Entrada do Brasil na OCDE é fato consumado ou ainda merece debate?

 09 de agosto de 2022 

Por Dante Apolinario, Gabriel Santos Carneiro, Giovana Silveira Claro e Isabela Temístocles Gomes e Natália Nascimento [1] (Foto: OCDE

Histórico e interesse da organização indicam que ainda pode haver oportunidade de reavaliação do impacto da adesão aos Códigos de Liberalização para a autonomia estratégica do país

 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aprovou formalmente, em junho, o início do processo de entrada do Brasil na organização, mas o desenrolar desta história está longe de acabar. 

O aceite era aguardado há tempos, desde quando o país apresentou o pedido formal de ingresso à organização, há mais de cinco anos, durante o governo de Michel Temer, e o governo apresenta a entrada como política de Estado e fato consumado, que independe dos resultados das eleições de outubro. 

No entanto, após a formalização da OCDE, o próprio Ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que “o processo de acessão à OCDE é longo e pode ter algum tempo pela frente”. Há ainda muitas reformas nacionais a serem feitas para que o Brasil seja aceito na organização. A questão ambiental, em particular, é ponto-chave a ser resolvido. 

As eleições e a possibilidade de vitória de Lula, amplamente indicada pelas pesquisas de intenção de votos, colocam ainda mais interrogações para o desenvolvimento deste enredo, uma vez que a entrada na OCDE pode não ser prioridade em um eventual novo governo do PT. Ao que tudo indica, ainda há espaço para refletir se a entrada na OCDE pode ser realmente tão benéfica ao país. 

A OCDE e as implicações dos Códigos de Liberalização

A OCDE foi estabelecida em 14 de setembro de 1960, sucedendo e alargando a antiga Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OCEE),  criada após a Segunda Guerra Mundial para coordenar o Plano Marshall. Desde então, funciona como fórum de discussão e promoção de políticas e ditas “boas práticas” que visam estimular o crescimento e o desenvolvimento econômico e sustentável dos países membros.

Dois instrumentos legais adotados pela OCDE que ilustram bem tais políticas e boas práticas são o Código de Liberalização de Operações Correntes de Intangíveis (OECD/LEGAL/0001) e o Código de Liberalização de Movimento de Capitais (OECD/LEGAL/0002). Como o nome sugere, os Códigos têm como objetivo a eliminação de restrições às transações e transferências de invisíveis, denominadas operações de intangíveis, e a liberalização do movimento de capitais entre os membros. 

Por mais que os itens listados dentro dos Códigos tenham se modificado ao longo dos anos, diante de sua relevância, os Códigos consolidaram-se como dois dos principais instrumentos legais da OCDE. Atualmente, esses são dois dos instrumentos considerados mais relevantes para avaliação de países candidatos a se tornarem membros da Organização, conforme previsto no documento Framework for the Consideration of Prospective Members, aprovado em junho de 2017 pela organização. 

Os Códigos são regidos por cinco princípios: os Princípios de Standstill e de Rollback, que garantem a impossibilidade da organização retornar a níveis menores de liberalização uma vez que níveis maiores já foram acordados; e os Princípios da Liberalização Unilateral, da Não-Discriminação e da Transparência, que incentivam movimentos unilaterais em direção a maiores graus de liberalização e garantem o tratamento igual entre os membros e o acesso a informação. 

A adesão à OCDE, portanto, exige um grande esforço inicial de entrada que consiste na adesão aos Códigos citados e também a outros instrumentos. Desta forma, convém questionar se é realmente justo e necessário pagar tal elevado “preço de entrada” para adentrar à organização, perdendo a autonomia para restringir posteriormente o nível de liberalização. Neste sentido, o caso do Brasil é emblemático, uma vez que o país já participa de cerca de 80 órgãos, projetos e atividades relacionadas à organização sem mesmo integrá-la oficialmente.

Breve histórico do debate sobre a entrada do Brasil na OCDE

O debate sobre a entrada do Brasil na OCDE começou nos anos 1990, no contexto da abertura econômica e comercial do período, com o ingresso do país como membro associado no Comitê do Aço. A partir de então, o Brasil começou a ampliar sua participação na organização, integrando outros comitês e o Centro de Desenvolvimento. Até que, em 1999, o conselho da OCDE criou um programa direcionado ao Brasil, que passou a ser convidado para todas as reuniões interministeriais da organização.

Já nos anos 2000, o Ministério da Fazenda instituiu o Ponto de Contato Nacional (PCN) para o atendimento das exigências contidas nas diretrizes da OCDE para empresas multinacionais, e o Conselho da organização criou uma nova resolução que buscava fortalecer a cooperação com Brasil, China, Índia, Indonésia e África do Sul, facilitando a participação desses países na instituição. Em maio de 2007, atingiu-se um maior estreitamento das relações entre Brasil e OCDE com atribuição do título de parceiro-chave (key partner) da organização ao Brasil. Em 2015, foi assinado o Acordo de Cooperação entre a República Federativa do Brasil e a OCDE, que instaura a cooperação institucionalizada e o diálogo entre as duas partes nas mais diversas áreas, entre elas o acompanhamento e implementação de políticas e o estabelecimento de programas de trabalho para interesses mútuos. 

O processo de adesão e os governos Temer e Bolsonaro

Em 2017, o governo Temer encaminhou uma solicitação formal para a entrada do Brasil na OCDE, movimento este em consonância com a agenda liberal levada a cabo por seu governo. Em certa medida, as reformas trabalhista e da previdência, assim como o teto de gastos, são políticas implementadas que se alinham com as “boas práticas” preconizadas pela organização, e que supostamente reduzem o chamado “custo Brasil”, atraindo capitais estrangeiros. 

Em movimento de continuidade, o governo Bolsonaro instituiu a entrada do Brasil na OCDE como uma das principais bandeiras de seu governo e uma das poucas agendas ainda tocadas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, que busca sempre que possível manter a agenda de reformas e concessões para atingir os pré-requisitos de acesso à organização. Já foram adotados mais de 100 dos 253 termos legais exigidos pela OCDE. Entre eles estão pautas de abertura econômica e diretrizes de governança corporativa de empresas estatais que levem à possibilidade de privatizações e marcos regulatórios.

Entretanto, ainda está pendente a adesão a uma série de normas fundamentais para a admissão brasileira no grupo. Tais normas perpassam diversos campos que podem diminuir ainda mais a capacidade de atuação do Estado e do investimento público, que tem se mostrado uma ferramenta mundialmente importante para enfrentar os desafios econômicos atuais. 

A entrada do Brasil na OCDE: uma visão míope? 

Com a formalização do processo de entrada, o Brasil caminha para se tornar o 38˚ membro da OCDE. Contudo, ainda não é nítido se os ganhos da adesão à organização superariam os benefícios de se manter como parceiro-chave, uma vez que é pago um preço elevado durante o processo de adesão, expresso no dever da adoção de diversos instrumentos legais, tais como os Códigos de liberalização, que reduzem a autonomia e as possibilidades de atuação do Estado brasileiro de forma permanente.

Se, por um lado, a entrada no grupo pode gerar benefícios através da instituição de um “selo de qualidade” para confiabilidade econômica do país, atraindo maiores somas de investimentos estrangeiros diretos, por outro, o governo atual pouco discute as consequências que essas medidas podem acarretar a longo prazo. Predomina uma visão, que não permite espaço para críticas, de que o Brasil deve estreitar os laços com os países mais desenvolvidos e “avançados” a qualquer custo e que considera que a entrada no apelidado “clube dos ricos” da OCDE deva ser um projeto de Estado.

Uma discussão mais transparente com a sociedade em torno dos benefícios e malefícios de se entrar na organização deve levar em consideração, por exemplo, as experiências de países em desenvolvimento como Chile e México, que ingressaram na OCDE e ainda possuem os maiores índices de desigualdade entre os países membros da entidade, mantendo níveis semelhantes aos de seus vizinhos latino-americanos que não fazem parte da organização.

Desse modo, é necessário superar o slogan fácil do “selo de qualidade” e discutir a fundo como as políticas da OCDE, tradicionalmente desenhadas e direcionadas aos países desenvolvidos, podem ser aplicadas à realidade de países em desenvolvimento. Principalmente, é do interesse da sociedade ter claro como essas propostas ajudariam a superar a pobreza e as enormes desigualdades sociais do Brasil atual. O vocabulário dos setores que propõem a entrada do país na OCDE é dominado pela defesa de maior credibilidade do país junto a investidores estrangeiros e pela redução do “custo Brasil”, pautas voltadas para a economia de mercado e que restringiriam a autonomia do país em construir um projeto de desenvolvimento soberano.

Além disso, a organização é um espaço institucional normativo, não um fórum de discussão em que todos os países têm o mesmo peso. Em realidade, as decisões e recomendações já estabelecidas pelos países desenvolvidos fazem com que países em desenvolvimento sejam meros coadjuvantes, sem papel real na definição das normas da instituição. Com a entrada de diversos países em desenvolvimento no clube dos ricos, há o risco dos países desenvolvidos simplesmente optarem por mudar o fórum de discussão estratégica da OCDE para o G7, por exemplo, aproveitando-se do elevado preço de entrada já “pago” pelas nações em desenvolvimento e excluindo-as de futuras discussões. O abandono tático da OMC pelos EUA e UE nos últimos vinte anos ilustra bem tais possibilidades de mudança de fórum (forum shifting), prática com frequência adotada em resposta a uma atuação mais assertiva por parte das nações emergentes.

É preciso reconhecer, também, que o alargamento recente da OCDE não é aleatório, visto que representa uma expansão institucional em termos de influência dos EUA e da União Europeia sobre outras nações que não são do Atlântico Norte. Neste sentido, o Brasil seria o primeiro membro do BRICS que poderia integrar a organização, algo que deve ser avaliado diante do estado do xadrez geopolítico global contemporâneo e das membresias já sacramentadas de Chile, Colômbia, Costa Rica e México, além da solicitação formal apresentada pela Argentina e Peru. 

Desta forma, o histórico das intensas relações do Brasil com a OCDE e o fato da entrada do país na organização também interessar à própria OCDE, são indicativos de que não há urgência para se tomar uma decisão final acerca de sua entrada na organização. Essa decisão deveria ainda ser amplamente discutida com a sociedade civil, com atenção, em particular, aos impactos que serão gerados pela adesão aos Códigos de Liberalização. Somente assim se poderá tomar uma decisão com base em uma visão de longo prazo em que se resguarde a autonomia estratégica do país, capaz de identificar e responder aos possíveis entraves ao desenvolvimento sustentável do Brasil.

[1] Os autores agradecem as sugestões dos Professores Giorgio Romano Schutte e Diego Azzi.

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