31 de maio de 2022
Por Brenda Neris Gajus, Emanuela Almeida da Silva, Vitor Gabriel da Silva e Vitor Hugo dos Santos (Foto: Unsplash)
Nos dois primeiros anos da pandemia, a China conseguiu, por meio de medidas rigorosas, resultados impressionantes no combate a Covid-19 em seu território, registrando aproximadamente 115 mil casos e menos de 5 mil mortes confirmadas até o fim do ano passado. Entretanto, entre o final de 2021 e início de 2022, com a difusão de novas variantes, a situação sanitária do país se tornou preocupante. Novos casos, em cidades como Beijing, Xi’an, Shenzhen e Jilin, geraram medidas restritivas do governo chinês. Para entender mais sobre os efeitos da “Covid zero” no Brasil, entrevistamos Guilherme Rancoleta, especialista em exportação e importação há mais de dez anos no mercado China-Brasil.
Xangai, a cidade mais populosa do país, decretou lockdown dia 28 de março, afetando diretamente a rotina de mais de 26 milhões de habitantes. A atenção que o mundo tem dado à política de combate a Covid-19 na China deve-se ao fato de que, em Xangai, as medidas não impactam apenas seus residentes: além de ser o maior centro econômico e financeiro da China, a cidade tem o maior porto do mundo. Após as restrições impostas pelo governo, o porto passou a sofrer com congestionamentos que geraram sérios impactos na cadeia de suprimentos que fomenta a economia global. Seus efeitos vão desde a desaceleração econômica até o aumento da inflação mundial. Ainda, pesquisas têm destacado a diminuição da confiança de investidores europeus e estadunidenses no mercado chinês: empresas multinacionais relataram maior propensão de levar seus investimentos para outros mercados.
Como principal fornecedor de soja e carne bovina do mercado chinês, o setor do agronegócio teme a queda nas exportações. No entanto, a China possui uma população de mais de 1 bilhão de pessoas a serem alimentadas e, como lembrou o presidente da Câmara de Comércio do Brasil-China (CCBC), Charles Andrew Tang, “com lockdown ou sem lockdown, o pessoal tem que comer”. Segundo ele, não estão previstas interrupções significativas na importação, principalmente de soja, até porque necessitam do grão para manter a reprodução de animais e não há vendedor que possa substituir o Brasil.
Por outro lado, as autoridades chinesas devem intensificar as inspeções e testagens das importações já que o governo, com apoio da opinião pública no país, trabalha com a hipótese da Covid-19 estar adentrando através de produtos importados, apesar de a OMS ter se pronunciado de que o vírus não pode ser transmitido dessa forma. Tal fato pode provocar a revisão de autorizações – ao menos temporariamente – de exportação de frigoríficos brasileiros que não eliminarem a Covid-19 de suas embalagens. Em abril, algumas unidades tiveram as vendas para a China suspensas devido à identificação de ácido nucleico do coronavírus em embalagens de carne. Em 25 de maio, novamente, 4 frigoríficos brasileiros tiveram suspensas suas exportações para a China, ainda sem explicação dos motivos.
Já o temor da indústria brasileira é a combinação do avanço da Covid-19 na China com a guerra na Ucrânia, que tem provocado a baixa do abastecimento de insumos e componentes no setor automobilístico, farmacêutico e eletroeletrônico. Com cidades portuárias em lockdown, os caminhões não conseguem chegar aos portos, afetando diretamente o fluxo normal de exportações e importações chinesas. Consequentemente, há desabastecimento de itens importantes. Componentes como chapas de inox e produtos químicos levavam cerca de 45 a 60 dias para chegar ao Brasil antes da pandemia, cerca de 100 dias durante a pandemia e, durante períodos de lockdown, podem atingir até 120 dias.
A indústria farmacêutica nacional, por exemplo, importa 90% das matérias-primas, e a China é hoje seu principal fornecedor de insumos. Com isso, o atraso e queda na produção afeta não só a cadeia de produção brasileira, mas global, aumentando os preços dos produtos, o que pode fomentar desabastecimento. Xi’an, Shenzhen e Jilin, geraram medidas restritivas do governo chinês.
Acompanhe a entrevista com Guilherme Rancoleta:
OPEB: Como o mercado brasileiro se preparou para a política da Covid zero anunciada pelo governo chinês?
Guilherme Rancoleta: Não houve muito preparo, além das questões que o Brasil já vivia após as consequências de dois anos de uma pandemia que já se consolidava. Fomos surpreendidos pelas medidas mais restritivas, que nos atingiram como uma certa forma de “desinformação”, com decisões unilaterais, que não possibilitaram espaço de manobra para o mercado nacional.
OPEB: Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o preço médio do serviço de transporte começou 2022 custando 5,7 vezes mais do que antes da pandemia. Esse preço estava estagnado ou o aumento foi inflacionado pelo aumento no comércio eletrônico?
Guilherme Rancoleta: O preço não estava estagnado, o aumento do frete é consequência das capacidades das frotas: disponibilidade de espaço somada ao prestador de serviço. As transportadoras não tomam risco, ou seja, o navio ou avião só sai do porto quando a operação “se paga” ou gera lucro. É um movimento de oferta e demanda e, por conta da Covid, muitas rotas foram reformuladas e naves reativadas. Em relação ao comércio eletrônico, não foi apenas este fator, mas também o movimento inflacionário dos combustíveis e o custo do aumento do volume de carga, consequentemente aumento do volume de rotas.
OPEB: Os embarques aéreos podem tomar o mesmo rumo do frete marítimo ou os preços estão estabilizados?
Guilherme Rancoleta: Os comparativos de custo do frete aéreo são diferentes do marítimo, a escassez de suprimento faz com que as empresas tenham estoques baixos, aí optam pelo frete aéreo para reduzir os custos da armazenagem, e isso acarreta os altos custos. De fato, está estagnado acima do valor, decorrente do estoque baixo, mas a Covid zero também tem represado a produção, e o maior tempo de produção contribui para manter o preço alto. Já o frete marítimo tem uma volatilidade maior.
OPEB: Você vê uma maneira para o Brasil diminuir os impactos diretos das decisões da China e otimizar as importações?
Guilherme Rancoleta: O Brasil tem excelentes oportunidades de investir em planejamento da logística e o governo tem tomado iniciativas em relação à admissão de impostos para conter os preços[1]. Deve-se estudar o tempo de produção, as estratégias e as empresas frente à produção dos exportadores para se resguardar dos impactos. Procurar outros países fornecedores como possíveis substitutos, pois o que hoje sai mais caro em preço, pode ser compensado em tempo e transporte. Basicamente, entender sobre o mercado que se vende e o que se compra.
OPEB: Quais as perspectivas para os próximos meses?
Guilherme Rancoleta: Em algum momento as medidas vão precisar ser flexibilizadas, até para atender à própria demanda da China e do mundo. As empresas já estão se adequando, embora nos próximos meses ainda teremos reflexos nos valores de produtos e fretes, já que certas ações tomadas na China chegam aqui com 3/4 meses de atraso. Por ora, vamos nos manter nesse cenário. Mas o futuro é mais positivo, com um mercado mais estabilizado para não sofrer tantos impactos financeiros e de cadeia de suprimento para o Brasil.
A Covid zero sob outra perspectiva
A política do governo chinês é considerada extremamente rigorosa, tendo em vista os avanços do conhecimento sobre a doença e a postura adotada por grande parte dos países de conviver com o vírus. Entretanto, apenas metade dos idosos com mais de 80 anos foram vacinados contra o coronavírus na China e, segundo estudos da Universidade de Fudan, de Xangai, e do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, o abandono da política da Covid zero sem outras medidas para conter e tratar a doença poderia causar até 1,5 milhão de mortes no país.
Com relação aos impactos na economia brasileira, é necessário levar em conta dois fatores: o primeiro é a improbabilidade de que a demanda por commodities sofra quedas drásticas em função dessa situação. Em face à “reprimarização” da economia brasileira, a estabilidade e competitividade do país no setor, isso pode manter o agronegócio, em certa medida, “protegido”, uma vez que a balança comercial brasileira continua acumulando superávits em função do comércio com a China. Em segundo lugar, o baixo crescimento da economia brasileira – projetado pela CEPAL em apenas 0,4% para 2022, o menor entre os países da América Latina – pode amortecer os impactos da política de Covid zero na cadeia de suprimentos em muitos ramos da produção nacional, dada a queda no consumo dos brasileiros.
[1] O governo brasileiro diminuiu impostos de importação sobre 6192 mercadorias no fim de maio. Contudo, ainda é incerto se haverá impacto nos preços no mercado interno.