Conferência da OMC expõe Brasil desalinhado com demais países em desenvolvimento

14 de junho de 2022

Por Lourraine Milagres, Thais Venâncio e Renata Alencar (Foto: OMC – Jay Louvion)

Nesta semana, a 12ª Conferência Ministerial (CM-12) da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, na Suíça, reúne representantes de comércio e altos mandatários de seus 164 membros. Originalmente prevista para junho de 2020, na cidade de Nursultan, no Cazaquistão, a CM-12 foi adiada duas vezes devido à COVID-19.

O encontro é uma oportunidade para os membros reformularem regras comerciais e definirem novas agendas. De um lado, há a perspectiva de que países em desenvolvimento (PEDs) possam utilizar o espaço para alcançar negociações que equilibrem os acordos comerciais, o que não significa, porém, que suas demandas venham sendo atendidas. As necessidades dos países em desenvolvimento levantadas na Agenda de Desenvolvimento de Doha desde 2002 praticamente pararam, e a 11ª Conferência Ministerial não conseguiu alcançar um consenso para esse tema. De outro, há a queixa de que há anos a OMC não entrega acordos importantes no regime de comércio internacional, resultando em uma grave crise de legitimidade e pressão para obter resultados concretos nesta edição.

O contexto atual pós-pandemia, com inflação sobre os alimentos e o conflito na Ucrânia aumentam as expectativas sobre a CM-12 e as decisões que serão tomadas. Quatro temas estão entre os principais pontos de negociação e são de interesse do Brasil: a reforma da OMC; a segurança alimentar; a questão das patentes das vacinas, em resposta à pandemia, e os subsídios à pesca.

A reforma da OMC

Com a sua criação ao final da Rodada Uruguai, a OMC passou a administrar o multilateralismo comercial. Depois de mais de duas décadas, contudo, a organização passa por instabilidades, sem conseguir engajar seus membros, em especial os grandes atores. A expectativa com a CM-12 é  que os países colaborem e se organizem para restaurar o poder e estabilidade da OMC. Nesse sentido, propostas de reforma da organização têm circulado nos encontros preparatórios em Genebra.

Os países continuam em grande desacordo quanto às novas propostas de mudanças. Recentemente, a Índia, representando a opinião também de outros PEDs, se colocou contrária ao fim do princípio do consenso negativo para negociação de acordos plurilaterais contida em uma das propostas da reforma. De acordo com o argumento indiano, a regra do consenso é essencial para a proteção dos países menos desenvolvidos dentro do sistema de solução de controvérsias. Em outro caminho, o Brasil tem se colocado alinhado aos Estados Unidos  e favorável à derrubada do consenso. É de se esperar que mantenha o posicionamento, ainda que contraditório a suas posições históricas sobre o tema, assim como o fez ao abrir mão unilateralmente do tratamento especial e diferenciado na OMC.

Segurança alimentar e agricultura

A reforma da agricultura é outra área essencial nas discussões no âmbito da OMC, principalmente no que se refere à pauta dos estoques públicos de alimentos. Tendo em vista a vulnerabilidade dos países em desenvolvimento, seria preciso uma solução eficaz para diminuir os níveis de insegurança alimentar. Membros como Estados Unidos, União Europeia e Brasil têm realizado esforços para adiar a discussão e impedir um consenso ou discussão mais aprofundada do tema. A expectativa da Diretora-Geral às vésperas da Ministerial é de adiar o tema para a 13ª Ministerial, mesmo levando em consideração o fato de que a pauta teve espaço ainda nas discussões da 11ª Ministerial, momento em que havia o compromisso de estabelecimento de uma solução permanente para possíveis excessos praticados pelos países em desenvolvimento nas compras públicas. Não houve sucesso nas negociações, culminando em um impasse, no não cumprimento do compromisso e no adiamento de uma solução definitiva. 

Além disso, no que tange à agricultura e pecuária internacional, a 12ª Ministerial traz também discussões acerca do monitoramento do auxílio doméstico no comércio internacional, com o Grupo de Cairns reivindicando mais transparência no processo. Isso por meio de um aumento na burocracia que prejudicaria os processos e custos relacionados ao compliance, especialmente de países em desenvolvimento com pouca estrutura. Outros temas relevantes a serem abordados são as restrições à exportação praticadas por países em desenvolvimento, com o objetivo de garantir o abastecimento doméstico; e o estabelecimento de um Mecanismo Especial de Salvaguardas, que permitiria uma flexibilidade da atuação comercial de países em desenvolvimento, aumentando as tarifas de importação ao enfrentarem um boom de importações em determinado produto, para incentivar a produção nacional.

Em relação ao Brasil, enquanto a solução dos estoques públicos encontra apoio de grupos como o G-33 e organizações como a UNCTAD, o país segue na contramão de seus pares em desenvolvimento, acompanhando também uma tendência político-econômica de desmonte de estoques públicos de alimentos, priorizando os interesses lucrativos das grandes empresas agropecuárias que protagonizam a economia do país. É esperado, portanto, que as movimentações brasileiras acerca do tema sejam voltadas para adiar a discussão, atuando em conjunto com as nações mais desenvolvidas, dificultando as negociações e tentando escantear as discussões para dar lugar a outras pautas.

Waiver das vacinas

A pandemia trouxe a necessidade do desenvolvimento de uma vacina em uma velocidade inédita. Ainda assim, há problemas de escassez de produção e acesso equitativo entre os países. Propostas na organização reconhecem esses obstáculos e os incluem em seus objetivos para ampliar o seu acesso, como também entendem que a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual (DPI) das vacinas é um dos caminhos a seguir.

Em 15 de outubro de 2020, a OMC publicou o texto “TRIPS COVID-19”, poucos dias após receber a proposta de waiver por tempo determinado ao TRIPS pelas delegações da Índia e África do Sul e, embora não tenha sido rejeitada por nenhum país-membro, foram levantadas algumas preocupações como a exclusão de diagnósticos e terapêuticos. Essa questão é de relevância para vários PEDs, que afirmam ainda estarem examinando o projeto de texto através da proposta (IP/C/W/688). Dentre esses, Bolívia, Egito, Indonésia, Paquistão, África do Sul, Sri Lanka, Tunísia, Uganda e Venezuela emitiram a proposta restrita (Job/GC/278/Rev.4) argumentando que “a crise do COVID-19 revelou profundas discrepâncias nas ferramentas políticas disponíveis para países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos”.  A China, por sua vez, questiona o texto (IP/C/W/688), no qual os países elegíveis seriam somente aqueles que exportaram menos de 10% das exportações mundiais – eles detinham 33,7% das exportações mundiais de vacinas. Com base no texto inicial, também foi enviada uma proposta revisada por 65 membros. Reino Unido, Suíça e Japão ainda não participaram das discussões, mas demonstraram descontentamento. Estados Unidos, União Europeia, Índia e África do Sul, por exemplo, conseguiram desenvolver somente um esboço de um acordo inicial.

 

Subsídios à pesca

 

No âmbito do comércio internacional, o oferecimento de subsídios governamentais para incentivo da atividade pesqueira, inicialmente implementados para garantir a segurança alimentar dos países, têm sido amplamente discutido desde a Rodada Doha em 2001. Dados da FAO/ONU apontam que os estoques globais de peixes biologicamente sustentáveis sofreram um declínio de 90% em 1974 para 66% em 2017. A quantidade de peixes encontrada nos mares sob jurisdição nacional já não seria suficiente para tamanha atividade pesqueira, capitalizada por conta dos subsídios, levando à um aumento na pesca em alto mar. No entanto, um estudo de 2018 publicado pela revista Science Avance aponta que a pesca em alto mar não seria tão lucrativa às empresas se não existissem os subsídios aplicados atualmente. Além disso, o estudo aponta as diversas implicações ambientais da pesca em alto mar, capaz de prejudicar a biodiversidade local dado o desequilíbrio ecológico causado pela atividade.

 

Tendo em vista as circunstâncias, membros da OMC propõem a redução destes subsídios relacionados à atividade pesqueira, em busca de frear o mercado e diminuir a pesca para preservar a biodiversidade e o meio-ambiente, além de discutir sobre a pesca excessiva e a alta capacidade de produção que não condiz com os recursos finitos dos oceanos. As propostas dentro do fórum variam: se por um lado há a defesa de que os maiores subsidiários devam arcar com as maiores reduções, uma vez que seu impacto na pesca internacional é mais extenso, por outro, há a reivindicação de que países em desenvolvimento devam usufruir de condições especiais. Este último tópico tem causado impasses na negociação, uma vez que é cogitado que países que usufruem de tratamento especial e diferenciado (TED) abram mão de certos aspectos de suas condições enquanto enquadrados no TED. No entanto, a maior quantidade de subsídios é acumulada entre países desenvolvidos, representando 87% dos subsídios de pesca internacionais. Outrossim, a questão da China também representa outro desafio, uma vez que a nação é enquadrada como país em desenvolvimento, mas é responsável pela maior quantidade de subsídios. Vale pontuar que o não-estabelecimento de um acordo na Ministerial a ocorrer nos próximos dias pode implicar em uma crise institucional e em questionamentos sobre a real efetividade da OMC. 

 

O posicionamento brasileiro em relação aos subsídios da atividade pesqueira é de defesa da proibição de tais subsídios, com a adição de tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento com baixa atividade pesqueira, como é o caso nacional. Dessa forma, a ideia é de que o Brasil negocie para ser menos afetado com uma possível proibição de subsídios, podendo ainda exercer algumas atividades de fomento à indústria pesqueira para desenvolvimento nacional. Uma proposta brasileira para a questão dos subsídios da pesca corrobora a perspectiva de que as proibições devam ser calculadas de forma proporcional ao tamanho dos subsídios. É importante ressaltar que a pesca representa, para muitos países em desenvolvimento e periféricos, a garantia de sustento e determinados níveis de segurança alimentar para sua população. Portanto, o fim dos subsídios ou a determinação de que alguns países abram mão do TED pode prejudicar imensamente países mais vulneráveis do sistema internacional.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *