09 de agosto de 2022
Por Flávio Rocha, Anna Bezerra, Diego Jatobá, Felipe Lelli, João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Roberto Silva e Vinícius Bueno (Foto: A C Moraes, CC BY 2.0 )
Tensões entre militares e diplomatas se aprofundaram com o alinhamento mais próximo do chanceler Carlos França aos quadros tradicionais do MRE
Na 15ª Conferência de Ministros de Defesa das Américas (CMDA), ocorrida no fim de julho, em Brasília, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, enfatizou a necessidade dos militares estarem sob firme controle civil: “a dissuasão confiável exige forças militares e de segurança que estejam prontas, capazes e sob firme controle civil”. A declaração do secretário reforça a necessidade dos militares respeitarem as democracias, o que diverge da atitude do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) que, ao desacreditar das autoridades eleitorais, afirma que o Exército estaria ao seu lado, criando tensão a respeito de como a instituição de defesa reagirá caso o candidato à reeleição seja derrotado.
Os militares do Brasil historicamente manifestam sua dificuldade em se entenderem como elementos da defesa nacional e não da defesa partidária, e as declarações do presidente são mais uma evidência dessa realidade. A partir do momento que a lealdade das Forças Armadas está voltada a um presidente, e não à nação (destaque para os civis, como o secretário dos EUA colocou), a segurança nacional é comprometida.
No Brasil, a tentativa de indicar nomes oriundos dos militares para cargos diplomáticos expôs mais uma das muitas disputas dentro do governo Bolsonaro, e o centro dessas disputas tem nome: Almirante Flávio Rocha, chefe do Gabinete de Assuntos Estratégicos (SAE). As tensões entre militares e diplomatas não são novas e podem ser traçadas desde a saída de Ernesto Araújo, o ex-ministro olavista que tinha um perfil mais próximo do governo, e o seu sucessor, Carlos França, que exibe um comportamento mais próximo dos quadros tradicionais do Ministério de Relações Exteriores (MRE).
Isso tem gerado atritos entre a ala militar e a ala diplomática, e o Almirante Flávio Rocha tem tido uma agenda internacional intensa, incluindo contatos com Putin pouco antes da Guerra na Ucrânia e demonstrando grande articulação do chefe do SAE.
A imprensa aponta a existência de uma queda de braços entre Carlos França, Flávio Rocha e Filipe Martins, havendo até rumores de uma tentativa de tirar Carlos França da chefia do MRE e colocar Flávio Rocha como chanceler, ou pelo menos, alguém próximo dos militares.
Flávio Rocha realizou 21 viagens internacionais, contra 19 de Carlos França desde de abril de 2021, quando o chanceler tomou posse. Recentemente, o ministro do SAE voltou de uma comitiva que visitou vários países do Oriente Médio e da Europa, onde esteve acompanhado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O auge das diferenças entre o governo Bolsonaro e o Itamaraty foi a nomeação do embaixador para os Emirados Árabes Unidos. O governo pretendia indicar Marcos Degaut, secretário de produtos de defesa, mas, conforme relato de aliados do governo, houve movimentação do Itamaraty no Senado para dificultar a sabatina. A revista Veja informou recentemente que, de fato, o governo quer ocupar cargos no exterior com membros de confiança do setor militar.
O ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, também esclareceu a postura do governo e dos militares estadunidenses nesse cenário, e afirmou que a parceria entre militares dos EUA e do Brasil depende de um compromisso comum com os valores e práticas democráticas.
Ao final da conferência foi assinada a “Declaração de Brasília” (confira na íntegra) por 34 ministros da Defesa e Segurança ou equivalentes dos países signatários. O objetivo é reafirmar o compromisso dos países com a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), assim como a Carta Democrática Interamericana. O primeiro artigo da Carta Interamericana defende que “os povos da América têm direito à democracia e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la.”
O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, como anfitrião da Conferência, declarou que o Brasil permanece em harmonia com ambas as cartas. Mas é importante manter no radar que Nogueira é uma peça fundamental nas movimentações de Bolsonaro para questionar a confiabilidade e transparência do processo eleitoral, pois elaborou 3 propostas de alterações nas eleições para serem aprovadas pelo TSE, entre elas está o teste com cédulas de papel.
Em relação à tensão China-EUA, a Conferência também foi palco para os Estados Unidos reforçarem a identidade dos países ocidentais como devotos à democracia e ao estado de direito – valores dos quais se auto-intitulam defensores. Desse modo, somando às críticas feitas à China, busca-se criar distanciamento ou ao menos desconfiança entre as relações Beijing-Ocidente.
Na conferência, o secretário Austin declarou que a China pretendia “minar a ordem internacional estável, aberta e baseada em regras” no Ocidente. Em resposta, o governo chinês afirmou: “Trata-se de uma declaração que desconsidera os fatos e está repleta da mentalidade da Guerra Fria e de preconceitos ideológicos. O gesto revela, mais uma vez, as intenções sinistras de certas forças nos EUA que visam cercear o desenvolvimento da China, prejudicar as relações China-América Latina e manter sua hegemonia no mundo. Manifestamos veemente objeção a essa atitude”.
A embaixada chinesa declarou que a China nunca interferiu nos assuntos internos dos países latino-americanos, mas que os EUA continuam insistindo no monroísmo (doutrina que prevê que nenhuma outra potência, salvo os EUA, possa ter influência nas Américas).
A Conferência, portanto, também serviu como plataforma na qual Washington evidenciou que está atento às questões de segurança de sua vizinhança, seja por ameaças internas de chefes de estado com falas duvidosas ou por ambições chinesas que venham a conflitar com seus interesses.
Nos últimos dias, a imprensa brasileira tem divulgado informações sobre as dificuldades enfrentadas pela Marinha do Brasil (MB) no processo de construção de seu submarino de propulsão nuclear.
A MB decidiu investir na construção de um submarino de propulsão nuclear desde fins de 1978, durante o governo do Presidente Ernesto Geisel, no contexto do acordo nuclear com a Alemanha de 1975 e da rivalidade regional com a Argentina. Esse objetivo, que já consumiu bilhões de reais em 44 anos, enfrenta a oposição e desconfiança dos países centrais desde o seu início. Mesmo sendo um submarino convencional adaptado para a propulsão nuclear, trata-se de uma embarcação que em muito ampliará a capacidade dissuasória e de negação do uso do mar por parte da MB. Com a capacidade de longa permanência em águas oceânicas, os submarinos com propulsão nuclear têm sua autonomia limitada apenas pela resistência física e psicológica das tripulações e estoques de mantimentos.
O pedido feito pelo governo brasileiro em 06 de junho à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), com o objetivo de poder usar o urânio enriquecido no reator do submarino, deverá se converter em mais um capítulo conturbado do projeto brasileiro. O Brasil tentará negociar um pacote de salvaguardas para atingir seu objetivo. Ampliando a complexidade do pedido, o Brasil insere um aspecto inédito nas negociações, pois é um país sem armas nucleares, utilizando combustível nuclear para fins militares. Segundo fontes diplomáticas, com trânsito na AIEA, dificilmente tal autorização ocorrerá sem que o Brasil ceda em algumas posições históricas. Para que o país tenha o pedido “aprovado”, quase certamente será necessário estabelecer um novo marco jurídico na forma de um protocolo adicional entre Brasil e AIEA para garantir a inspeção das instalações que lidam com o combustível e do reator do submarino. Brasília não aderiu aos Protocolos Adicionais ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, da qual é signatário, por considerá-los uma forma de tutela das potências atômicas.
As negociações entre o Brasil e a AIEA ocorrem no contexto do conflito hegemônico entre Estados Unidos e seus aliados e a China. Nesse sentido, o acordo AUKUS, celebrado entre a Austrália, Estados Unidos e o Reino Unidos, deverá ser outro fator complicador, assim como o posicionamento do governo Bolsonaro com relação à guerra por procuração entre a Federação Russa e a OTAN em território Ucraniano. Diante de um cenário tão nebuloso e disruptivo, será possível para o Brasil, construir o seu submarino de propulsão nuclear dentro das regras impostas pelas potências nucleares ou precisarão ser criadas alternativas?