putin, questionando a intransigência de Kiev e do Ocidente em relação às exigências de segurança apresentadas pela Rússia nos últimos meses e que “poderiam” colocar em risco a própria sobrevivência da Rússia.

Ao longo do discurso, que parecia um manifesto político, Putin recorreu ao período histórico de um século para traçar a situação atual e negar o direito de existir a Ucrânia. Focou-se sobretudo nos últimos trinta anos para legitimar suas teses expansionistas.  O que está em causa é que durante 30 anos Rússia tentou persistente e pacientemente chegar a um acordo com os principais países da OTAN sobre os princípios de segurança igual e indivisível na Europa. Em resposta às propostas de Moscou – segundo Putin – houve apenas “enganos e mentiras cínicas, ou tentativas de pressão e chantagem, enquanto a Aliança do Atlântico Norte e sua máquina militar, estava em constante expansão se aproximando das fronteiras russas”.

Ao tentar explicar a atitude desdenhosa do Ocidente para com as “legítimas” demandas russas, Putin volta à história e aponta a paralisia do poder, vontade e a degradação do império soviético como motivos do olhar prepotente do Ocidente.

A euforia da vitória ocidental dos anos noventa motivou – segundo Putin – uma sensação de superioridade absoluta, uma espécie de forma moderna de absolutismo, na qual foram adotadas decisões que eram benéficas apenas para si mesmos.  

Percebe-se no fundo um sentimento de humilhação pelo fato dos tratados e acordos anteriores não estarem mais em vigor e tudo o que não convém aos que estão no poder, isto é, aos EUA é declarado arcaico, obsoleto, desnecessário. E vice-versa: tudo o que lhes parece benéfico é apresentado como a verdade última, empurrada a qualquer custo, grosseiramente, por todos os meios. Eis a análise que Putin faz a todo o sistema de relações internacionais. Para reforçar sua argumentação, o chefe da Rússia cita exemplos das trágicas invasões do Iraque, Líbia, Síria e como o uso abusivo do direito internacional levou à destruição de Estados, matou, deslocou populações, e aumentou o terrorismo internacional. Putin conclui que todo o chamado bloco ocidental, formado pelos Estados Unidos à sua imagem e semelhança, não passa de um “império da mentira”. Não deixa de ser curioso que Putin tenha real noção da força do Ocidente, mas mesmo assim avança que tal desequilíbrio foi realisticamente calculado e ameaça que quem fizer frente à Rússia terá uma resposta sem precedentes.

Por outro lado, convém também analisar as responsabilidades americanas, da OTAN e da União Europeia no atual conflito, isto é, a forma como foi tratada a Rússia desde a queda da União Soviética, bem como o querer levar até as últimas instâncias seu modelo de reconfiguração de estados e nações, nem sempre por razões genuínas. A invasão do Iraque, da Líbia, a retirada humilhante do Afeganistão, os escândalos das prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, tudo isso fez perder a credibilidade do Ocidente no mundo e abriu caminho para outros imitarem (refiro a guerra absurda da Arábia Saudita no Iêmen e agora da Rússia na Ucrânia).

“Erro magistral”

Num artigo de John Mearsheimer publicado em 2014 na revista Foreign Affairs, sob o título Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault, o grande teórico realista americano, previa e analisava as razões profundas de um futuro conflito de grandes dimensões. Segundo Mearsheimer, a pressão exercida pela OTAN no Ocidente sobre a Rússia foi um erro magistral que criou uma situação eminentemente perigosa. Era previsível que Putin não permitiria que uma aliança anti-russa se desenvolvesse na sua esfera de influência. O internacionalista americano considera uma afronta o alargamento da OTAN via leste que teve lugar em 1999 e permitiu a adesão da República Checa, Hungria e Polônia e de 2004 que permitiu incluir Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Se acrescentamos o projeto da União Europeia com sua parceria oriental que visava atrair a Ucrânia para a esfera europeia, além dos incentivos para a democracia na Ucrânia, todo este triplo pacote foi uma espécie de óleo no fogo e que acendeu a atual crise bélica.

Seguindo o raciocínio de Mearsheimer, as ações de Putin devem ser fáceis de entender. A Ucrânia é um estado-tampão de enorme importância estratégica para a Rússia. Nenhum líder russo toleraria uma aliança militar – com o Ocidente – que até recentemente era visto como inimigo mortal de Moscou entrando na Ucrânia. Nenhum líder russo ficaria de braços cruzados enquanto o Ocidente ajudava a instalar um governo determinado a trazer a Ucrânia para o Ocidente. Este é o dilema de um confronto com fecho imprevisível

Em um cenário cada vez mais incerto e caótico do sistema internacional, com ainda possibilidades de alastramento a outras latitudes com as ameaças e a obsessão americana com a ambiciosa China, questiona-se: qual o lugar de África nesse novo xadrez geopolítico que está inaugurando uma nova ordem mundial?

Antes de analisar essas questões deve-se dizer que, após quase um mês de conflito, a questão não é mais se as forças armadas russas vão se retirar da Ucrânia, mas se Putin será capaz de aproveitar essa nova demonstração de força para impor novas regras aos americanos e seus aliados. Trata-se de um duelo em um novo mundo onde a Rússia pretende ser polo de dominação político-militar por direito próprio. Com um presidente que pode permanecer no poder até 2036, Moscou constituirá, para a OTAN, o grande desafio geoestratégico dos próximos anos.

Embora a guerra esteja longe de estar ganha para o dono do Kremlin, sua intervenção militar tem duplo efeito: a obstinação dos ucranianos em fazer parte da União Europeia, algo que a UE já começou a efetuar, e por outro lado dificulta ainda mais a adesão da Ucrânia à OTAN. Seja como for, o resultado do conflito determinará o tipo de relacionamento político e militar que Kiev terá com as potências ocidentais. Embora não seja certo que Putin obterá garantias formais de que a Ucrânia continuará sendo uma zona neutra, também não é certo que o único argumento de soberania estatal, dada a rivalidade e desconfiança entre as grandes potências, consiga proteger o território ucraniano da anexação de Moscou.

Tudo indica que esta guerra russo-ucraniana em breve cairá na categoria nada invejável de “frozen conflict”, não se deve ter ilusões: os princípios do direito internacional e os acordos de paz nunca levarão o presidente russo, enquanto estiver no poder, a afrouxar o controle sobre a Ucrânia. Portanto, o desafio dos ocidentais parece ser avaliar plenamente os projetos em que se baseia a política externa do Kremlin e a determinação e ambições de seu líder em realizá-los. Essa ambição de poder não é exclusiva da Rússia. Mas, no seu caso, vem acompanhada de um desejo de impor um contra modelo político baseado em uma releitura da história.

Abstenções na ONU

Perante o equilíbrio de poder que está a emergir entre o Ocidente e a Rússia, a África terá de adaptar a sua estratégia. no plano diplomático, esta parece adotar uma posição de equilíbrio, até mesmo de não alinhamento, o que confirma sua tendência à neutralidade. Isso é evidenciado pela abstenção maciça dos estados africanos durante a votação da resolução da ONU que condenou a intervenção russa na Ucrânia. Ao optar por uma não escolha, alguns países africanos, longe de apoiar a guerra, pretendem preservar uma política externa despolarizada, interagindo em múltiplos polos de poder, sejam ocidentais, russos ou mesmo chineses.

Embora as Nações Unidas tenham adotado de forma esmagadora uma resolução condenando a intervenção russa na Ucrânia, quase metade dos países que se abstiveram são africanos. Pergunta-se: quais as motivações?

Essa atitude pode ser explicada tanto pela extrema dependência do continente de outras regiões e pela fragilidade das relações bilaterais – como as de Mali e França – quanto pela instabilidade do sistema internacional.  No caso concreto, a Rússia com base no modelo usado na Síria, tem apoiado seus “proxies” (intermediários) na Líbia, República Centro-Africana, Mali e Sudão. Moscou também está de olho em meia dúzia de líderes africanos que são, em graus variados, vulneráveis.

Essa estratégia de cooptação das elites reflete os objetivos estratégicos da Rússia na África. Isso consiste inicialmente em estabelecer uma base no sul do Mediterrâneo e no Mar Vermelho, potencialmente permitindo que a Rússia ameace o flanco sul da OTAN e crie gargalos no comércio marítimo internacional.

Em segundo lugar, essa abordagem demonstraria o estatuto da Rússia como uma grande potência cujos interesses devem ser levados em consideração.

Terceiro, visa deslocar a influência ocidental na África, ao mesmo tempo em que mina qualquer apoio à democracia. Nos últimos anos, a Rússia conseguiu expandir ainda mais sua influência na África, indiscutivelmente mais rápido do que qualquer outro ator externo desde 2018, quando Moscou intensificou seus compromissos na África tentando exportar seu modelo de governança – autoritário, cleptocrata e transacional – para a África.

Este modelo tem tido muita adesão por vários regimes africanos e sobretudo pelo retorno dos golpes militares na África. A votação das Nações Unidas sobre a invasão russa da Ucrânia fornece um prisma relevante para a compreensão das relações entre Moscou e alguns países africanos.

Reavaliação diplomática

Com efeito, a ruptura do mundo, parcialmente refletida na guerra na Ucrânia, exige uma profunda reavaliação da diplomacia africana. De fato, tanto politicamente quanto nas esferas econômica e militar, a África ocupa uma posição vulnerável, às lutas hegemônicas entre as grandes potências se expressam ali com mais violência do que em outros lugares. E os debates suscitados pela presença do grupo paramilitar Wagner em alguns países africanos testemunham, na realidade, uma rivalidade entre Paris e Moscou que não deixará de ter consequências para o futuro político das sociedades africanas. Talvez seja o momento de equacionar o papel de África em um mundo multipolar.

A posição da metade dos países do continente gerou a crítica dos Estados Unidos que disseram que os estados africanos não podem permanecer neutros na guerra da Ucrânia e que esta crise não se tratava de uma simples competição de Guerra Fria entre o Ocidente e a Rússia.

O presidente sul-africano culpou a OTAN pela guerra na Ucrânia. Cyril Ramaphosa, reiterou suas críticas ao papel do Conselho de Segurança da ONU no conflito dizendo que a guerra poderia ter sido evitada se a OTAN tivesse atendido as advertências emitidas por seus próprios líderes e funcionários de que sua expansão para o leste levaria a uma maior, instabilidade na região e apelou que o Conselho de Segurança fosse reformulado para que haja uma representação justa e um mecanismo mais inclusivo para resolver disputas internacionais.

Em termos da Organização da União Africana, os estados africanos não adotaram uma posição comum sobre a invasão russa. A divisão de votos no continente demonstra a dificuldade para construção de  uma frente política unida e coesa.

Por razões de proximidade geográfica, a Europa não pode ficar indiferente à extensão da influência russa na África através da atividade de uma companhia paramilitar ao serviço do Kremlin. O erro político, na perspectiva dos governos africanos, consistiria em permanecer numa lógica de subordinação obrigando-os a escolher um poder em detrimento de outro. Por conseguinte, o desafio é como construir uma verdadeira política de soberania em termos de segurança e defesa. Isso requer indubitavelmente uma reavaliação das ferramentas existentes ao nível da União Africana (Arquitetura Africana de Paz e Segurança) e Comunidades Econômicas Regionais.

Isto incluirá, entre outras coisas, a resolução dos obstáculos políticos, econômicos e institucionais que tornam a Política Africana Comum de Defesa e Segurança não operacional. Em um mundo cada vez mais desordenado, subcontratar sua segurança a potências estrangeiras seria um erro estratégico. A cooperação militar não deve assumir a forma de dependência geoestratégica. A busca pela soberania nesta área deve fazer parte de uma estratégia mais global de desenho de uma política externa para o continente que poderá, a longo prazo, fazer África emergir como uma potência num mundo multipolar.

Eis o maior desafio da África!

 

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